Jornal Estado de Minas

DESASTRE DE BRUMADINHO

Incertezas dois anos depois do desastre de Brumadinho

A menção da palavra “barragem” é suficiente para transtornar o agricultor Aílton Vitor Moreira, de 38 anos. Sobrevivente do rompimento da Barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, que completa dois anos neste segunda-feira (25/01), Aílton ficou com um pavor tão grande que jamais retornou à casa devastada pela lama para buscar nada. “Nunca mais vou pôr os pés naquele lugar. Saí com a roupa do corpo. O que eu passei, ninguém sabe. Vi foi a morte me perseguindo. Nunca mais as coisas vão ser como antes”, diz, relutante, num dos raros momentos em que se permite comentar o assunto. O abalo nele é nítido: no olhar perdido, nas mãos que se esfregam repetidamente, no rosto sério.





Como ocorre com Aílton, o sofrimento pela perda de amigos entre os 270 mortos no desastre é suportado à base de medicamentos psiquiátricos de uso controlado. Um vazio deixado e que os atingidos como ele precisaram suportar, ainda mais sabendo que ninguém ainda foi preso. Dois anos depois, novas questões angustiam os atingidos. Entre elas, a falta de informações sobre seu destino e o de suas famílias.

Moradores dos bairros devastados e de outras áreas do Vale do Rio Paraopeba afirmam ser pegos de surpresa, em plena pandemia do novo coronavírus, com cortes no fornecimento de água ou seu recebimento sem qualidade ou garantia, além de não ter perspectivas sobre a continuidade dos auxílios emergenciais e a disponibilidade de recursos para serem indenizados. “A gente não sabe de nada. Queríamos decidir nossa vida, mas tomaram a vida da gente”, reclama Aílton.

 

Para cobrar mais transparência da Vale, a mineradora responsável pela estrutura que se rompeu, e do poder público, os atingidos e suas assessorias técnicas lançaram um manifesto, que foi entregue à Justiça. O texto representa a vontade dos atingidos no curso da reparação que vem sendo negociada em audiências do governo do estado com a empresa.



Uma dessas assessorias, a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), reuniu uma “matriz de medidas reparatórias emergenciais de 365 páginas depois de ouvir 3.823 pessoas em Brumadinho. No trabalho foram elencados os principais danos sofridos e como os atingidos desejam ser reparados, bem como participar das decisões. A falta de informações e de garantias é o que mais tem sido cobrado pelos entrevistados.


As principais informações faltantes ou mal disseminadas, segundo essa matriz, são referentes à segurança das barragens remanescentes, às condições tóxicas e ecológicas do Rio Paraopeba, às interrupções e à qualidade da água distribuída às comunidades. Ao mesmo tempo, querem garantia de acesso a água de qualidade, direito a moradia a quem perdeu sua casa ou teve imóveis e estruturas danificados, recebimento e a manutenção de estruturas de saúde, assistência social, saneamento, educação, segurança alimentar, trabalho, cultura e lazer para as comunidades atingidas pelo rompimento, entre outras necessidades.

 

Vista do Córrego do Feijão, área invadida pela lama no desastre que matou 270 pessoas em 25 de janeiro de 2019: trauma ainda é nítido na comunidade (foto: MATEUS PARREIRAS/EM/D.A.PRESS)

 

INFORMAÇÃO


Pelo perfil dos atingidos atendidos pela Aedas são evidentes as dificuldades de acesso a informações por falta de condições financeiras e técnicas. Ao todo, entre os atendidos, 54,7% não exercem qualquer atividade remunerada, a maioria mulheres (58%), que com frequência precisam atender a obrigações domésticas, quando não sustentam completamente a família. Os programas de transferência de renda ou auxílio social chegam a 18,6% do número total de pessoas atingidas que participaram do registro familiar; desses, 47% recebem o Bolsa-Família.





 

A necessidade de água também é latente. Apenas 45% recebem fornecimento formal de água por rede. Do restante, 34% usam poços artesianos, 15% água de nascentes e 6% dependem ainda de caminhões-pipa. Entre as pessoas atingidas com acesso a água por rede, apenas 32% declararam recebê-la regularmente, ao passo que para 68% o abastecimento é irregular, com interrupções em diferentes períodos da semana. Chega a 62% o índice de quem declara se sentir inseguro quanto ao uso da água fornecida pelas redes.


Clenilson Geraldo depende de água fornecida pela mineradora (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Êxodo esvazia Córrego do Feijão

O bairro Córrego do Feijão, em Brumadinho, experimentou grande movimento de resgate, bombeiros, policiais e parentes em busca de notícias de suas vítimas. Passados dois anos do maior desastre brasileiro em mineração, com 270 mortes, após o rompimento das barragens B1, B4 e B4A, o lugarejo se tornou um deserto habitacional. Das 415 pessoas vivendo no local registrados pelo Censo de 2010, moradores estimam ter restado 60.

Há momentos em que se encontra mais operários da Vale – mineradora que operava as barragens – circulando ou fazendo obras do que pessoas locais. Menos à noite, quando as ruas ficam praticamente vazias. Somando-se a isso os relatos de problemas de infraestrutura comuns aos demais territórios, a situação para muitos é descrita como de abandono, o que se agravou com a pandemia do novo coronavírus, já que as condições sanitárias são fundamentais para evitar essa doença e outras mais.





Nelson Maia recorre a apoio psicológico e a remédios, mas tem dificuldade com o sono: 'A gente só dorme quando o corpo não aguenta mais' (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

“Aqui, cada dia vai embora um vizinho, um amigo, um compadre. Os problemas que ainda temos nos fazem muita raiva. Qualquer pessoa que sai, sabe que vai carregar a saudade e a indignação, mas não dá para viver todos os dias sendo humilhado, num lugar em que a gente nem dorme com medo de outra barragem descer”, reclama o aposentado Nelson Alves Maia, de 75 anos, que mora no Córrego do Feijão com a mulher.

Mudança no bairro atingido pelo desastre: moradores estimam que somente 60 das mais de 400 pessoas que viviam no local ainda estejam lá (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

A experiência de ter perdido os amigos e parentes da esposa, como cunhados e sobrinhos que trabalhavam na mina, o obriga a fazer uso de remédios psiquiátricos. “Vou ao posto de saúde três vezes ao mês para consultar com o psicólogo. Os remédios nos trazem 20 minutos de sono, mais 20 depois. A gente só dorme quando o corpo não aguenta mais”, conta.

O drama do passado se soma a problemas que, na visão dele, fazem com que as pessoas deixem a comunidade. “A vida se tornou um inferno. Obras todos os dias. Ruído de geradores das obras funcionando por 24 horas. Os comerciantes foram embora. Não temos mais açougue, venda, lanchonete, padaria, farmácia: para tudo precisamos ir a Brumadinho”, afirma. A viagem é de 50 minutos de ônibus por 15 quilômetros, mas só há dois horários, de manhã e de tarde.





O agricultor Clenilson Geraldo de Paila, de 39, perdeu o acesso a sua horta pela avalanche de lama que destruiu estradas, rede elétrica e impede o uso da água. Na sua casa, no Córrego do Feijão, o drama da falta de água também impede que o recurso seja usado por ele, a mulher, a filha e o sogro. “Nos dias em que não falta, vem uma água de cor marrom, depois de cor branca. Não nos apresentam análises. Assim, não a usamos para nada e temos de nos virar racionando a água mineral que a Vale fornece. Vivemos com auxílio emergencial, mas não sabemos até quando. Enquanto isso, indenização nem cheiro”, critica. 

Efeitos expandidos


Por seis meses, o pedreiro Antônio Soares, de 44 anos, a mulher e as duas filhas, de 10 e de 22, tiveram de deixar a tranquilidade de São Sebastião das Águas Claras, o distrito de Macacos, em Nova Lima, por uma vida conturbada no bairro Lagoinha, Noroeste de BH. O rompimento das barragens da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, fez com que todos os planos de segurança desse tipo de estrutura da mineradora Vale fossem revistos e centenas de pessoas precisaram ser evacuadas de áreas próximas a barragens em risco, como ocorreu com a família do pedreiro.

Hoje, 446 famílias estão fora de suas casas desde o desastre de Brumadinho, enquanto 432 perderam a habitação em Mariana e Barra Longa, áreas atingidas pelo rompimento da Barragem do Fundão, operada pela Samarco e pertencente à Vale e à BHP Billiton, em novembro de 2015. Dessa vez, no entanto, as indenizações têm sido feitas mais rapidamente.





Em Macacos, a sirene que deu o sinal para que o pedreiro e sua família de casa saíssem de casa soou na noite de um sábado, 17 de fevereiro de 2019, tirando turistas de pousadas e restaurantes em meio ao desespero de um possível rompimento da Barragem B3/B4, da Mina de Mar Azul. “Mesmo quando conseguimos voltar, as coisas não melhoraram muito. Não está fácil conseguir trabalho nos restaurantes, pousadas e casas de fim de semana. Ninguém quer investir e fazer obra nem reforma, porque não sabe como vai ser com essa barragem”, desabafa Antônio Soares.

Morador de Macacos e auxiliar de serviços gerais em uma pousada na comunidade, Pedro Bertoldo, de 31, afirma que comerciantes, empresários e trabalhadores têm sofrido repetidas vezes desde que a sirene soou. “Quando as pessoas estavam voltando a ter confiança e a frequentar, mesmo as áreas protegidas, com acessos livres dos efeitos da barragem para pousadas e restaurantes, veio a pandemia afugentando de novo os hóspedes e clientes”, afirma.  

“Agora temos pontos de fuga por rotas livres, mas as pessoas ficam receosas. Por isso, era importante terminar logo o desmanche da barragem”, disse.

Se por um lado há mais pessoas desalojadas desde o rompimento ocorrido em Brumadinho, dois anos após o desastre, os atingidos têm conseguido ser indenizados com três vezes mais agilidade do que os que sofreram com o desastre envolvendo a Barragem do Fundão, em Mariana, em 2015.

Em 2019, a Vale celebrou uma média de 2,3 acordos por dia, que passaram a 8,4 acertos judiciais no ano passado. No primeiro ano de atuação, em 2017, a Fundação Renova, responsável pela reparação de Mariana, o ritmo era de 6,15 acordos diários, que caiu pela metade no segundo ano. Até o fim de 2020, foram celebrados 3.800 acordos cíveis e trabalhistas entre a Vale e os atingidos




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