“Quebram sua janela, te chamam de vagabundo e levam embora o dinheiro que você ainda tem para comer. As estradas do Brasil viraram uma guerrilha nesta pandemia”, afirma o caminhoneiro Rogério Teixeira, de 38 anos, um dos transportadores que se manteve ativo e corajoso, circulando com cargas por Minas Gerais durante a epidemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2). A falta de movimento nas ruas devido à emergência sanitária global facilitou a prevenção policial, removeu potenciais vítimas de circulação e tem provocado o recuo dos roubos e furtos em Minas Gerais.
Contudo, essa escassez urbana de oportunidades para criminosos levou muitos deles a expandir suas atividades para as estradas, sobretudo na capital e na região metropolitana. Essa é a avaliação de especialista em segurança pública sobre os aumentos das ocorrências de roubos e de furtos de cargas neste ano, em comparação com o ano anterior, mesmo em meio ao isolamento social (veja a tabela).
De forma geral, a modalidade criminosa que apresentou maior crescimento em 2020 com relação a 2019, no comparativo de janeiro a outubro, foi o furto de cargas, que é a subtração de mercadorias transportadas sem o emprego de violência, geralmente sem que caminhoneiros e seguranças percebam. Enquanto o crime caiu 3% no estado, experimentou elevação de 15% na Grande BH, de 75 para 86 registros no período. Nesse conjunto de 34 cidades no entorno de Belo Horizonte, os primeiros dois meses do ano sem pandemia e março, que teve 14 dias de registros da doença no território mineiro, foram a época que puxou o índice 45% acima de janeiro a março de 2019, enquanto que de abril a outubro não ocorreu variação de ocorrências de um ano para o outro.
Em Belo Horizonte, os furtos de cargas deram um salto quantitativo de 47%, passando de 17 para 25 registros entre 2020 e 2019. Nos três primeiros meses a ampliação foi de 50%, de 6 para 9 ocorrências, sendo que nos meses pandêmicos, até outubro, a ampliação foi de 45%, de 11 para 16.
As ocorrências de roubo, que são a subtração de cargas com emprego de violência, ameaça, muitas vezes com feridos, torturados e sequestrados, apresentaram redução entre 2019 e 2020 no estado como um todo, da ordem de 12%, e em Belo Horizonte também, onde caiu 6%. Contudo, o inferno da insegurança para caminhoneiros e transportadoras continuou nos municípios da Grande BH. Nessa região os registros se ampliaram 16%, saltando de 85 ocorrências para 96, entre janeiro e outubro. Avaliando os meses pré-pandêmicos, de janeiro a fevereiro, e contando com março, o aumento foi de 7%, de 29 para 31 registros. Nos meses de epidemia, os índices dispararam, subindo 16%, saltando de 56 para 65 ocorrências.
Ocorrências
Os locais onde mais se registra furtos de carga na Grande BH são Contagem, à beira da BR-381, entre MG e SP, que passou de 13 ocorrências entre janeiro e outubro para 40 (%2b207%), e Ribeirão das neves, município cortado pela BR-040, entre BH e Brasília, que experimenta um acréscimo de 9 furtos em 2019 para 37 neste ano, uma alta de 311%.
“O medo existe e tem ficado pior. A gente tenta tomar as precauções em cima do que os colegas contam. Não rodar de noite. Não parar em qualquer lugar, por que na pandemia nem todos os lugares estavam abertos. De Contagem a Uberlândia está um terror. A gente sabe do perigo, de colega que trabalhava com cigarro e que os bandidos dominaram e ficaram 4 horas torturando ele. Você não sabe quem é quem, quem é amigo da gente, por isso só paro onde frequento sempre”, disse o caminhoneiro Carlos Alberto Tarcísio de Almeida, de 58 anos.
“Você tem de escolher muito bem os postos onde vai dormir, porque se não amanhece com a carreta faltando retrovisor, farol, pneu, centro de embreagem, o pessoal tá roubando mesmo, furto de qualquer coisa nas paradas. Me sinto muito inseguro. É aterrorizante, uma coisa que a gente não quer para a gente. Tive um amigo que foi pego pelos ladrões agora, em Atibaia (SP), entraram na cabine batendo nele. Moeram ele, machucaram muito, é frustrante você sai e deixa a família em casa para buscar o pão e acontece uma coisa dessas”, desabafou o caminhoneiro de Contagem Alessandro Maciel, de 43.
“A dificuldade aumentou com a pandemia. Sentimos e vemos que aumentaram os assaltos e roubos. Te pegam dormindo, porque fecharam muitos postos e pontos de apoio nas rodovias. Tinha de aumentar a fiscalização e ter mais áreas seguras. Minas Gerais é um dos estados onde mais temos de passar e onde menos segurança temos. Tem lugar onde não te deixam nem parar para dormir se você não se abastecer”, critica o caminhoneiro gaúcho Michel Costa de Oliveira, de 30 anos.
Avaliação
A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) avalia que os resultados são bons. “Os bons resultados alcançados em todo o estado mostram o trabalho integrado realizado pelas forças de segurança, como, por exemplo, a megaoperação Divisas Seguras, realizada no último mês, e que envolveu, inclusive, outros estados. A ação teve como foco, também, o roubo e furto de cargas. Vale destacar o empenho dos militares do Comando de Policiamento Rodoviário (CPRV) da Polícia Militar e as operações constantes no Anel Rodoviário e rodovias estaduais e federais delegadas sob a responsabilidade do CPRV, principalmente nesse período de pandemia”, informa a secretaria em nota.
Ainda para o governo, “a criteriosa análise dos dados estatísticos com direcionamento das ações/operações para os locais indicados pelos números que culminou, neste ano de 2020, na prisão de 706 pessoas com mandados em aberto, no registro de 769 ocorrências por tráfico de drogas e na apreensão de 1.044 armas de fogos. Além disso, 1.260 veículos foram recuperados pelo CPRV durante as ações preventivas realizadas nas rodovias estaduais e federais delegadas".
A pasta também elencou várias operações e destaca que, “além de identificar envolvidos na ação criminosa, inclusive na localização de receptadores, foi possível restituir às vítimas diversas cargas roubadas, quais sejam: fardos de produtos alimentícios, avaliados em R$ 30 mil, furtados no Sul de Minas; objetos, como calçados e poltronas, avaliados em mais de R$ 350 mil roubados na região Central do estado; carga de respiradores roubados na Região Metropolitana de Belo Horizonte; carga de silício, cuja prisão ocorreu no estado do Rio de Janeiro; entre outras".
Especialista vê migração do crime
A ampliação dos furtos e roubos de cargas vêm na contramão das estatísticas de crimes que tendem a diminuir devido às medidas de distanciamento para conter a disseminação da COVID-19. Os crimes violentos tiveram nova queda em outubro, menos brusca do que já se registrou neste ano, mas ampliando uma tendência de redução que vem desde 2017. De janeiro a outubro de 2020, os crimes considerados violentos caíram 33,78% com relação ao mesmo período do ano passado, de 58.237 para 38.562 registros.
O mês de outubro, contudo, teve a quarta menor queda no comparativo mês a mês anual, atrás de maio (-47%), abril (-42%), julho (-41,7%), agosto (41,3%) e setembro (-36%), com um patamar de redução de 33,4%, já bem próximo de março, mês do início das medidas de isolamento e que fechou com 30% menos crimes violentos. Antes da pandemia, a redução mensal média ano a ano era de 24% e a mais brusca queda tinha sido registrada no comparativo de agosto de 2017 com o mesmo mês de 2018, com 32% menos ocorrências.
Com o aumento do e-commerce, o comércio digital, com essa quantidade enorme de entregas, se tornou um alvo muito cobiçado, já que as pessoas não circulam mais tanto para comprar
Carlos Júnior,
coronel especialista em segurança pública
De acordo com a avaliação do especialista em inteligência de Estado e segurança pública, coronel Carlos Júnior, a nova dinâmica tem feito o crime migrar para onde encontra melhores oportunidades de obter lucro sem a exposição dos autores a riscos muito grande de serem presos, feridos ou mortos.
“As cargas que são furtadas e roubadas deixaram de circular dos centros de distribuição para as lojas e comércio varejista em geral, ainda com estoques cheios devido à baixa dos clientes para compras físicas. As residências estão sempre com pessoas dentro, o que torna o crime de roubo e furto menos atraente, pois pode se tornar um latrocínio, cárcere privado ou acabar mesmo com a prisão do criminoso antes de concluir sua ação. A maior parte deles prefere ter vantagem e procuram por oportunidades que pesam no custo-benefício de suas ações”, afirma o especialista.
Com isso a migração acabou ocorrendo para as estradas. “Os criminosos que muitas vezes estavam envolvidos em outros tipos de atuação viram uma oportunidade na outra ponta da logística, das fábricas e armazéns para os centros de distribuição. Por outro lado, com o aumento do e-commerce, o comércio digital, com essa quantidade enorme de entregas, se tornou um alvo muito cobiçado, já que as pessoas não circulam mais tanto para comprar”, observa o coronel. Essa tendência, inclusive, tem sido observada no comportamento de reforço de segurança de vários segmentos.