Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

Entenda as mutações do coronavírus; geneticista explica efeitos na pandemia

Belo Horizonte volta à estaca zero nesta segunda, com novo lockdown (foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A press)

Avignon, França
– A nova variante do coronavírus detectada primeiramente na Inglaterra isolou o Reino Unido e faz a Europa tremer. Em pleno pico de uma segunda onda e temendo para breve uma terceira, países estão decretando novo lockdown na tentativa de frear essa cepa, que se propaga mais rápido que a capacidade de resposta.



Reconfinamentos voltam com força total, fechando, inclusive, escolas. Mais contagiosa, não mais letal. Mas, a boa matemática está aí para lembrar que, se há mais infectados, há também mais mortos, como explica o professor François Balloux, diretor do Instituto de Genética da University College London (Inglaterra) e professor de biologia computacional.

À frente das pesquisas sobre a nova variante, o geneticista suíço falou com exclusividade ao Estado de Minas. Ele acha pouco provável uma onda epidêmica dessa mutação no Brasil no curto prazo, mas pondera que, por se propagar mais rapidamente, o vírus pode, sim, ignorar o clima quente do hemisfério sul, que, teoricamente, lhe é menos favorável.

Confiante no encerramento da fase pandêmica no fim deste ano, Balloux chama atenção para outras doenças infecciosas e os efeitos secundários da COVID-19, ressaltando a dificuldade na tomada de medidas com tantos parâmetros em jogo: “É frequente que venha uma decisão mais moral e ética que realmente científica. Onde colocamos mais valor (da vida e da sociedade) é a grande questão”.





Quantas mutações do novo coronavírus  já foram registradas? 
O Sars-Cov-2 tem em torno de 20 mil mutações. A maior parte não é frequente. O genoma tem 30 mil bases e certas posições tiveram mutações. Analisei há alguns meses e estávamos em torno de 50 mil genomas e 12 mil mutações. Agora, temos 310 mil genomas conhecidos e não longe de 20 mil mutações.

Quando falamos de nova mutação, então, é nova entre muitas outras? 
Essa linhagem que observamos da Inglaterra tem 23 mutações, todas já conhecidas, e nenhuma ocorre em qualquer outro vírus. Mas nunca a vimos nessa combinação, que é única. Temos certeza de que nenhuma dessas mutações por si mesmas dá uma vantagem à cepa, mas pode se tratar de uma organização de diferentes combinações que, entre elas, fazem essa variante transmitir potencialmente melhor.

O vírus não para de mudar. Poderemos ter mais ainda? 
Com certeza, se pegamos uma linhagem e a seguimos, no fim de um ano teremos algo em torno de 25 mutações que podem se acumular entre o início e o fim, por ano. Então, cada linhagem, de forma independente, terá entre 20 e 30 mutações por ano. Visto que o genoma tem 30 mil, isso representa cerca de 1% dos genomas que sofrem mutações a cada ano. Bem, a grande parte não tem qualquer efeito. São mutações que não vemos nunca, porque elas têm um efeito negativo sobre o vírus, então, se uma linhagem sofre esse efeito negativo, ela se “apaga” e nós não a observamos.






Como o vírus influenza, que a cada ano precisa de uma nova vacina para enfrentar a nova cepa? 
Exato. A gripe é também um vírus RNA, que são um pouco menores e sofrem mutações muito mais rápido. A influenza A, ou gripe sazonal, sofre mais rápido que a COVID-19 e, por isso, fazemos vacina duas vezes por ano: uma para o hemisfério sul e outra para o hemisfério norte. Isso é necessário porque o vírus evolui e escapa à imunidade dada pela vacina e também à imunidade natural, que leva cinco anos. Resumindo: se você tem uma gripe, está tranquilo por cinco anos. Depois pode pegar de novo. Mas, visto que tem várias linhagens, tem que pegar duas vezes a gripe num ano. As linhagens são muito diferentes e é por isso que a vacina da gripe é complicada, é uma mistura de três ou quatro linhagens. A COVID já é um pouco mais simples. Eu disse 20 mil mutações, sim, mas distribuídas dentro de todos os tipos de linhagens e nenhuma delas é muito diferente da outra. Na média, se pegamos uma no Brasil, uma na Inglaterra ou em qualquer outro lugar, elas serão alguma coisa como 10 ou 12 mutações e nenhuma delas será muito importante, não terão muito efeito.

É por isso que os laboratórios dizem  que eles podem se adaptar (às mutações)  no que diz respeito às vacinas? 
Sim, até agora uma só vacina cobre todas as cepas. Haverá um momento em que isso não será mais o caso.

O que sabemos dessa nova variante descoberta na Inglaterra? É mais contagiosa, mas também mais letal? Qual a diferença? 
Parece que ela é mais contagiosa. Às vezes, é difícil medir, porque se temos uma epidemia muito forte como em Londres, é difícil responder: é porque o vírus é mais contagioso ou só porque uma epidemia importante implicou uma linhagem específica, sem que ela seja mais contagiosa? Mas há muitas evidências e resultados que sugerem realmente que ela é mais contagiosa que a linhagem anterior. Ela não é mais letal nem tem sintomas mais severos, com um pouco mais de sorte é mesmo talvez um pouco menos grave.



A razão pela qual podemos especular que, potencialmente, e nisso é preciso ser muito prudente, repito, potencialmente, poderia ser menos severa, é que ela tem um gene que se chama ORF8, que não é “obrigatório” no vírus. Vimos muito genoma no Sars-Cov-2 onde esse gene não é funcional, tem um buraco, uma deleção (remoção de um segmento), o que ocorre na linhagem inglesa. Um estudo em Cingapura sugeriu que o gene que tem uma deleção é menos letal e provoca sintomas menos graves. Mas, se é o caso ou não, é ainda muito cedo para dizer. Eu, pessoalmente, estou confiante de que ele não é mais letal.

E em relação às crianças? 
Inicialmente, havia razões de suspeitar que se transmitiria mais entre as crianças, mas não é o caso. Isso se deve ao fato de as crianças terem sido mais testadas nas escolas e também de a epidemia ter talvez começado parcialmente nas escolas. Mas, agora, a vemos com a mesma frequência, relativamente, em relação a pessoas de diferentes idades. Ela é mais transmissível, mas não é mais transmissível entre jovens ou idosos ou algo assim, é simplesmente mais transmissível.

Fala-se muito que o modelo de confinamento feito até agora, de deixar as escolas abertas (no caso da Europa), não teria mais efeito. Então, não é o caso. Se um novo confinamento é necessário, pode-se deixar escolas abertas? 
Não é que o vírus se transmita mais entre as crianças que entre os adultos, mas ele transmite também. Então, visto que a Inglaterra tem uma epidemia muito avançada e quer realmente cortá-la, reduzir a transmissão, eles fecham tudo, incluindo as escolas. Mas não significa que fechá-las seja mais útil ou eficaz que fechar qualquer outro estabelecimento. As medidas tomadas são extremas.  O motivo de fechar escolas é porque foram obrigados a fechar tudo.





Quando um país toma uma medida, geralmente, ela vai em cadeia. A medida inglesa pode promover um novo modelo? 
Tem vários fatores e parâmetros, então é possível que outros países sigam, mas não é certo. A Inglaterra tem pouca capacidade de tratamento intensivo. Você ficará surpresa com esse dado, mas a França tem o mesmo número de pacientes COVID-19 nos hospitais que a Inglaterra, mas esse último país tem um pouco menos de margem de manobra em termos de terapia intensiva, então, se não querem hospitais saturados, é o momento de fechar.

Não estou persuadido de que os outros países europeus vão seguir. Esse é realmente um problema específico da Inglaterra e de alguns países do Leste, como Eslováquia e Croácia, que estão bem afetados, mas não penso que de imediato os países da Europa Central vão fechar. É complicado, porque as medidas são tomadas por razão de saúde pública, mas às vezes também pela reação da população, depende também de como as pessoas reagem. Os políticos respondem parcialmente à nação e parcialmente à demanda do público.

Há um modelo que permita saber ou prever a velocidade com que essa variante vai se espalhar pelo mundo? 
Se se confirma que essa variante é realmente 50% mais transmissível, a princípio, não há razão para que ela não substitua as outras no mundo inteiro. O único país onde temos um pouco de dados, além da Inglaterra, é a Dinamarca, porque eles sequenciam muito: 2 mil genomas por semana e têm ainda um bom sistema de acompanhamento. Efetivamente, a proporção dessa variante aumentou muito rápido, passou a 30% esta semana, na semana anterior estava em 1,1%. Ele vai aumentar, o que é provável, e, como consequência, fica mais difícil controlar uma epidemia.





Em países como o Brasil, onde o governo (federal) ainda insiste em negar a doença, quais podem ser as consequências de uma tal velocidade de contaminação? 
Uma consequência provável nessa variante específica é o aumento no número de casos, repetindo que ela não causa mais mortes, não é mais letal, mas se há mais casos, proporcionalmente, leva a maior número de mortes. Também, uma consideração, que é um problema, é que vai deixar mais difícil a imunização. Muitos países, incluindo o Brasil, estão numa corrida contra o relógio para vacinar o máximo de pessoas em risco e isso pode se complicar um pouco.

Logo, o número de pessoas que poderiam se vacinar a tempo, realmente antes de ser infectadas, será reduzido se essa epidemia se transmite. Será um grande problema. Eu ficaria surpreso se, no curto prazo, o Brasil tivesse uma grande onda epidêmica como na Europa, porque o vírus é sazonal, pode se transmitir em todas as condições, todos os climas, mas há climas que lhe convêm particularmente bem. 

Mesmo se em pleno verão houver uma aglomeração mais forte? 
Ele se transmite bem menos no exterior, menos quando faz calor e há sol, fica menos bem no ar. A onda muito grave que vemos atualmente na Europa e parte da América do Norte se deve ao fato de a transmissão ser impulsionada pela estação do ano. Claro, o problema é que se ele se transmite melhor, puxa tudo, então ele pode se transmitir melhor em todos os climas e gerar questões graves. Na Inglaterra, onde há uma transmissão provavelmente superior do vírus, tem as condições perfeitas de transmissão até fevereiro, março ainda. Praias não são lugares com mais risco, o que não significa que não tenha que tomar precaução.





Estamos próximos de uma solução por causa da vacina? 
Acho que a fase pandêmica deve ter fim este ano, talvez um mês a mais. Agora é o pico no hemisfério norte, e graças à vacina e parcialmente à imunidade adquirida naturalmente pelas contaminações, a pandemia vai se transformar progressivamente em endemia. Temos aproximadamente 200 vírus diferentes respiratórios em circulação, como gripe, e quatro coronavírus que causam resfriado, todos eles provocam problemas e mortes, mas nada comparado à pandemia. Haverá um momento em que a pandemia vai se transformar numa situação muito mais aceitável. O coronavírus será um dos vírus que são um problema, mas não um problema que nos impede de viver, de fazer funcionar a sociedade. Acho que essa transição se fará em 2021. 

Estamos no momento COVID-19, mas há outras doenças que matam. Como gerir tudo isso? 
É extremamente difícil e como efeitos secundários da pandemia haverá aumento de outras doenças infecciosas numa parte do mundo. Penso particularmente na tuberculose na América do Sul e, principalmente, na África do Sul. É verdade que a resposta à pandemia impõe dificuldades, como campanhas de vacinação, incluindo a pólio, doença quase erradicada, que pararam completamente. A vacinação contra o sarampo foi globalmente suspensa.

E há problemas que vão além das doenças infecciosas. A previsão é de que mais de 200 mil crianças morram de fome no mundo no ano que vem, por causa da destruição da economia. Claro que a COVID-19 é um evento de força maior, mas tem-se que levar em conta todos os problemas. Não é a única causa das doenças infecciosas, única causa de mortalidade.





É uma conta cara a pagar. 
A conta pode ser muito cara a longo prazo e é um erro dizer que há a economia e a saúde. Na verdade, não há economia sem saúde nem saúde sem economia. Se um país vai bem, a expectativa de vida aumenta, a mortalidade infantil diminui. A relação entre economia e a saúde num país é bem forte, com algumas exceções. Se a economia mundial desmorona, custará muito caro às vidas humanas.

Haverá outras pandemias no curto ou médio prazo? 
A última pandemia que tivemos foi a da gripe, em 2009, não muito grave; outras, em 1957 e 1968, que foram bem graves também, não muito longe do que vivemos agora. A Aids, desde os anos 1980, matou 65 milhões de pessoas e deixou muitas infectadas. E a pandemia mais grave que tivemos foi em 1918-19, a gripe espanhola, que matou mais gente que a Primeira Guerra Mundial. Mas, há muito mais pessoas mortas de maneira indireta pela pandemia que da doença em si mesma. Muitas pessoas mortas de fome.

É muito difícil. É preciso tomar as medidas adequadas, mas, ao mesmo tempo, é preciso balancear. É a primeira vez que podemos vacinar tão cedo numa pandemia e será muito útil para encurtá-la e limitar os efeitos secundários, porque se o mundo continuar como está agora durante ainda três ou quatro anos, será um desastre. Já é. Mas queremos um desastre o mais curto possível.





Ainda bem que tem a ciência. 
O problema da pandemia é que a ciência se tornou muito politizada. A ciência não é realmente separada da política e não é sempre tão clara. Tem decisões extremamente difíceis, como o fechamento das escolas. Tem que fechar ou não? Não há uma resposta realmente científica para isso. Depende sempre das condições, mas é uma questão sobre o que é importante, qual o valor da educação de uma criança em relação a um excesso de mortalidade, quais são as implicações dentro de 10 anos, implicação humana e econômica. São coisas extremamente difíceis de avaliar, por isso, é frequente que venha uma decisão mais moral e ética do que realmente científica. Onde colocamos mais valor é a grande questão.

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