A menção da palavra “barragem” é suficiente para transtornar o agricultor Aílton Vitor Moreira, de 38 anos. Sobrevivente do rompimento da Barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, que completa dois anos neste segunda-feira (25/01), Aílton ficou com um pavor tão grande que jamais retornou à casa devastada pela lama para buscar nada. “Nunca mais vou pôr os pés naquele lugar. Saí com a roupa do corpo. O que eu passei, ninguém sabe. Vi foi a morte me perseguindo. Nunca mais as coisas vão ser como antes”, diz, relutante, num dos raros momentos em que se permite comentar o assunto. O abalo nele é nítido: no olhar perdido, nas mãos que se esfregam repetidamente, no rosto sério.
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'Nosso compromisso é jamais esquecer Brumadinho', diz diretor da ValeEm busca da vacina brasileira, país financia 11 projetosHomem de 46 anos morre em acidente de carro na Via Expressa, em ContagemAcordo sobre reparação de Brumadinho é adiado mais uma vezFamílias mantêm esperança de encontrar 11 'joias' que continuam soterradasBrumadinho 2 anos: veja como estão os marcos da tragédiaMoradores dos bairros devastados e de outras áreas do Vale do Rio Paraopeba afirmam ser pegos de surpresa, em plena pandemia do novo coronavírus, com cortes no fornecimento de água ou seu recebimento sem qualidade ou garantia, além de não ter perspectivas sobre a continuidade dos auxílios emergenciais e a disponibilidade de recursos para serem indenizados. “A gente não sabe de nada. Queríamos decidir nossa vida, mas tomaram a vida da gente”, reclama Aílton.
Para cobrar mais transparência da Vale, a mineradora responsável pela estrutura que se rompeu, e do poder público, os atingidos e suas assessorias técnicas lançaram um manifesto, que foi entregue à Justiça. O texto representa a vontade dos atingidos no curso da reparação que vem sendo negociada em audiências do governo do estado com a empresa.
Uma dessas assessorias, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), reuniu uma “matriz de medidas reparatórias emergenciais de 365 páginas depois de ouvir 3.823 pessoas em Brumadinho. No trabalho foram elencados os principais danos sofridos e como os atingidos desejam ser reparados, bem como participar das decisões. A falta de informações e de garantias é o que mais tem sido cobrado pelos entrevistados.
As principais informações faltantes ou mal disseminadas, segundo essa matriz, são referentes à segurança das barragens remanescentes, às condições tóxicas e ecológicas do Rio Paraopeba, às interrupções e à qualidade da água distribuída às comunidades. Ao mesmo tempo, querem garantia de acesso a água de qualidade, direito a moradia a quem perdeu sua casa ou teve imóveis e estruturas danificados, recebimento e a manutenção de estruturas de saúde, assistência social, saneamento, educação, segurança alimentar, trabalho, cultura e lazer para as comunidades atingidas pelo rompimento, entre outras necessidades.
INFORMAÇÃO
Pelo perfil dos atingidos atendidos pela Aedas são evidentes as dificuldades de acesso a informações por falta de condições financeiras e técnicas. Ao todo, entre os atendidos, 54,7% não exercem qualquer atividade remunerada, a maioria mulheres (58%), que com frequência precisam atender a obrigações domésticas, quando não sustentam completamente a família. Os programas de transferência de renda ou auxílio social chegam a 18,6% do número total de pessoas atingidas que participaram do registro familiar; desses, 47% recebem o Bolsa-Família.
A necessidade de água também é latente. Apenas 45% recebem fornecimento formal de água por rede. Do restante, 34% usam poços artesianos, 15% água de nascentes e 6% dependem ainda de caminhões-pipa. Entre as pessoas atingidas com acesso a água por rede, apenas 32% declararam recebê-la regularmente, ao passo que para 68% o abastecimento é irregular, com interrupções em diferentes períodos da semana. Chega a 62% o índice de quem declara se sentir inseguro quanto ao uso da água fornecida pelas redes.
Êxodo esvazia Córrego do Feijão
Há momentos em que se encontra mais operários da Vale – mineradora que operava as barragens – circulando ou fazendo obras do que pessoas locais. Menos à noite, quando as ruas ficam praticamente vazias. Somando-se a isso os relatos de problemas de infraestrutura comuns aos demais territórios, a situação para muitos é descrita como de abandono, o que se agravou com a pandemia do novo coronavírus, já que as condições sanitárias são fundamentais para evitar essa doença e outras mais.
O drama do passado se soma a problemas que, na visão dele, fazem com que as pessoas deixem a comunidade. “A vida se tornou um inferno. Obras todos os dias. Ruído de geradores das obras funcionando por 24 horas. Os comerciantes foram embora. Não temos mais açougue, venda, lanchonete, padaria, farmácia: para tudo precisamos ir a Brumadinho”, afirma. A viagem é de 50 minutos de ônibus por 15 quilômetros, mas só há dois horários, de manhã e de tarde.
O agricultor Clenilson Geraldo de Paila, de 39, perdeu o acesso a sua horta pela avalanche de lama que destruiu estradas, rede elétrica e impede o uso da água. Na sua casa, no Córrego do Feijão, o drama da falta de água também impede que o recurso seja usado por ele, a mulher, a filha e o sogro. “Nos dias em que não falta, vem uma água de cor marrom, depois de cor branca. Não nos apresentam análises. Assim, não a usamos para nada e temos de nos virar racionando a água mineral que a Vale fornece. Vivemos com auxílio emergencial, mas não sabemos até quando. Enquanto isso, indenização nem cheiro”, critica.
Efeitos expandidos
Hoje, 446 famílias estão fora de suas casas desde o desastre de Brumadinho, enquanto 432 perderam a habitação em Mariana e Barra Longa, áreas atingidas pelo rompimento da Barragem do Fundão, operada pela Samarco e pertencente à Vale e à BHP Billiton, em novembro de 2015. Dessa vez, no entanto, as indenizações têm sido feitas mais rapidamente.