Mãos postas para rezar, mãos delicadas na hora das costuras, tarimbadas diante da massa de biscoito e incansáveis na tradução da genuína arte mineira. Logo após convidar os visitantes a entrar em sua casa e confessar que o presépio é sua vida, Nadir Luíza Marques, a dona Diquinha, de 82 anos, abre o coração e a porta de um quarto onde guarda seu tesouro. A visão impressiona: na recriação do cenário do nascimento de Jesus, há tal quantidade de peças que a senhora residente no Centro de Jaboticatubas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, já perdeu a conta do número: “Acho que tem mais de mil”.
Leia Mais
Sagrada família em casa, com a tradição dos presépios mantida Recuperandos da Apac participam da bênção ao presépio da Cristo ReiPresépio: escultura moderna ganha prêmio em tradição religiosa de NatalConcurso de Presépios em Ouro Preto distribui R$ 2,7 mil em prêmiosNo Ano de São José, igreja no Centro de BH terá programação especialReconhecida como de Aleijadinho, imagem de São Manoel volta a Rio PombaProtegida pela máscara e no distanciamento certo, dona Diquinha, a exemplo dos moradores de Jaboticatubas, não vê acontecer, desta vez, o tradicional circuito de visitação de presépios. “É por causa dessa epidemia”, ela lamenta, o que a impede não só de receber pessoas da capital e cidades vizinhas, como também de fazer, com amigas e vizinhos, a novena de Natal, rezando diante do presépio. “Nesta época, a gente sempre fica muito satisfeita em receber o povo”, declara, antes de oferecer suspiros, balas de chocolate... “Aceita um café?”
Arte de gerações
Viúva, mãe de Alexandre de Jesus Marques e avó de Artur, de um 1 e meio, a moradora de Jaboticatubas tem prazer ao mostrar as peças do presépio que vem construindo desde os 7 anos, quando a família vivia na comunidade rural Casa de Telha. Aprendeu a arte com a mãe, Carmelita Santos Maia, que morreu aos 85, há 57 anos. “Eu ainda nem era casada... Tenho figuras, como a Sagrada Família, os pastores e animais, que foram dela, então têm mais de 100 anos”, conta dona Diquinha. A fonte de inspiração inesgotável vem sempre da devoção católica, da vontade de manter vivos os costumes, dos ensinamentos da mãe Carmelita, da fé em Deus.
Nos caminhos, entre montes e lagos, com os anjos, há peças de louça, madeira, cerâmica e muitas flores de papel crepom, uma especialidade da anfitriã. “Sempre trabalhei em casa, então gosto dessas atividades”, ela resume. A cada centímetro, nota-se que a criatividade tampouco tem limite. Em comemoração aos 300 anos do estado (a partir da instituição da Capitania de Minas em 2 de dezembro de 1720), dona Diquinha colocou este ano no presépio pequenas réplicas dos profetas de Congonhas, originalmente esculpidos por Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814).
Tem também a Capela Curial São Francisco de Assis, a conhecida Igrejinha da Pampulha, um patrimônio da humanidade recriado em papelão, com o painel dedicado ao santo padroeiro e um toque bem contemporâneo: a nora Cristina fez uma cópia da fachada no computador e colou na estrutura. E quem foi criança no início dos anos 1960 vai se deliciar com as miniaturas dos atletas olímpicos então colecionadas mediante a troca de tampinhas de refrigerantes nos caminhões das distribuidoras de bebidas que percorriam o interior. Eles também prestam por lá seu tributo silencioso ao aniversariante do dia.
Para homenagear a terra natal, dona Diquinha fez, no maior capricho, o hospital – “Pena que atualmente está sempre cheio, né?” – a farmácia, a igreja, o depósito de material de construção, as ruas, os caminhões passando, o Cristo ressuscitado, com a roupa branca de papel crepom, no alto da montanha, os pastores com as ovelhas, os reis magos... Recuperando um costume bem antigo, ela recorta algumas figuras de revistas e prega nas peças marcadas pelo tempo.
E é novamente olhando a enormidade de detalhes que ela destaca o presépio como sua vida. Se há peças antigas, o conjunto reúne também as recicladas. Dona Diquinha reaproveita embalagens de ovos de galinha e codorna, e o papel de embalagem de maçã para dar forma à profusão de flores de todas as cores.
Surpresa
Se a pior parte é guardar as figuras do presépio, dona Diquinha deixa seu segredo para o final. Os olhos sempre curiosos percorrem os vários níveis da plataforma montada pela dona da casa, que realiza o desejo de muitas pessoas que fazem presépios e se sentem tristes na hora de levar as figuras para as caixas. Para evitar o monta-desmonta, ela retira, após o período natalino, apenas as peças da parte de baixo. “Deixo as de cima, a parte das bonecas vestidas de anjo, penduradas por fios. Fecho com uma cortina para não pegar poeira, e assim posso rezar aqui, em silêncio, durante todo o ano.” Então, depois que tudo passar e chegar a tão esperada vacina, fica o convite para a visita ao presépio cheio de histórias e fé. Dona Diquinha espera de portas, e coração, abertos.