Jornal Estado de Minas

PANDEMIA

Vacina COVID-19: Como foi possível ser tão rápido?

 

As vacinas estão entre as intervenções em saúde pública de maior impacto já implementadas, juntamente com a disponibilidade de água potável para a população. As vacinas previnem 6 milhões de mortes anualmente por doenças infecciosas (Rodrigues C; Plotkin, Fronttiers in microbiology, july 2020).



Geralmente, o desenvolvimento de vacinas pode levar até uma década ou mais, embora, há 70 anos, a primeira vacina para pólio tenha levado “apenas seis anos” em uma época sem grandes recursos tecnológicos se comparada aos dias atuais. Mais recentemente, a vacina para zika levou apenas 6,5 meses da sua concepção até testes em humanos. Na pandemia do H1N1, em 2009, somente seis meses.

Neste cenário de grave crise sanitária e humanitária mundial, com todos os esforços voltados para uma solução rápida para conter a pandemia da COVID-19, presenciamos movimento muito interessante de cooperação de grande parte da comunidade científica internacional. Como exemplo emblemático, o isolamento e compartilhamento do material genético do Sars-CoV2 para todos os países em questão de dias.

Com os conhecimentos acumulados nas crises de 2003 – Sars (1º coronavírus com risco pandêmico) e Mers em 2012 e por se tratar de vírus do mesmo gênero – o coronavírus –, o alvo antigênico, bem como plataformas de desenvolvimento de vacina, foi estruturado.



No caso da Sars (2003), não foi possível sequer testar a vacina, pois a doença desapareceu em poucos meses. Para a Mers, até hoje estão em desenvolvimento protótipos de vacinas, com inerentes dificuldades de se testar sua eficácia pela raridade deste agravo, que ocorre quase que exclusivamente na península arábica.

Diante dessa crise, a demanda por uma vacina segura e eficaz foi o objetivo de todos os envolvidos neste enfrentamento. Por iniciativa da OMS, foi estabelecido a Covax, com participação de mais de 190 países, Gavi e outros organismos internacionais, para acelerar o desenvolvimento de vacinas seguras e eficazes. Neste grande esforço, governos assumiram e compartilharam alguns riscos financeiros na manufatura de “protótipos de vacina”, pois ainda não tinham sido avaliadas sua eficácia e segurança, antes de sua liberação.

Caso esses protótipos se mostrassem seguros e eficazes, a sua produção já estaria garantida e em andamento, agilizando a sua distribuição. Devido aos avanços anteriores na vacinologia, em 8 de abril de 2020, havia 73 vacinas candidatas sob investigação pré-clínica (Thanh Le et al., 2020). Dessas, seis eram em testes de fase 1 ou 1/2 e um estava em testes de fase 2/3, em 28 de maio de 2020. Isso, quatro meses após a identificação do Sars-CoV2.



Esses novos arranjos deram às instituições e pesquisadores os recursos necessários para os ensaios clínicos, avançando rapidamente dos estágios pré-clínicos para os estágios clínicos posteriores da pesquisa (fases 1, 2 e 3). Sendo assim, os fabricantes de vacina tiveram mais confiança para aumentar a capacidade de produção muito mais cedo do que normalmente o fariam.

A questão dos recursos e marcos regulatórios são etapas importantes no desenvolvimento de medicamentos e vacinas. No atual contexto, eles foram ágeis, desembaraçando as etapas regulatórias e facilitando o acesso aos recursos. Isso com certeza reduziu consideravelmente o tempo de seu desenvolvimento e realização dos estudos clínicos.

 

Alvos identificados


No desenvolvimento de vacinas, a etapa crucial é identificar o alvo (a antígeno = o alvo de ataque de nosso sistema de defesa), pois todos os outros processos dependem dessa etapa. Esses dados foram compartilhados “poucas horas” depois do sequenciamento do genoma do coronavírus. Aqui, os conhecimentos acumulados da Sars (2003) e da Mers (2012) ajudaram muito e, com isso, economizaram-se anos de pesquisa.



O uso de tecnologias de plataforma como RNA mensageiro (mRNA) e vacinas com vetores virais também facilitou o seu rápido desenvolvimento. Tanto a vacina Pfizer/BioNTech/Moderna quanto várias outras em ensaios clínicos de fase 3, incluindo a vacina da Universidade Oxford/AstraZeneca, são sistemas 'plug-and-play', onde uma vez que um antígeno adequado (uma molécula que desencadeia uma resposta imune) foi identificado, sua sequência de DNA ou RNA pode ser reproduzida em uma plataforma pré-validada – nesse caso, em um pedaço de RNA ou no genoma de um vírus de resfriado comum desativado (no caso de vários protótipos de vacinas é utilizado o adenovírus) – para criar uma vacina candidata.

A plataforma de mRNA cria veículos de entrega que passam as instruções genéticas para a máquina de produção de proteínas no citoplasma de nossas células, não interferindo em nosso material genético, sendo degradadas em até 72 horas após sua introdução. Sequencialmente, são produzidos os antígenos, proteínas equivalentes aos fragmentos virais, desencadeando a resposta imunológica de nosso organismo.

O fato de essas tecnologias já estarem sendo desenvolvidas para outros vírus e outras doenças, como o câncer, sem dúvida acelerou ainda mais o processo. Isso significou que os protótipos vacinais pudessem ser desenvolvidos rapidamente, que alguns dados de segurança sobre esses tipos de vacinas já fossem conhecidos e que os processos de produção fossem acelerados e com redução de custos.



O próximo estágio do desenvolvimento de vacinas são os ensaios em humanos, que geralmente ocorrem sequencialmente, começando com os de fase 1, de segurança, em um pequeno número de voluntários sadios, seguidos pelos de fase 2 em grupos maiores e, finalmente os de fase 3, envolvendo milhares ou dezenas de milhares de pessoas para avaliação de eficácia e novamente de segurança.

Isso poderia levar muito tempo: solicitação de recursos, aprovação ética, negociação com fabricantes e recrutamento de participantes. O apelo por uma vacina, a comunicação em tempo real (aqui o lado bom das redes foi mobilizado) também tornaram mais rápido e fácil o recrutamento de participantes para o teste.

Os ensaios clínicos também podem demorar muito se uma doença for rara, porque leva mais tempo para avaliar a sua eficácia. Por exemplo, durante anos um grande obstáculo para testar vacinas de ebola foi o pequeno número e tamanho dos surtos, até que ocorreu um surto de tamanho suficiente na África Ocidental em 2014-2016, quando então foi possível testar e aprovar uma vacina segura e eficaz.



O grande número de casos de COVID-19, inclusive em países com ampla infraestrutura para a realização de ensaios clínicos randomizados, é uma tragédia para a humanidade, mas também possibilitou a rápida realização dos testes de vacinas que ajudarão a acabar com essa crise.

Além disso, o envolvimento de locais de teste em muitos países diferentes permitiu aos pesquisadores 'seguirem o vírus' até certo ponto, recrutando mais voluntários de áreas onde o vírus está em alta, o que significa menos tempo de espera para descobrir a eficácia de uma vacina.

Adiar a construção ou ampliação de vacinas e fortalecer as cadeias de abastecimento necessárias para distribuí-las a todos os cantos do globo cria gargalos adicionais que podem custar vidas.

Ao compartilhar parte desse risco com os fabricantes, a Gavi (Aliança para Vacina) e seus parceiros da Covax, a Coalition for Epidemic Preparedness Innovations e a Organização Mundial da Saúde, permitiram que os fabricantes iniciassem o processo de produção, o que significa que as pessoas em todos os países deverão ter mais chances de acesso às vacinas. Grande parte do risco ficou por conta das nações envolvidas nessa coalizão.



Claro que todas estas etapas foram priorizadas pela sociedade civil, instituições de pesquisa e universidades. Ressaltamos o papel dos participantes que atenderam ao clamor do chamamento dos pesquisadores para que se voluntariassem nos ensaios clínicos.

A pandemia da COVID-19 demonstrou que é possível desenvolver, testar e revisar várias vacinas seguras e eficazes contra uma nova doença em menos de um ano. Uma nova era na vacinologia se inicia. Ter terminado com resultados de eficácia tão encorajadores de quatro vacinas (até 7/1/2021) nos coloca em uma posição extraordinariamente promissora, tanto para um efetivo controle desta pandemia quanto para desenvolver vacinas contra outras doenças, incluindo futuros patógenos com potencial pandêmico.

Foi sem dúvida um dos grandes feitos da ciência neste início de século. Devemos ter orgulho de nossas instituições de pesquisa e dos organismos internacionais (OMS, Gavi, Covax). A ciência sai fortalecida.



No entanto, temos que rever nosso modo de vida no planeta Terra. A pandemia de COVID-19 não foi um evento raro e aleatório, mas um sintoma de nossa sociedade de consumo que demanda produção em larga escala de proteína animal, com ruptura e destruição ecológica perpetradas contra o planeta. A continuar essa destruição de ecossistemas, a questão que se coloca não é se teremos outra pandemia, mas sim quando e quão grave ela será.

Fonte: https://www.gavi.org/vaccineswork (acesso 7 janeiro 2021), www.thelancet.com/ planetary-health Vol 5 – January 2021

*Infectologista integrante do Comitê de Enfrentamento à COVID-19 da PBH, em autoria com professor Mateus Westin, professora Maria do Carmo Barros de Melo, dra. Ana Lúcia Teixeira e equipe Boletim Matinal


 

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