As casas e propriedades da família foram duas vezes varridas pela tragédia. A primeira delas, há cinco anos – que se completam amanhã –, quando a Barragem do Fundão se rompeu em Mariana, matando 19 pessoas. “Perdi a minha casa, que foi totalmente destruída pela lama. Os projetos de aposentadoria ficaram soterrados de rejeitos, a horta, o pomar, as galinhas. Fomos expulsos de Bento Rodrigues, onde a minha família vivia havia séculos.”
Mas uma segunda onda ainda atingiria os sonhos do aposentado Manoel Marcos Muniz, de 56 anos. Em meio a obras emergenciais para conter a lama que continuava descendo da barragem rompida, um ano depois, a Samarco e o governo de Minas Gerais alagaram as propriedades rurais para a construção de um dique, chamado S4, com promessa de pagamento de indenização até 2019, quando esse reservatório seria descomissionado. Até hoje os terrenos e sonhos do aposentado estão debaixo do lago e ele não recebeu nada. Segundo a assessoria de imprensa da mineradora, “o processo de descomissionamento do dique S4 está sendo tecnicamente discutido junto ao governo do estado”.
Manoel é duas vezes impactado, mas não reconhecido completamente. Como sempre teve um imóvel na área urbana de Mariana, onde passou a residir, não recebe aluguel de auxílio por ter perdido a casa em que morava em Bento Rodrigues. “Perdi meu terreno, minha casa, não sei quando vou ter de volta e ainda não recebi nada. Para a Fundação Renova eu sou só um 'meio atingido'. Várias pessoas que tinham casas fora de Bento receberam o aluguel da própria casa. Eu sou ignorado”, desabafa.
A falta de reconhecimento e as falhas na caracterização da devastação sofrida pelos atingidos ampliam ainda mais a tragédia para pessoas como Manuel, que lutam para ter seus direitos minimamente garantidos. Uma situação que leva a violações diretas ou análogas às garantias previstas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, como vem mostrando a reportagem do Estado de Minas, com o auxílio de assessorias técnicas dos atingidos, como a Cáritas Regional de Minas Gerais. O reconhecimento como pessoa jurídica, de sua situação perante os iguais para um julgamento justo, consta em pelo menos seis dos 30 artigos da declaração.
De acordo com a consultoria Ramboll, contratada pelo Ministério Público Federal (MPF) para acompanhar a reparação dos danos do rompimento pela Fundação Renova – criada com essa finalidade, em 2016 – até o momento há 60.602 cadastros de atingidos enviados, sendo que 29.072 (48%) ainda se encontram com processamento pendente. “Após a análise do 35º Relatório de Monitoramento Mensal (RMM) deste programa, 1.654 pessoas foram prévia e incorretamente consideradas inelegíveis pela Fundação Renova, sem ter direito ao cadastro”, indica a consultoria. Quem está fora do cadastro não recebe auxílio financeiro emergencial nem recursos para aluguel de imóveis, no caso de quem perdeu sua casa na tragédia.
Cinco anos depois do desastre, o reconhecimento das perdas para indenizações também é lento e longe de uma solução definitiva. Segundo estimativas do MPF, de 150 mil requisições de indenização pelo rompimento, apenas 10 mil já receberam o devido pela fundação. De 30.062 núcleos familiares cadastrados, apenas 9.329 (31%) receberam indenização, considerado um total reduzido em função do tempo já passado desde o desastre; 4.483 (15%) foram considerados atingidos indiretos ou não elegíveis, segundo a Ramboll.
“Há demora nos processos de cadastro e imprecisão. E para as empresas responsáveis pelo rompimento é interessante manter a demora. Isso faz com que as pessoas cedam seus direitos, pois não aguentam esperar”, afirma o procurador da República em Minas Gerais, Eduardo Henrique de Almeida Aguiar. Uma das saídas para conseguir a reparação completa seria a total implementação das assessorias técnicas.
“O trabalho das assessorias é ajudar os atingidos a ter uma reparação efetiva. Muitas vezes as pessoas não sabem se foram atingidas, muitas vezes o foram indiretamente, porque diminuiu o movimento do restaurante, da pousada ou era professor de surfe e merece uma reparação”, afirma. O acordo para a contratação das assessorias ocorreu em 2018. Seriam 18, mas efetivamente apenas duas foram contratadas.
Muitas vezes, resta ao atingido procurar por justiça por meio de um advogado em vez de esperar as tratativas da Renova com o poder público e o Judiciário. É o caso do aposentado Manoel Muniz, que tenta na Justiça a devolução de suas terras alagadas e o pagamento do que lhe é devido. O advogado dele, Flávio Almeida, afirma que seu escritório defende ainda outros quatro atingidos na mesma situação. “A empresa tenta dizer que os nossos clientes não querem ser indenizados e fez depósitos em juízo. Mas o que oferece está muito abaixo do valor dos terrenos. Além disso, afirma que os depósitos são para adquirir as propriedades, quando se trata de uma ação temporária, com devolução das terras em 2019”, afirma o advogado.
Atividade soterrada na lama
Enquanto muitos atingidos não são reconhecidos por ter perdido suas terras e casas, a Associação dos Garimpeiros de Mariana perdeu o trabalho que realizava com autorização legal no Rio Gualaxo do Norte, próximo a Bento Rodrigues. Nenhum dos associados recebe qualquer tipo de auxílio emergencial e, passados cinco anos do rompimento da Barragem do Fundão, ainda não são considerados atingidos pela Fundação Renova. Um deles é João Avelino Pinto, de 65 anos, que sem o garimpo passa dificuldades com a família em Ouro Preto.
Sem poder ingressar novamente na área de extração de ouro da qual a associação a que pertence detinha os direitos por estar em processo de recuperação ambiental, o homem ficou sem trabalho e sem fonte de renda. A assessoria da Cáritas de Mariana orienta o garimpeiro com 30 anos de atividades mineradoras a lutar pela sua reparação. “A Renova nunca me ajudou com nem um centavo. Tentei minerar sem licença em outros lugares e acabei preso, mandado para a Penitenciária Nelson Hungria por 11 dias. Minha irmã pagou a fiança, se não estaria lá ainda. Só que não tenho R$ 5 mil para pagar a ela de volta senão tiro da boca da minha família”, lamenta o garimpeiro.
As barragens também atingiram João Adelino uma segunda vez. Quando o barramento de Timbopeba foi elevado a estágio de instabilidade nível 2, de iminência de rompimento, ele teve de sair de sua casa, em Antônio Pereira, em Ouro Preto. “Tenho uma filha que é deficiente mental e nunca mais conseguiu dormir, por medo de a barragem se romper e nos matar. Não conseguimos mais morar com ela aqui. Minha mulher a levou para Belo Horizonte, onde estamos pagando aluguel sem poder. O que eu queria é que as mineradoras nos compensassem e trouxessem de volta a nossa dignidade”, desabafa João Avelino.
Nos fundos da casa dele, dutos, motores, flutuadores e maquinário de garimpo apodrecem amontoados num barracão improvisado. Ele afirma que o fato de ser garimpeiro o torna menos simpático para a população e assim esse preconceito dificulta ainda mais sua reparação. “As pessoas acham que garimpeiro é pior do que cachorro. Mas, na nossa área, a gente garimpa e recupera. Garimpa e recupera. A gente precisa da natureza, quem destrói e mata são as mineradoras. Quando a polícia vai ao garimpo, trata a gente pior do que bicho. Joga no chão e amarra com corda igual porco se tiverem acabado as algemas. Muito humilhante”, afirma João.
Segundo a consultoria Ramboll, do MPF, a Fundação Renova não implementou os programas para privilegiar trabalhadores e fornecedores locais, o que poderia reduzir o impacto econômico do rompimento. Além disso, aponta que várias categorias têm sido desconsideradas, entre elas os garimpeiros, artesãos, ribeirinhos, areeiros, lavadeiras, pescadores por subsistência, coletores de mariscos e agricultores com piquete. (MP)
Pandemia atrasa ações, diz Renova
Acordos delimitados pelos termos de ajustamento de conduta entre o poder público, as mineradoras e a Fundação Renova incluem a manutenção de 42 programas de reparação, entre eles os de indenização, auxílio emergencial, aluguel de casas, reassentamento, contratação de mão de obra local e fornecedores locais para estímulo econômico e social. Como resposta para a lentidão apontada por avaliações sobre o andamento dessas ações, a fundação enviou um relatório com o resumo do avanço dos programas em que atribui boa parte da demora à pandemia de COVID-19.
Segundo a Fundação Renova, o cadastro dos remanescentes de Mariana, devolutivas dos dados aos impactados, atualizações e correções dos cadastrados, foram reprogramados para junho de 2021 devido à pandemia do novo coronavírus. Já são 60.149 solicitações de cadastros, com 34.870 enviados ao Comitê Interfederativo, correspondendo a 30.398 famílias e 98.258 pessoas.
Neste ano, a COVID-19 também levou à reprogramação das indenizações e ressarcimentos, como pendências com lucros cessantes, indenizações por comprometimento de uso da água e atendimentos e pagamentos de famílias atingidas em todos os escritórios, exceto em Mariana. No caso do dano da água já teriam sido atendidas 320.178 pessoas, sendo que 270.372 (84,4%) acataram as propostas da Renova. Aceitaram as propostas de indenização 10.257 núcleos familiares. O MPF calcula que o total chegue a 150 mil famílias.
De 3 janeiro a agosto deste ano, no que tange à contratação de profissionais e fornecedores locais, foram feitos programas de profissionalização e desenvolvimento de quem fornece na região impactada. Seriam 1.808 profissionais qualificados. (MP)
Resposta lenta
60.602
Total de cadastros de atingidos enviados à Fundação Renova
29.072
Cadastros com processamento ainda pendente
1.654
Número de reclamantes “prévia e incorretamente” consideradosinelegíveis pela Renova
Fonte: Consultoria Ramboll