Vicente de Paula Gabrich, de 90 anos, passou o Natal longe dos filhos e há 11 meses só os vê da janela de casa. Elizabeth Fernandes Rennó, da mesma idade, não acompanhou os primeiros passos da bisneta, que nasceu pouco antes da pandemia de COVID-19. Joversino Emílio de Pádua, de 97, não toma sua sagrada cerveja na praia há um ano e meio. Retirados do grupo prioritário da primeira fase do Plano Nacional de Imunização (PNI), idosos mineiros fora dos asilos aguardam, ansiosos, pela sua vez na longa “fila” da vacinação contra COVID-19.
A campanha, por ora, contempla apenas os maiores de 60 anos em casas de repouso, ao lado de profissionais de saúde, indígenas e pessoas com deficiência internadas. O Ministério da Saúde deixou o encaixe das demais faixas da terceira idade a cargo dos estados e municípios. Em Minas e Belo Horizonte, ainda não há datas definidas ou previsão para atender a esses grupos, enquanto outras localidades largaram na frente.
Na capital carioca, a proteção de idosos acima de 99 anos começa na segunda-feira. A prefeitura estima que, até o fim de fevereiro, todo o público com mais de 80 anos estará vacinado. No Recife (PE), a imunização da população com mais de 85 teve início na última quarta (27/1).
Em ritmo de conta-gotas, o vacinômetro criado pela Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG) contabilizava, até a tarde de ontem (30/1), 165.853 protegidos, entre os quais 10.510 idosos. Esse número corresponde a 0,3% dos habitantes mineiros acima de 60 anos, que somam 3,45 milhões, segundo estimativas do IBGE para 2021. Apenas na faixa etária dos maiores de 70, há em torno de 1,5 milhão de mineiros. Dados da SES-MG mostram que 80% das mortes pela COVID-19 estão concentradas nesse grupo.
Impaciência
Aos 90 anos, a escritora Elizabeth Rennó diz que, apesar das notícias alarmantes relacionadas à pandemia do novo coronavírus, mantém o medo sob controle. “A impaciência supera o medo. A vacinação já era para estar mais adiantada. O processo foi muito pouco planejado, tanto em Minas como no Brasil. As vacinas foram compradas de última hora, a produção nacional atrasou. O povo ficou totalmente prejudicado”, comenta.
Para a mineira, 2020 foi um ano perdido. Membro da Academia Mineira de Letras, ela ressalta que sua produção intelectual não ficou prejudicada, já que seguiu lendo, escrevendo e publicando artigos de casa. “Tive também um livro premiado no Rio de Janeiro, o que foi muito bom. Já do ponto de vista pessoal, conto muitas perdas. Não pude conviver com meus bisnetos, que só vejo por fotos e vídeos. Minha família é grande e não pôde se reunir no Natal. E o pior de tudo: muitos amigos morreram de COVID e eu não pude sequer me despedir deles”, lamenta.
Por sua vez, o dentista Vicente de Paula Gabrich, de 90, se queixa de prejuízos em todas as esferas da vida. Desde março, ele não vai ao consultório, onde atende há 63 anos. “Nem sei se ainda vou ter pacientes depois que tudo isso passar. Se ainda tiver, atendo”, pondera o idoso, que passou a quarentena na companhia da esposa, Luzia Nice Gabrich, de 79.
Vicente conta que o casal saiu de casa uma única vez nos últimos 11 meses, para ir ao batizado da neta mais nova, que vai completar um ano em fevereiro. O contato com os outros dois netos e os três filhos, desde então, é restrito a videochamadas e ligações. “Não saímos nem para fazer compras no supermercado. Os filhos trazem e deixam para nós na varanda. Nesses momentos, aproveitamos para vê-los da janela”, relata o dentista.
Ansioso pelos imunizantes, ele critica os imbróglios políticos que permeiam a campanha de imunização. “Nós estamos é roubados. Nem vacina podemos esperar desses ‘desgovernos’.”
"A vacinação ficou reduzida a uma discussão política entre os que estão no poder e os que desejam tomar o poder. Não tem ninguém preocupado com a sociedade. Se tivessem levado a pandemia mais a sério e tirado a 'politicagem' desse negócio, já estaríamos vacinados"
Joversino Emílio de Pádua, de 97 anos, comerciante
Politização
O tom do comerciante Joversino Emílio de Pádua é mais exaltado. Aos 97 anos, diz que se lembra nitidamente dos tempos difíceis em que surtos e epidemias matavam sem medida, pois não havia vacinas. “Eu era criança e morava em Morro Vermelho, pros lados de Caeté. Todo dia o sino da cidade tocava várias vezes, sinalizando que uma criança havia morrido de sarampo. A gente escutava e logo perguntava: ‘Morreu quem?’. Sinceramente, não esperava assistir a isso de novo”, recorda-se.
“Hoje, temos tecnologia, temos ciência avançada, mas a política trava tudo. A vacinação ficou reduzida a uma discussão política entre os que estão no poder e os que desejam tomar o poder. Não tem ninguém preocupado com a sociedade. Se tivessem levado a pandemia mais a sério e tirado a ‘politicagem’ desse negócio, já estaríamos vacinados”, complementa.
Seu Joversino é dono de uma loja de materiais elétricos em Belo Horizonte, que ele administra até hoje. O trabalho seguiu durante a pandemia, já que o estabelecimento se manteve aberto. Falta mesmo ele diz que sente das pausas anuais que costumava fazer para curtir um descanso na praia. “Faz um ano e meio que meu apartamento em Guarapari (ES) está fechado. Sinto falta de tomar uma cerveja na Praia do Morro”, afirma.