Era apenas um retrato na parede de Minas, mas agora já está em São Paulo para ficar no estado vizinho ou em qualquer lugar do país, quem sabe do mundo. No mês em que o estado comemora os 300 anos da emancipação política e administrativa do seu território, a partir da criação da Capitania de Minas em 2 de dezembro de 1720, o patrimônio mineiro corre o sério risco de perder uma tela com a figura de um dos filhos mais ilustres. O diretor-presidente do museu Casa de Juscelino, em Diamantina, no Vale Jequitinhonha, Serafim Jardim, disse ontem que colocou à venda, numa empresa de leilão da capital paulista, o quadro pintado em 1957, pelo célebre Di Cavalcanti (1897-1976), retratando o ex-prefeito de Belo Horizonte, governador de Minas e presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek (1902-1976).
A venda do quadro estimado em R$ 1 milhão se torna o ápice de uma crise vivida pela Casa de Juscelino e acompanhada pelo Estado de Minas há mais de dez anos – desde 7 de julho de 2010 –, quando foi publicada a primeira reportagem mostrando a situação de dificuldades enfrentada pela direção do equipamento cultural e pedindo atenção das autoridades para a manutenção. "Estamos com as portas fechadas desde março devido à pandemia do novo coronavírus, e com dívidas no valor de R$ 500 mil referentes a questões trabalhistas, como pagamento de Fundo de Garantia, processos de funcionários que entraram na Justiça e outros. Infelizmente, esse é o jeito que encontrei para quitar os débitos e ter recursos para, quando for possível, reabrir a casa”, informa Serafim Jardim, de 85 anos, que foi amigo de Kubitschek.
Explicando que se cercou de cuidados para garantir a venda do quadro, inclusive comunicando a decisão ao Ministério Público de Minas Gerais, Serafim Jardim disse que a tela tem uma trajetória iniciada em 1973, pelas mãos de Henrique Souza Lima. “Naquele ano, Henrique ofereceu um jantar a Juscelino, em Belo Horizonte, e lhe apresentou a tela, que ganhou. No verso, a assinatura do homenageado.
Tempos depois, Henrique precisou se desfazer do quadro, que foi a leilão e arrematado, em 1996, pelo empresário Walduck Wanderley. Cinco anos depois, os irmãos Walduck e Saulo Wanderley e o sócio Sinval de Moraes decidiram doar o quadro a nosso museu", afirma. Na página de uma revista, ele mostra a foto da inauguração da tela, com a presença de políticos e admiradores de JK, presidente do Brasil de 1956 a 1961, governador de Minas de 1951 a 1955) e prefeito de BH de 1940 a 1945.
Cobrança
No início do ano passado, Serafim Jardim tomou a difícil decisão de fechar o museu, assolado pelas dificuldades financeiras. Seis meses depois, “na cara e na coragem”, conforme contou ao EM, decidiu abrir novamente as portas. A maior queixa do presidente da Casa de Juscelino é quanto ao não cumprimento, pelo governo estadual, do repasse de recursos de acordo com a Lei 9.722/1988. “Não recebo nada há 868 dias, desde 17 de julho de 2018, quando o estado repassou R$ 140 mil. Sempre prestei conta de tudo, tenho minha consciência tranquila", afirma.
Em nota, a Secretaria de Estado de Cultura e Turismo informa que tem dialogado internamente e com os responsáveis pela Casa JK para tentar regularizar a situação do espaço. "No entanto, a Casa JK está com prestações de contas de repasses públicos em aberto, as pendências vem desde de 2013 e se acumulam a cada ano, como serão explicitadas abaixo com detalhes técnicos e jurídicos para o devido esclarecimento. Isso dificulta qualquer novo aporte”.
A nota diz ainda que o convênio 5057/0/13, celebrado com a Casa de Juscelino, teve sua prestação de contas reprovada parcialmente pela Diretoria de Convênios e Prestação de Contas por terem sido constatadas despesas em desacordo com as determinações do Decreto Estadual n° 43.635/2003, regulamentador da parceria, como gastos acima do previsto no Plano de Trabalho como transporte e combustível e pagamento de multas, encargos e tarifas bancárias.
"Após 2013, ainda foram celebradas parcerias em 2014, 2015, 2016 e 2018. A prestação de contas relativa ao repasse de 2014 já foi analisada do ponto de vista financeiro e apresentou irregularidades semelhantes às praticadas em anos anteriores”. “Vale ressaltar ainda que a entidade se encontra desbloqueada no SIAFI em virtude de mandado de segurança recebido por esta secretaria, mas que, entretanto, por recomendação jurídica, está sendo dado prosseguimento aos processos administrativos de constituição do crédito estadual não tributário decorrente de dano ao erário apurado em prestação de contas – PACE com fulcro no princípio da independência das instâncias judicial e administrativa."
Acervo
Localizado na Rua São Francisco, 241, no Centro Histórico da cidade reconhecida como Patrimônio da Humanidade – este mês, completa 21 anos o título concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) –, o imóvel de propriedade do estado e com sistema de comodato de 20 anos assinado, há três anos, com a direção do equipamento cultural, reúne museu, biblioteca, espaço de convívio ao ar livre e guarda parte da história de JK.
Pintada de branco com janelas e portas azuis, aonde se chega subindo uma ladeira pavimentada com pedras capistranas, típicas de Diamantina, a Casa de JK está bem conservada e sempre em movimento, em tempos normais, com grupos de seresta se apresentando no interior e na calçada. Para abrigar todo o acervo, o museu se encontra dividido em duas partes, interligadas pela Praça Seresteiro Boanerges Meira. Nesse espaço, fica uma jabuticabeira, na qual o menino Nonô, apelido de infância de JK, se deliciava com a fruta preferida. Com o tempo, a árvore morreu e, para não ficar na saudade, Jardim decidiu conservar o tronco, o qual foi envernizado, em vez de substituí-la por outra. Ficou parecendo uma escultura.