Ao passo em que se clama por um mundo antirracista, uma clínica médica de Nova Lima, na Grande BH, foi condenada a pagar uma indenização de R$ 30 mil, por danos morais, para uma recepcionista que trabalhava no local. De acordo com o processo, conduzido no Tribunal Regional do Trabalho, ela teria sido demitida após se recusar a remover as tranças.
A ex-funcionária relatou que, ao voltar de férias, sua supervisora observou que ela havia feito tranças no cabelo e fez uma foto para mostrar à consultora de imagem do estabelecimento, que verificaria a mudança de visual. A especialista, em conversa com a recepcionista pelo telefone, disse que o visual “não combinava com a imagem da clínica”. De acordo com a ex-colaboradora, a empregadora tinha conhecimento do teor do contato, fato que a teria deixado constrangida.
A recepcionista, mesmo com as falas da consultora, manteve as tranças. Dias depois, acabou sendo dispensada sem justa causa. A atitude, na visão da ex-funcionária, foi “discriminatória”, em retaliação à recusa do pedido. Ela ainda afirmou que, na conversa com a consultora, a coordenadora da clínica demonstrou ter conhecimento da ajuda que a especialista de imagem prestou à trabalhadora em um tratamento capilar, gerando uma “exposição indevida”, de acordo com a autora do processo.
A clínica médica rebateu as acusações alegando que a dispensa se deu por causa da queda de movimentação, motivada pela pandemia da COVID-19, e que a profissional sempre foi valorizada e elogiada no local de trabalho. O estabelecimento também disse no processo que a conversa entre a ex-funcionária e a consultora foi em caráter privado e que não houve determinação para que a recepcionista alisasse os cabelos.
A consultora de imagem, por sua vez, negou tratamento discriminatório contra a recepcionista. A especialista disse que solicitou apenas que a moça fizesse um "penteado formal", ressaltando que a dispensa da então funcionária ocorreu por causa das dificuldades financeiras consequentes da pandemia. Ela também declarou que soube pela própria recepcionista, e não por terceiros, a respeito do tratamento capilar.
Apesar disso, o juiz Henrique Macedo, responsável pelo processo, entendeu que a negativa da recepcionista em mudar o visual influenciou para a sua dispensa, reconhecendo, também, que os “reflexos econômicos da pandemia podem ter levado a empregadora a decidir pela redução do seu já enxuto quadro de pessoal”. A afirmação é embasada pela data da ligação telefônica examinada pelo magistrado, que ocorreu em 14 de abril. O encerramento do contrato se deu no dia 20 do mesmo mês, ou seja, apenas seis dias depois.
“Dress code”
O juiz Henrique Macedo utilizou gravações telefônicas nos autos. O diálogo, transcrito pela Justiça, é entre a recepcionista e a consultora, que diz que o visual da então funcionária é "informal" para a empresa.
“Não dá para você trabalhar com ele, fica muito informal mesmo, sabe, tem até uns penteados, alguns cortes de cabelo que de fato é dress code de empresa muito casual, muito informal, não se enquadra tipo em banco, clínica médica, essas coisas (...)”, disse a consultora.
Em outro trecho da conversa, a consultora se mostrou pouco flexível, partindo do princípio do “dress code”, expressão utilizada para ditar normas de vestimenta. “Existem duas coisas muito distintas, uma coisa chama estilo e outra coisa chama dress code, a pessoa pode ter o estilo que ela quiser, mas a partir do momento que ela tem um trabalho e o trabalho dela tem o dress code corporativo formal, ela precisa se enquadrar nisso ou então não tem como ela trabalhar.”
Por fim, a consultora compara as tranças da recepcionista a um uniforme, reforçando o pedido para que a ex-funcionária mudasse o visual. “Quando eu te dou a opção de se enquadrar no dress code da minha empresa, te dou uniforme, não te dou? Da mesma forma, eu vou mandar uma pessoa aí para te ensinar como que o seu cabelo tem que tá adequado para o dress code corporativo da empresa”, concluiu.
Em depoimento, a consultora disse que as tranças da recepcionista eram em castanho dourado e "organizadas de maneira bem informal".
Em depoimento, a consultora disse que as tranças da recepcionista eram em castanho dourado e "organizadas de maneira bem informal".
“Racismo é um problema presente no ‘DNA’ da sociedade”, afirma juiz
Na decisão, o juiz Henrique Macedo não identificou nenhum elemento que indicasse que as tranças da recepcionista fossem impróprias para a atividade que ela exercia. O magistrado também citou vários autores em sua sentença e destacou a força simbólica dos cabelos para a identidade negra e para os povos de origem africana.
Também na decisão, o magistrado disse que o "racismo é um problema presente no 'DNA' da sociedade" e chamou a atenção para a dificuldade em identificar os discursos racistas.
“Na maioria das vezes, especialmente numa sociedade que acredita viver uma democracia racial, é necessário ir a fundo nas condutas para que seja possível compreender as motivações implícitas e, sobretudo, as consequências dessas ações. Quando estas são esquadrinhas e as intenções subjacentes reveladas, constata-se que o racismo é um problema presente no ‘DNA’ da sociedade, ou seja, ele se projeta por toda a estrutura de relações que formam as instituições (família, igreja, empresas, partidos políticos etc.).”
Tanto a ex-funcionária quanto a clínica médica entraram com recursos, que serão analisados no Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais.