Jornal Estado de Minas

MINAS 300 ANOS

Arte delicada e global é revisitada em livro no dia do Barroco

Pesquisa de Alex Bohrer, que identificou uso de repertório artístico europeu em Minas, destaca gravura de missal que retratou a Santa Ceia reinterpretada na Santa Ceia do pintor Manoel da Costa Ataíde na Igreja São Francisco de Assis, em Ouro Preto (foto: Divulgação/discurso da imagem)
Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, – pelo menos, foi o que ensinou o cientista e pensador francês Antoine Lavoisier (1743-1794). Mas, na arte, talvez como na vida, a afirmação tem outra escala: tudo se cria, tudo ganha forma e, principalmente, tudo se inventa e se reinventa com o lápis, o pincel, o cinzel e a imaginação. Neste ano em que se comemora o tricentenário da Capitania de Minas, com a organização do território, e especialmente hoje, Dia do Barroco e data da morte de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), patrono das artes no Brasil, torna-se bem oportuno refletir e destacar ainda mais a grandeza dos artistas coloniais e as referências de seus trabalhos.





Livro recém-lançado, O discurso da imagem – Invenção, cópia e circularidade na arte (editora Lisbon International Press), do professor do Instituto Federal de Minas Gerais, Alex Fernandes Bohrer, serve de guia nessa jornada de (re) descobertas. Quando passar a pandemia do novo coronavírus e os brasileiros e estrangeiros puderem viajar mais livremente para visitar o patrimônio cultural de Minas, vale a dica para que fiquem de olhos ainda mais abertos sob os forros e as portadas esculpidas e diante das pinturas de altares das igrejas barrocas de Ouro Preto, na Região Central de Minas, e das demais cidades de passado colonial.

Sabe porquê? Muitas dessas maravilhas sobre a madeira ou alvenaria foram recriadas, pelos artistas, a partir de gravuras de missal, páginas de livros e de outros registros que chegavam à antiga Vila Rica, nome primitivo de Ouro Preto, e a outras localidades, nos séculos 18 e 19.

Para contar melhor essa história fascinante, Bohrer mergulhou fundo nas pesquisas. Residente no distrito de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, e autor de livros e especialmente de textos sobre o Barroco mineiro e a história de Minas, o professor explica que a obra resulta da dissertação de mestrado defendida, em 2007, sob orientação da professora Adalgisa Arantes Campos, e desenvolvida no programa de pós-graduação em história da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Os estudos originam do projeto Pompa barroca e semana santa na cultura colonial mineira, coordenado por Adalgisa.



A gravura A queda do homem, do artista Christoph Weigel, inspirou a obra de Antônio Rodrigues Bello na matriz Nossa Senhora de Nazaré, no distrito de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, é um dos destaques nos estudos do professor Alex Bohrer (foto: Divulgação/discurso da imagem - 9/5/20)
O livro se torna muito bem-vindo neste 2020 em que o estado lembra os 300 anos da criação da Capitania de Minas, marco na sua organização administrativa, e da Sedição de Vila Rica. Outro marco são as comemorações dos 40 anos do título de Patrimônio da Humanidade concedido a Ouro Preto. Trata-se de reconhecimento pioneiro no país pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.

A gravura A queda do homem, do artista Christoph Weigel, inspirou a obra de Antônio Rodrigues Bello na matriz Nossa Senhora de Nazaré, no distrito de Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, é um dos destaques nos estudos do professor Alex Bohrer (foto: Divulgação/discurso da imagem - 9/5/20)
Teatro sacro Segundo o também pesquisador Aziz Pedrosa, o livro traz interpretações essenciais ao entendimento da história da arte. “Podemos ver como as fontes iconográficas eram usadas para delinear os aspectos plásticos necessários para compor o teatro sacro, recobrindo as paredes brancas e tetos dos templos com pinturas que fascinavam o visitante que entrava naquele ambiente”.

As investigações do professor Bohrer, acrescenta Pedrosa, traduzem o aguçado olhar do pesquisador, que soube, de modo excepcional, decodificar a cultura artística luso-brasileira, explicitando suas peculiaridades, as quais estavam acobertadas pela distância temporal. “Dentro dessa perspectiva, esse livro trouxe ao nosso conhecimento caudaloso material, ainda pouco explorado, referente ao repertório iconográfico europeu nas minas de ouro da América, demonstrando a fundamental contribuição das gravuras e missais a diversos artistas, no Brasil e em Portugal. Enfim, essa é uma obra que aprofunda reflexões iconológicas sobre essa parte importante da primeira globalização visual da história, tudo urdido em discurso cativante, cuidadosamente preparado."




Redescoberta

A capa de O discurso da imagem ilustra bem a pesquisa. Dividida em duas, traz a gravura de um missal em preto e branco, retratando a Ressurreição de Cristo, e a policromia da pintura no interior de um templo. Na contracapa, a legenda joga mais luz ao entendimento: “Um viagem artística entre o Velho Mundo...(para a gravura de um missal)...e as minas de ouro da América Portuguesa” (para o Cristo em policromia). Essa é a porta de entrada para o leitor conhecer as origens do Barroco, e o que se chama de Barroco Mineiro, o uso dos missais (pequeno livro com orações das missas), o pensamento na época e interpretações sobre a arte.

No prefácio do livro, a professora Adalgisa atesta que O discurso da imagem constitui uma reflexão segundo o método da História Cultural, que entra nas universidades brasileiras no fim da década de 1980. “Originalmente em linguagem acadêmica, o texto assume a feição de ensaio para atingir um público abrangente com uma encorpada ilustração que auxilia o percurso de suas ideias. A pesquisa é fruto de uma investigação aprofundada sobre acervos artísticos, notadamente a pintura, e os gravados veiculados pelos missais e a sociedade coeva (numa mesma época) dos séculos 18 e 19 do território de Minas Gerais.”

(foto: Divulgação/discurso da imagem - 9/5/20)
Adalgisa esclarece que a “redescoberta do Barroco Mineiro”, produto do movimento modernista, sedimentou-se por meio de uma inventariação prolongada dos bens artísticos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Mário de Andrade (1893-1945, escritor paulista) percebeu que o entendimento do Brasil não poderia ser dado, naquele momento particular, por meio de generalizações. Para tanto, inclinou-se ao exame das diversidades artísticas e culturais, por meio de estudos monográficos que gradualmente permitiram um corpo coerente de referência.”}



Compreensão Páginas fundamentais no livro, e de interesse não só estudiosos, mas também de leigos no assunto, dizem respeito ao Barroco, tão falado e tão pouco entendido na sua essência. Com conhecimento de causa e sensibilidade, Bohrer explica as origens do estilo até chegar ao famoso Barroco Mineiro. E faz uma comparação das mais belas: “O Barroco é como um tanque cheio de peixes e cada peixe, além de ser parte do aquário total, é um universo em si. Cada peixe é único e singular, todavia só existe em contato com os outros irmãos e sobre o arcabouço do grande tanque”.

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Dupla Celebração

O Dia do Barroco, comemorado anualmente em 18 de novembro, foi instituído pela lei estadual 20.470/2012, que determina a realização de atividades culturais para valorizar o patrimônio histórico relativo à expressão artística e à obra de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Ele nasceu em Ouro Preto, em 1738 e morreu em 18 de novembro de 1814. Foi escultor, entalhador, arquiteto, marceneiro e perito.

Com sua pesquisa, Alex Bohrer destaca que grandes artistas, como Rafael, Rubens e Ticiano, copiavam e eram copiados (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press - 8/2/18)


Entrevista

Alex Bohrer, professor de História da arte
“Nenhuma cópia é isenta de criatividade”

Como o senhor iniciou a pesquisa? Observando as pinturas das igrejas, já que mora em Cachoeira do Campo, em Ouro Preto, ou recebeu alguma indicação na academia?
Acho que foram as duas coisas. Desde pequeno, eu via as pinturas de meu distrito com muita curiosidade, especialmente as da Igreja das Dores e as da Matriz de Nazaré. Aliás, uma das primeiras lembranças da minha infância é justamente estar no colo do meu pai e ele me explicar aquilo tudo. Então, sim, isso tem um grande valor sentimental para mim. Depois, quando entrei na academia, tinha duas ideias na cabeça: estudar pintura no mestrado e escultura e talha no doutorado, que foi o que, de fato, fiz. Quando minha orientadora, a professora Adalgisa, me indicou um tema viável de pesquisa, que era exatamente o uso de modelos iconográficos pelos artistas coloniais, não pensei duas vezes. E o resultado hoje é o livro.





O senhor acha que a cópia retira o mérito dos artistas coloniais mineiros?
Não, de forma alguma. Na história da arte, a cópia ou reinvenção é um método comum. Como mostro no livro, personagens do porte de Rafael, Rubens e Ticiano copiavam ou eram copiados. Assim, os pintores mineiros se inserem numa espécie de método internacional, que já é bem conhecido. Não podemos encarar nossa arte barroca e rococó com os olhos de hoje. Nossos artistas foram homens de seu tempo e têm que ser encarados como tal. Não havia o conceito de plágio e direito autoral. Muito pelo contrário: eram encorajados a fazer isso. E faziam como método de aprendizagem, inspiração e, principalmente, para seguir uma iconografia mundial. Não se podia fugir disso. Você tem que representar a Santa Ceia de determinada forma, era o que a Igreja queria e ordenava. Assim, os nossos artistas se esquivavam de possíveis problemas. Um exemplo: Ataíde colocou uma mulher servindo iguarias na Santa Ceia da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto. Alguém poderia acusá-lo de não seguir o texto bíblico, mas ele também poderia facilmente mostrar seu missal e dizer: olha, a imagem está aqui! E como o missal era previamente aprovado pela Igreja, se esquivava de problemas.
 
Os escultores também recorriam aos missais?

Sim, eles usavam gravuras. Há algumas pesquisas antigas que mostram isso. Na minha tese, também demonstrei como gravuras foram usadas para se fazer a talha de nossas igrejas. E, na atualidade, estudos têm afirmado enfaticamente que esculturas e imagens de vulto podiam realmente ser inspiradas em gravados. Isso explica, em parte, por que tantas imagens, em diferentes lugares do globo, se parecem morfologicamente, mesmo os artistas estando separados pela distância espacial ou temporal. Então, a gravura, seja de missais, bíblias ou hagiografias (estudo de biografias) de santos, servia sim aos escultores. 

Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, também usou esse recurso?
Sim, usou. Temos estudos mostrando isso. Um caso bem visível são os Profetas de Congonhas, claramente baseados em tradições visuais que eram mostradas nos gravados. Outro exemplo bem pertinente é seu busto de mulher no Chafariz do Alto da Cruz em Ouro Preto. Ele é quase idêntico a alguns bustos que aparecem na Igreja Matriz de Cachoeira do Campo, mais antigos, e onde seu pai trabalhou. Esse caso, bem estudado por Ivo Porto de Menezes, mostra que provavelmente Aleijadinho tinha acesso ao acervo de desenhos e gravuras de seu pai. Sim, sabemos que os artistas montavam esses acervos, que eu chamo de ‘pasta’. No caso da escultura e, especialmente, do Aleijadinho, é óbvio que ele desfrutava de certa liberdade de criação, de movimentos, de posicionamento do personagem etc. Afinal, era um gênio. Mas, mesmo os gênios estavam sob a égide da vigilante Igreja e, por isso, usavam seus livros.





Em outras colônias portuguesas, na Índia (Goa) e China (Macau), os artistas também se valiam dos missais para criar?
Sim, o uso de gravuras era alastrado. E não somente nas colônias portuguesas, mas em todas regiões. Um exemplo: recentemente fiz uma viagem ao México e fiquei encabulado de encontrar ‘minhas’ gravuras copiadas em igrejas e museus! A explicação? Estavam usando os mesmos livros que nossos artistas, que, escritos em latim, eram universais (o latim era a língua internacional na época, ainda que fosse usado só por uma classe mais culta). Isso produziu um fenômeno curioso, que eu chamo de a ‘primeira planetarização visual da história’. A circulação em massa de livros e desenhos fez com que pessoas de todos os lugares vissem imagens dos outros continentes. E isso não ocorria somente com livros sacros no Novo Mundo. A Europa agora podia ver como eram elefantes, camelos, uma bananeira, uma palmeira, um abacaxi, etc. O efeito visual disso foi enorme. Até mesmo um rinoceronte, desenhado pelo famoso artista alemão Albrecht Dürer, foi parar, copiado, num teto da Colômbia! Ou seja, mesmo quem não podia comprar um livro, podia admirar representações em tetos e telas.

O senhor diz que arte é diálogo. Podemos, então, dizer que a arte colonial mineira “dialogou”, e não copiou, com os europeus?
Exatamente! Nenhuma cópia é isenta de criatividade, mesmo uma fotografia. Imagine: as gravuras chegavam aqui em preto e branco e diminutas. Tinham que ser escolhidas, quadriculadas, redesenhadas em escala, colocadas nos tetos, coloridas, etc. Isso permitia, por exemplo, que artistas como Ataíde substituíssem personagens europeus por pessoas mestiças. E isso, por si só, é um fenômeno de extrema importância! Outra coisa que faziam, e que descobrimos, era recortar gravuras (com tesouras mesmo) e ir montando novos cenários a partir dos originais. Em suma, eles eram pessoas de sua época e, para não cometermos anacronismos e injustiças, temos que aprender a pensar como um artista do século 18. Uma forma de se tentar isso é, justamente, entender como os processos criativos, pautados na cópia e reinvenção constante das formas, produziram o que chamamos no livro de ‘ciranda criativa’. E que incrível ciranda essa, pois nos legou algumas das obras de arte mais importantes da história da humanidade!




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