COVID-19: Grupo de cientistas traçou rota do vírus; alerta foi ignorado
O mapa da Covid-19 em território brasileiro foi traçado por um grupo de cientistas de MG e do México. Modelo gerou previsões alarmantes
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Junia Oliveira - Especial para o EM
04/01/2021 04:00 - Atualizado em 04/01/2021 07:19
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A livre circulação de pessoas tem como consequência a livre circulação do vírus causador da Covid-19. A prova é a segunda onda na Europa, onde a população se reconfinou e fronteiras se fecharam novamente para combater a doença que se mostra brutal e ainda mais letal – resultado da soma de férias e calor que impulsionou o trânsito de pessoas de uma região a outra durante o verão do Hemisfério Norte. Do lado brasileiro, a falta de um confinamento geral impediu a recrudescência dos níveis do coronavírus, que se estabilizou em patamares altos, não conseguiu alcançar queda significativa e, depois de uma flexibilização geral, já dá sinais de nova alta em algumas regiões, inclusive em Minas Gerais, flertando também com a chegada da segunda onda. A relação entre o livre deslocamento e o avanço do Sars-CoV-2 já havia sido prevista, lá no início da pandemia, por um grupo de cientistas liderados por pesquisadores mineiros.
Segundo eles, fechar acessos aeroportuários e rodoviários poderia ter evitado que o país chegasse ao patamar de mais de 195 mil mortes e mais de 7,7 milhões de contaminações. A restrição estava prevista em alerta dado há nove meses, quando, por meio de um modelo matemático, eles previram e anteciparam o caminho do coronavírus no país, etapa por etapa. Além do alarme, foram detectadas soluções, em documento de março cujas recomendações não saíram das gavetas das autoridades.
O mapa da Covid-19 em território brasileiro foi traçado por um grupo interdisciplinar de cientistas de Minas Gerais e do México, composto por virologistas, geneticistas, microbiologistas, físicos e ecólogos da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Fundacao?? Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto de Ecologia AC (México). Por meio da rede de transporte aéreo, o modelo gerou previsões alarmantes para a transmissão da doença, e apontou possíveis soluções, caso fossem implantados nos aeroportos protocolo severo de vigilância de entrada e o monitoramento das pessoas que chegavam de regiões de risco (nacionais e internacionais).
Os pesquisadores ressaltam que a rede aeroportuária brasileira tem forte capilaridade e permite rápida disseminação de doenças. “O controle aeroviário e rodoviário severo poderia ter retardado o estabelecimento da doença nas cidades. O controle da circulação de pessoas nunca esteve nas mãos do Ministério da Saúde, nem dos estados nem dos municípios. Não houve política nesse sentido e as pessoas circularam à vontade, como o fazem até hoje. Pelas estradas é igual. As pessoas vão e vêm normalmente”, afirma um dos responsáveis pelo estudo, o professor titular do Instituto de Ciências Exatas e Biológicas e do Núcleo de Pesquisas em Biologia (Nupeb) da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Sérvio Pontes Ribeiro, do Laboratório de Ecologia do Adoecimento e Florestas (Leaf). “O isolamento social salvou muita gente, foi essencial e ainda é”, completa.
Ele dá como exemplo o caso de um colega pesquisador que chegou da Espanha, na época do auge da doença no continente europeu. “Eram dois aviões vindos do epicentro da doença no mundo e, ao chegar ao Brasil, não havia exigências. Os viajantes entraram no país e foram para onde quiseram.”
O estudo concluiu que a falta de um rígido controle sanitário nos aeroportos tornou o Brasil mais vulnerável que outros países tropicais em desenvolvimento com rede aeroportuária semelhante, mas com um tamanho populacional muito maior, como Índia (Ásia), ou população semelhante, mas com uma rede aeroportuária mais simples, caso da Nigéria (África). “São dois países que estão no patamar brasileiro de desenvolvimento e fizeram um serviço melhor: controlaram e fiscalizaram a entrada de pessoas. Quando não havia mais nada a fazer, diminuíram o número de voos”, afirma Pontes.
Fora de controle
Em março, o grupo alertou que, pelo fato de o transporte aéreo ter uma forte centralidade nas capitais e grandes cidades do Sudeste, haveria uma dinâmica exponencial de infecção em vários municípios ao mesmo tempo. “O primeiro caso no Brasil foi registrado em 26 de fevereiro e, no modelo, se nada mais for feito, de forma síncrona, a maioria das grandes cidades do Leste e do Sul poderá estar amplamente infectada por volta do dia 50 e tornar-se contaminante das demais cidades, conectadas pela complexa rede de aeroportos. Esse padrão causaria o colapso dos serviços de saúde nas cidades que têm os hospitais mais bem equipados”, previu o modelo. “Nós acertamos tudo, prevendo, às vezes, no máximo, com uma a duas semanas de diferença do que realmente ocorreu”, sustenta Sérvio Pontes.
E as consequências parecem longe de aprendizado. Em 17 de dezembro, a Portaria 630, publicada no Diário Oficial da União manteve a restrição da entrada no Brasil, por rodovias, outros meios terrestres ou por transporte aquaviário, de estrangeiros de qualquer nacionalidade. Por meio aéreo a entrada de estrangeiros continua permitida, com uma novidade. Desde 30 de dezembro, qualquer viajante de procedência internacional, seja brasileiro ou estrangeiro, deverá apresentar à companhia aérea responsável pelo voo, antes do embarque, teste PCR com resultado negativo feito com 72 horas antes. Para o professor titular de Ecologia da UFMG, Geraldo Fernandes, do Instituto de Ciências Biológicas (ICB), outro autor do estudo, as consequências estão à vista. “O mesmo (que ocorreu ao longo da pandemia) se aplica no caso de uma segunda onda. O cenário é bem desastroso”, afirma.
Pesquisa traçou mapa de avanço do contágio
O modelo construído pelos pesquisadores previu duas ondas de contaminação em território nacional, com uma rápida disseminação da doença no país entre o 65º e o 80º dia após o primeiro caso (entre 1º de abril e 16 de maio). A primeira onda se daria pelo grande avanço diário da doença depois de 50 dias para as cidades mais densamente conectadas (e que recebem a maioria dos voos internacionais), por volta de 16 de abril.
A segunda fase estava prevista após 90 dias, para os municípios mais periféricos, incluindo toda a Amazônia e Região Centro-Oeste. Na época, os pesquisadores consideraram: “O fato de essas regiões serem atingidas em uma segunda onda é a boa notícia, pois há mais tempo de organizar uma resposta sanitária para essas que também são as regiões mais vulneráveis do ponto de vista de saúde pública”.
Especificamente para a Amazônia, Manaus foi considerado um ponto de atenção regional da rede, capaz de espalhar o coronavírus pelas partes mais remotas da região amazônica, expondo, em pouco tempo, uma quantidade considerável de populações indígenas.
Da mesma forma, cidades e vilas remotas são reféns de serviços públicos de saúde precários. A mensagem do documento era clara: “Ainda há tempo para reverter essa situação de vulnerabilidade ao Sars-CoV-2 no Brasil, pelo menos para as populações das regiões mais remotas do país”.
Mas não foi o que ocorreu. “Enviamos esse trabalho para todos os órgãos que podíamos. Não foi por falta de avisar”, afirma o professor da Ufop. Ele critica “a incoerência de um governo federal que, de certa forma, teve entendimento contraditório à OMS (Organização Mundial da Saúde) e a sugestões pautadas na ciência”. “Quando há dúvida desse nível, é difícil que haja coordenação”, conclui. (JO)
A rota do vírus
O caminho da COVID-19 no país e o que os pesquisadores previram
Entradas iniciais: São Paulo e Rio de Janeiro – Acertaram
Disseminação da doença entre os dias 65 e 80 após o primeiro caso (entre 1º de abril e 16 de maio) – Acertaram
Primeira onda: aumento diário da doença depois de 50 dias para as cidades mais densamente conectadas (e que recebem a maioria dos voos internacionais) por volta de 16 de abril – Acertaram
Segunda onda: depois de 90 dias (26 de maio), para as cidades mais periféricas, incluindo toda a Amazônia e a Região Centro-Oeste – Acertaram na Região Centro-Oeste. Erraram na amazônica, onde o avanço ocorreu a partir do fim de abril
Primeiras 10 cidades a aumentarem a taxa de infecção: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Brasília, Fortaleza, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Florianópolis – Acertaram a maioria das cidades, mas erraram ao não incluir Manaus, e na ordem de avanço, que foi a seguinte: São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Manaus, Recife, Salvador, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba e Florianópolis
FONTE: Estudo “Controle sanitário severo nos aeroportos pode diminuir a propagação da pandemia da COVID-19 no Brasil” e secretarias de estado e municipais de Saúde
Os pesquisadores
Sérvio Pontes Ribeiro – Nucleo de Pesquisas em Ciências Biológicas, Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop)
Wesley Dáttilo – Red de Ecoetologia, Instituto de Ecología AC (México)
Alcides Castro e Silva – Laboratorio da Ciência da Complexidade, Departamento de Física da Ufop
Alexandre Barbosa Reis – Laboratorio de Imunopatologia, Departamento de Análises Clínicas, Escola de Farmácia da Ufop
Aristóteles Góes-Neto – Laboratório de Biologia Molecular e Computacional de Fungos, Departamento de Microbiologia, Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Luiz Carlos Junior Alcantara – Laboratório de Flavivírus, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz
Marta Giovanetti – Laboratório de Flavivírus, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz
Wendel Coura-Vital – Laboratório de Epidemiologia e Citologia, Departamento de Análises Clínicas, Escola de Farmácia da Ufop
Geraldo Wilson Fernandes – Departamento de Genética, Ecologia & Evolução/ICB -UFMG
Vasco Ariston Azevedo – Departamento de Genética, Ecologia & Evolução/ICB-UFMG