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Estado de Minas ENTREVISTA / CRIOLA

Polêmica: mural do Cura expõe linha tênue entre estética e racismo

Artista que pintou mural em fachada de prédio no Centro de BH fala sobre a ação movida por morador do condomínio, que afirmou que a obra "é de gosto duvidoso"


06/12/2020 06:00 - atualizado 06/12/2020 08:43

'Quando não nos matam fisicamente, nos matam simbolicamente. Esse apagamento é uma forma de nos matar, uma forma de matar um discurso' - Criola(foto: Bruno Figueiredo/Divulgação)
'Quando não nos matam fisicamente, nos matam simbolicamente. Esse apagamento é uma forma de nos matar, uma forma de matar um discurso' - Criola (foto: Bruno Figueiredo/Divulgação)

Nascida em 25 de janeiro, Criola é regida por Aquário, signo conhecido por estar à frente do tempo, ser visionário e também por ser muito ligado à defesa de causas grandiosas. No entanto, para os que não acreditam em horóscopo e preferem a racionalidade para entender o mundo, os números podem ajudar a compreender a dimensão desta artista de 30 anos nas artes contemporâneas e no debate público sobre a questão racial. Na segunda edição do Circuito Urbano de Arte (Cura), em novembro de 2018, Criola pintou o mural Híbrida astral – Guardiã brasileira, em 1.365 metros quadrados na fachada cega do Edifício Chiquito Lopes, na Rua São Paulo, Centro da capital.
 
Com a missão de pintar painel de dimensões ainda não experimentadas por ela até aquele momento, Criola não imaginava que seu desafio maior não seria o tamanho da empena. O painel se tornou ponto de uma controvérsia na capital, que colocou todos a pensar sobre gosto, estética e racismo. O trabalho artístico foi contestado na Justiça por um morador, alegando que “não é uma simples pintura, é uma decoração de gosto duvidoso”. A polêmica ganhou projeção nacional, quando foi tratada pelo prefeito Alexandre Kalil no programa Roda viva, da TV Cultura, em entrevista na segunda-feira.

A resposta de Kalil, que chamou o morador de “boçal”, viralizou e o debate ultrapassou as montanhas de Minas. A Híbrida resulta da pesquisa da artista, que tem na pintura uma forma de se conectar com a espiritualidade. Com a obra, ela propõe à cidade uma introspecção para que se possa refletir acerca de “onde estamos e para onde estamos indo”. Criola já fazia essa reflexão muito antes do momento de desaceleração imposto ao planeta pelo novo coronavírus, em 2020.O Estado de Minas conversou com a artista, que falou sobre o processo de criação, sobre apreciação estética e racismo.

'Se apagar um, faço 10. Dou o recado que tem que ser dado, estou cumprindo o que eu vim cumprir, e está só no começo' - Criola(foto: Bruno Figueiredo/Divulgação)
'Se apagar um, faço 10. Dou o recado que tem que ser dado, estou cumprindo o que eu vim cumprir, e está só no começo' - Criola (foto: Bruno Figueiredo/Divulgação)


Para você, o que há por trás desse argumento de que o mural é de gosto duvidoso?
Deixa nítido para as pessoas onde está o racismo. Obviamente, ninguém precisa gostar do mural. E o problema não é o apagar em si, mas a questão é: gosto é algo construído culturalmente. Quando ele fala de gosto duvidoso é baseado em quê? Parte de quê? De que ponto de vista é um gosto duvidoso? É importante refletir sobre isso. O belo e o feio foram construídos, padrões de beleza são construções imagéticas, culturais. Antigamente, o padrão era grego. Padrão de beleza era euro- peu. Esse padrão é manipulado pelos colonizadores. Por isso, é uma situação bem racista querer o apagamento. Quando não nos matam fisicamente, nos matam simbolicamente. Esse apagamento é uma forma de nos matar, de matar um discurso.

O que é a Híbrida astral?
A série Híbrida astral – Guardiã brasileira fala de minhas reflexões, de uma mulher preta que está buscando autoconhecimento a todo momento, que está questionando o porquê de as coisas serem assim, desde o porquê de o prédio ser cinza, o asfalto é cinza, do porquê a gente estar na base da pirâmide social, quem determinou isso, como que funciona isso, o porquê de a gente não ter acesso a coisas básicas que estão na Constituição, questionar tudo. Essa pesquisa é no lugar da imaginação, de sentir através da intuição esse mundo interdimensional, no qual a gente alcançou uma compreensão que não existe separação entre ser humano e ser natureza, é uma coisa só. A gente faz parte da natureza. Então, são seres que entenderam esse lugar. Já entenderam que a origem de tudo vem de uma energia feminina, a natureza. Se a gente pensa por que é a mulher quem dá vida a um ser, que tem um filho... Que história é essa de que a mulher vem da costela de Adão? Quem inventou isso, meu pai amado? As híbridas são seres que já adquiriram essa compreensão. Por adquirirem essa compreensão, os poderes das plantas, os poderes da energia feminina, elas se conectam ao ciclo da Lua, ao ciclo da natureza, então falo desse lugar dos povos ancestrais, do povo indígena, o povo preto, que, desde sempre, têm esse lance da energia feminina forte, das matriarcas e das mulheres, do respeito à natureza.

Quando começou essa pesquisa? Quando você foi convidada para fazer o mural, tinha o entendimento de que faria a Híbrida?
Não estou me lembrando de quando começou, mas, antes disso, comecei a fazer body painting no meu corpo e a fazer fotoperformance. A primeira vez que eu fiz foi superintuitiva, estava numa cachoeira com um amigo, fomos para o ateliê dele, peguei a tinta e comecei a me pintar. Ele tinha uma câmera, a gente tirou umas fotos na hora e fez um ensaio. Para mim, o processo de pintura é muito espiritual. No entanto, muita gente questionou, mas a obra está falando de religião. A espiritualidade está além de religião. Religiões existem várias. Espiritualidade é sua conexão com algum ser, ou com o que quer que seja em que você acredita, que potencializa que você esteja vivo, que uma árvore cresça, que potencializa a vida. Para mim, isso é espiritualidade. Meu processo de pintura sou eu me conectando com a minha espiritualidade. Nesse processo intuitivo de me pintar, cheguei nessa Híbrida de extrema conexão comigo. Olhei-me no espelho e vi tudo isso: esse ser extremamente conectado com a natureza. Extremamente sensível e que segue seu instinto, que não é colocado como algo primitivo, ruim e menor.

O mural Híbrida astral - Guardiã brasileira, pintado na fachada cega do Edifício Chiquito Lopes, na Rua São Paulo, Centro de BH, pivô de debate(foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
O mural Híbrida astral - Guardiã brasileira, pintado na fachada cega do Edifício Chiquito Lopes, na Rua São Paulo, Centro de BH, pivô de debate (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)


De certa forma, a obra Híbrida foi um presságio para o que viveríamos em 2020 com a chegada do novo coronavírus? Dizem que o surgimento do vírus se deve à desconexão do ser humano com a natureza, ou melhor, aos danos causados ao meio ambiente…
Já estava sentindo ali. Até fiz um texto que fala que essa pintura feita na encruzilhada é como uma bússola que aponta o caminho que temos que seguir. Não que eu queira falar uma verdade universal, longe de mim. É minha visão sobre a humanidade. O futuro é o retorno, o futuro é ancestral, é caminhar para trás e olhar para nossa ferida. Nós, brasileiros, temos uma ferida aberta. A gente não olha para ela. Enquanto a gente não olhar para ela, a gente não vai evoluir, não vai chegar a um lugar melhor. Não é à toa que o Brasil é um país superdiverso, com pessoas de várias cores. Olha que riqueza! A riqueza mora na diversidade. Se a gente olha a natureza, quantas plantas de vários jeitos e várias formas. Não existe uma planta só e ela manipula tudo: só ela que vai existir, só ela que é bonita, só ela que é bela e o resto tem que se submeter a ela. A natureza mostra pra gente que tudo se conecta, uma coisa precisa da outra para sobreviver. Se o bioma não tem diversidade, ele morre. A gente é como a natureza, é a mesma coisa. Costumo falar que, este momento, é como se a gente estivesse num quarto escuro e agora acendemos as velinhas. Agora dá para ter a dimensão da bagunça do quarto. Está se enxergando a bagunça. Acendemos uma velinha, mas bem tímida.

Você pintou outras Híbridas?
Não fiz outra empena com essa temática. Fiz uma empena na Bielorrússia, mas não era com a temática de Híbrida astral. Essa da Bielorrússia foi em 2019, mas estava refletindo sobre isso, tanto que coloquei o nome em iorubá, significa “chorar as águas da terra”. Fiz uma mulher chorando com o plexo, o chacra laríngeo, com uma cobra enrolada nela.

Quando houve a negociação com o condomínio para a pintura da Híbrida você soube que havia um condômino contrário?
Durante o processo, minha equipe evitou o máximo me contar. Tentou segurar, mas chegou a um ponto que não tinha como e tiveram que me contar. Foi durante o processo de execução. Falaram que tinha um morador que queria embargar a obra, que era pra gente pintar rápido.

Essa informação influenciou no seu processo?
Sabe esse lance de ter que ser forte? Às vezes, a gente anestesia o que está sentindo na hora. Estava tão focada em fazer uma boa pintura, cumprir meu trabalho e terminar, que engoli tudo que poderia sentir naquele momento e foquei na pintura, em executar e materializar aquilo. Óbvio, deve ter influenciado, mas ficou guardado em um lugarzinho do inconsciente.

Como foi a recepção da obra? O que as pessoas falam com você sobre o mural?
Tem muita gente que ama, adora, super se conecta com o mu- ral. Tem algumas pessoas que também falam o contrário, não diretamente para mim. Só agora, com esse caso, que começaram a falar que não gostam. A última mensagem no caminho que eu vi, na Folha de S.Paulo, a pessoa comentou: “pintura muito feia, parecendo coisa de magia negra, de macumbaiada. Por que não pinta um gol do Pelé?”. Estou juntando todos os comentários para fazer uma performance com eles. Coisas desse nível. Só uma vez que aconteceu de a pessoa falar diretamente para mim. Fui a um prédio de frente para tirar uma foto do mural, pedi para entrar em um escritório de contabilidade, a moça me deixou entrar e fui tirar a foto. Ela disse: “Você vai tirar uma foto dessa coisa feia?”. Eu falei (sorrindo) “Vou moça. Vou tirar a foto. Pode?”. “Ó moça, você não gostou não? Me conta”. “Ah não. Isso está falando de fertilidade”. “Entendi, você não gosta de fertilidade?”. Ela respondeu: “Não. Está incentivando o aborto”. Pensei: gente, por que tem o útero para o lado de fora quer dizer que a mulher está sem útero?. Interpretações, mas lido superbem com elas.

Ao ver as críticas, você avalia que seu trabalho alcançou o objetivo de provocar reflexões?
A arte é livre. Cada um vai gostar ou não. Não quero que as pessoas enxerguem aquilo que estou falando que é. De forma alguma, aí que está a beleza da arte, cada um enxergar o seu ponto de vista. Mas é louco como a arte revela onde está estacionada a nossa percepção. As pessoas pensarem que é magia negra, como se fosse algo negativo inclusive, que está representando o demônio. Tudo isso que aconteceu me provocou para refletir como a gente está infectada por uma versão da história que é muito baseada no cristianismo, na culpa, no certo e no errado, no pecado e na pureza. Nas minhas crenças, não existe de- mônio. Demônio é a crença de algumas pessoas que não pode estar acima do todo. Diversidade é superimportante. Quando o presidente coloca a ideia de que Deus está acima de todos é muito errado. O Estado é laico. Coloca os signos e a estética africanos e indígenas como algo do demônio. Fico pensando se não tivesse pintado a personagem de preto. Se tivesse sido toda branca, não teria causado todo esse impacto, mesmo com o útero pintado ali. Muita gente falando que a cobra é do pecado, se conectando com a Bíblia.

Qual foi sua reação com a fala do prefeito no Roda viva?
Não esperava. Fui assistir ao Roda viva com minha mãe, que gosta muito do Kalil. Então, sentamos meu pai, minha mãe e eu na sala para assistir, e aí, quando ele falou, foi uma crise de identidade. Ela está falando do mural? “Mãe, ela está falando.” A gente achou maravilhoso. Foi importante ele ter se posicionado. A gente teve a possibilidade de escutar a visão do prefeito da nossa cidade sobre o caso. O mural está na rua, faz parte da cidade. É um mural que, como os outros, entrou para o patrimônio da cidade, assim como uma escultura de um colonizador em qualquer lugar da cidade, o mural também entrou.

Esse questionamento à obra, de que retrata uma figura negra, como impulsiona você?
Faz ter a certeza de que estou no caminho certo, que é isso mesmo que tenho que fazer. Se apagar um, faço 10. Dou o recado que tem que ser dado, estou cumprindo o que eu vim cumprir e está só no começo. A arte mudou a minha história de vida e pode mudar a de várias crianças. Como autoestima, modificando percepção de consciência. O quanto é importante se ver pintado. Ver que a pessoa ali pintada é preta como você ou ver que está mais próxima de sua realidade de vida. O graffiti tem muito disso, é uma cultura jovem.


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