Dizem que um poeta ou um compositor é melancólico e inquieto. E numa criação, isso se mistura a um desejo urgente de transformação. Pois tudo isso define o multiinstrumentista, arranjador e compositor mineiro Paulim Sartori, para que criasse 'Um rio'. A canção é inspirada no desastre ambiental de Mariana, que está completando cinco anos.
"A mineração e os desastres ambientais despertaram meu interesse. É preciso tornar público sofrimento das vítimas atingidas pelas tragédias. Sou solidário ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Não podemos nos esquecer desses desastres”, diz ele, que é também uma vítima, pois cresceu em São Sebastião das Águas Claras, conhecido como Macacos, e sua casa está na área de risco.
"Confrontando aquilo que representava o perdido com o que restou, me foi indispensável, na letra da música, caracterizar a derrocada ético-política acobertada de falso moralismo a que somos reiteradamente submetidos em nossa história recente, e ambientá-la no cenário devastador da mineração no Brasil, especialmente em Minas Gerais. Às vésperas de completar meus 30 anos e lembrando os cinco anos desde o crime ambiental em Mariana, sinto que é necessário pôr a música a serviço da escuta; lançá-la, agora na dimensão do que é público, se me acomete, portanto, como significativo”, diz o músico.
Assista 'Um rio':
A produção tem alusões ao ritmo combativo do boi-bumbá, tradição com forte herança indígena do norte do país. 'Um rio' é um brado de exaltação à força da diferença e está sendo lançado nos formatos videoclipe e single.
Paulim Sartori se junta ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) para que o clipe seja lançado como parte da 'Jornada de Lutas'. No próximo dia 20, o single chegará às plataformas digitais de 'Streaming'. E haverá também uma ação beneficente em 4 de dezembro.
O clipe é dirigido e montado pela artista plástica Júlia Baumfeld, com concepção e pinturas da psicanalista e também artista plástica Olívia Viana. O vídeo traz imagens que buscam ressignificar o território assombrado pela tragédia, como se as pinceladas devolvessem o rio doce ao nosso combalido Brasil.
Produzidas para o projeto Córregos Vivos, as obras de Olívia e seus periféricos, como as próprias paletas de tinta utilizadas no processo criativo, são investigadas pelas lentes de Júlia, justapondo vídeos e foto-vídeos. “Ora permitindo a apreciação minuciosa das texturas, ora reconstruindo o movimento de maneira brusca, com quadros que saltam ansiosamente uns aos outros”, analisa o artista.
Paulim Sartori é instrumentista, arranjador e compositor mineiro. Estudou com o violonista Tabajara Belo e passou pela Escola de Música da UFMG. Foi vencedor do prêmio BDMG Jovem Instrumentista em 2016; artista selecionado para OneBeat 2017 e Art OMI 2020, ambas residências artísticas renomadas dos EUA; e já trabalhou com diversos expoentes da música mineira, como Lô Borges, Ceumar, Juliana Perdigão, Kristoff Silva e Makely Ka, dentre muitos outros, transitando entre a canção e a música instrumental, alternando-se entre contrabaixo, violão/guitarra, bandolim e piano.
Atualmente se apresenta ao lado de nomes como Alceu Valença, Rafael Martini, Orquestra Ouro Preto e Lívia Mattos. É idealizador e diretor musical dos projetos Kriol, que investiga interseções entre as músicas de Cabo Verde e Brasil; e Todas las Puertas, trabalho artístico multidisciplinar premiado internacionalmente, concebido e produzido ao lado da percussionista colombiana Johanna Amaya. Compõe e produz trilhas sonoras para cinema, circo e televisão.
A letra
UM RIO (Paulim Sartori)
Um rio não se rende
Cegar-se é um assédio
Depois de cada dente
Sorrir, um sortilégio
E arde a arma quente
de todo privilégio
Um índio morto é pouco
Um leito seco, um porco
na lama de Deus
As distrações baratas
nos valem cada órgão
Verniz, terno e bravatas
desaguam, nos afogam
Discórdias tão pacatas
afins a toda norma
Bandido morto é pouco
Um livro lido é parco
no reino de Deus
Louvai o pecador
Antes prazer que dor
Sem culpa e sem temor
Antes que a providência
Melhor a diferença,
a dissonância e o suor
Que a dúvida seja o martelo
Que a febre não mate o que resta
Que não haja súdito ou servas
Que o veneno não toque o rastelo
Que o corpo não seja uma aresta
Libertem-se os bichos e as ervas