Prelúdio do compositor capixaba Sérgio Sampaio para a maior festa brasileira, o verso “eu quero é botar meu bloco na rua” ficará preso na garganta em Belo Horizonte pelo primeiro ano na década. Depois de 2020, quando a pandemia de COVID-19 chegou ao país logo após a folia, e passou a sufocar todo o planeta, neste fevereiro, foliões terão que manter suas fantasias no baú e esperar por outra oportunidade para aplacar a saudade de se aglomerar sem culpa e sem medo. E, pelo menos nos planos da maioria, isso deve ocorrer em uma comemoração “estrondosa”, já em 2022.
O conselho para o recolhimento geral vem de um folião de 80 anos, Luiz Mário Ladeira, o Jacaré. Um dos fundadores da Banda Mole – que em circunstâncias normais teria desfilado ontem, decretando o grito de carnaval em BH –, uma das figuras mais emblemáticas do carnaval da capital prepara-se para receber a vacina contra a COVID-19. Consciente, ele defende que a maior celebração, neste momento, é se cuidar para poder viver um carnaval sem precedentes no ano que vem. Com o tradicional desfile na Avenida Afonso Pena cancelado, Jacaré reforça o coro dos blocos da capital, certos de que, com o número crescente de casos de COVID-19 e de mortes, não há clima nem segurança para a festa.
No entanto, mesmo enfrentando a falta de recursos, muitos dos blocos que surgiram para fazer renascer o carnaval de rua na capital planejam alternativas para não deixar a festa morrer. O Estado de Minas ouviu representantes dos grupos carnavalescos, entidades representativas do segmento, das escolas de samba e da Belotur para traçar um panorama de como fica a folia diante dessa pausa forçada. “A gente não vai acabar”, decreta o historiador e carnavalesco Guto Borges, regente de diversos blocos de BH.
Nos próximos dias, as ruas de Belo Horizonte repetirão cenas de carnavais passados, quando a cidade era pura monotonia numa época do ano em que o melhor carnaval da cidade era na rodoviária, na estrada ou no aeroporto. Esse cenário começou a mudar em 2009, quando, mesmo sem ajuda do poder público, belo-horizontinos decidiram desfilar irreverência pelas ruas da capital e não pararam mais, tornando a festa de rua em BH uma das referências no país.
Passados 12 anos desde que os foliões decidiram colocar o bloco na rua no peito e na raça – inclusive contrariando decreto municipal da época, que restringia festas em espaços públicos –, em tempos de pandemia os blocos voltam a se queixar de falta de suporte, o que dificulta, inclusive, a alternativa de promover atividades on-line. Mas, de novo, prometem resistir, superar e se reinventar. Este ano, porém, os grupos têm se posicionado publicamente a favor do distanciamento social e da vacinação ampla da população, inclusive com a publicação de notas públicas.
O carnaval de 2020
O carnaval de 2020 chegou a ser associado – sem comprovação – aos primeiros casos da COVID-19 no país, embora a transmissão comunitária tenha sido confirmada pelo Ministério da Saúde em fins de março, cerca de um mês depois do período da festa, que ocorreu entre 22 e 25 de fevereiro.No ano passado, quando a folia se consolidava em BH depois de uma década de crescimento do número de foliões nas ruas, os blocos foram surpreendidos com exigências em relação aos trios elétricos, o que chegou a ameaçar a realização de vários desfiles e a de fato impossibilitar outros. Apesar do revés, a festa lotou as ruas da cidade de foliões que mal podiam sonhar que, neste ano, o carnaval se tornaria um grande tbt, hashtag em inglês para throwback Thursday, que, em português, significa retorno à quinta-feira, e que se tornou nas redes sociais um marcador de boas lembranças.
"Banda Mole, só com todo mundo vacinado"
Aos 80 anos, Luiz Mário “Jacaré” Ladeira, uma das figuras emblemáticas do carnaval de Belo Horizonte, já tem data para ser vacinado. A imunização será no dia 19, no Rio de Janeiro, três dias depois da terça-feira de um carnaval que não vai ser igual àquele que passou. Entusiasta da festa, ele defende o recolhimento no ano que seria o 46º desfile da Banda Mole, bloco que ajudou a criar. Para ele, está corretíssimo o cancelamento da festa como medida de controle da transmissão do novo coronavírus. “Vamos fazer um supercarnaval em 2022 e esquecer 2021”, afirma, com a autoridade de quem está ligado a um grupo que, no ano passado, levou cerca de 100 mil foliões à Avenida Afonso Pena.
Os fundadores da Banda Mole, Luiz e Helvécio Gaiola Trotta, defendem que o carnaval deve passar para o ano que vem, na época certa. Para eles, não adianta fixar outra data, em agosto ou setembro, como já se cogitou. “Só tem Banda Mole quando o risco de contaminação for zero – ou seja, com todo mundo vacinado”, afirma o Jacaré. “Um carnaval- temporão não vai funcionar. Cada local vai ter uma data. Vai ser uma bagunça total”, considera.
Mesmo que se estabelecesse uma data única, ele acredita que seria um carnaval muito estranho. “Você vai transferir o Natal? Vamos comemorar mais para frente? Não funciona. Nossa sugestão é fazer um supercarnaval em 2022. Quem sabe até com mais dias...”, projeta.
Um carnaval estrondoso em 2022
A ideia do cancelamento da folia este ano e um supercarnaval 2022 tem adeptos de peso. “O carnaval é contato. Então, no contexto pandêmico, com o isolamento social, o maior rigor no cuidado com a interação dos corpos se faz tão importante e nos solicita uma consciência coletiva. É fundamental que a gente tenha essa responsabilidade, também coletiva, de suspender temporariamente esse estado de graça, que é o estado carnavalesco, em prol desse cuidado maior”, afirma o antropólogo Rafael Barros, um dos fundadores do bloco Filhos de Tcha Tcha, parte do grupo de pioneiros na retomada da festa de rua na capital.Ator de destaque para a realização da festa, Rafa Barros destaca que os blocos têm levado para toda a sociedade essa campanha e a reflexão de que é fundamental suspender a festa este ano. “A gente precisa estar bem para viver essa catarse assim que possível”, diz, em relação ao período em que a pandemia estiver superada. E completa: “O carnaval que nascerá de todo esse confinamento, de todo esse sacrifício, há de ser um carnaval histórico, estrondoso.” Para comprovar a previsão, que é quase uma prece, ele lembra o carnaval vivido depois do controle da gripe espanhola, pandemia que marcou o início do século 20.
Da ferveção na rua para o mundo virtual
“Em tempos normais, a uma hora dessas a cidade estaria fervendo de alegria, fosse noite ou fosse dia”, afirma o músico Di Souza, que ajudou a fundar os blocos Então, Brilha!, Circuladô, É o Amô e Pisa na Fulô. E se não deu para ter para este ano nem ensaio de festa, os grupos partiram para debates e seminários virtuais. No último domingo de janeiro, por exemplo, o Brilha! fez a sua segunda live, e ainda avalia se será possível promover alguma atividade remota nos dias em que deveria ocorrer a festa na rua.
Em meio ao isolamento necessário para conter o novo coronavírus, os blocos publicaram nota em favor das únicas medidas eficazes para evitar a transmissão da COVID-19: distanciamento social e vacina. Enquanto o primeiro vigora e a segunda ainda não chegou para a esmagadora maioria, os carnavalescos tentam, como dá, inventar maneiras de minimizar o impacto da desmobilização sobre toda a cadeia produtiva por trás da festa.
“Durante todo o ano de 2020, os blocos vêm promovendo ações virtuais para de alguma maneira manter contato com suas comunidades e seguir existindo, apesar da crise. Alguns realizaram debates e seminários remotos, outros fizeram shows via lives... Muitos se inscreveram em projetos ou tentaram alcançar o auxílio emergencial, mas infelizmente apenas uma pequena parcela da comunidade carnavalesca foi atendida”, afirma Di Souza.
Antinegacionismo
Diante da impossibilidade do encontro na rua, os blocos propõem ações no ambiente virtual. “Teremos ações nas nossas redes sociais de registro de memória. Os integrantes falam sobre outros carnavais, outros cortejos do bloco”, afirma Nayara Garófalo, fundadora do bloco afro Angola Janga.Fotógrafos foram convidados para fazer a curadoria de imagens nas redes sociais. “A campanha é de conscientização de nosso público para permanecer em casa. Dá um pouco de desespero, pois carnaval é aglomeração. Mas é importante a conscientização das pessoas sobre a importância do isolamento e da vacina nesse contexto de negacionismo”, resume. Nesse meio tempo, o bloco fará o lançamento de um CD e um livro, um material para falar de cultura e da história afro-brasileira.
“A nossa primeira preocupação foi a segurança alimentar, psicológica e financeira de nossos integrantes”, afirma Nayara. No ano passado, durante a quarentena, o bloco se dedicou ao processo de formação dos integrantes e, para isso, criou um grupo de estudos com encontros remotos. “De modo geral, estamos muito focados na estruturação do grupo”, completa. O Angola optou por não fazer lives durante o carnaval para preservar a saúde dos integrantes. Ela lembra que as lives que começaram caseiras se tornaram superproduções, o que aumenta os riscos.
O Circuladô, bloco da Escola Percussão Circular, realiza as aulas de música adaptadas para o formato digital. “Estamos criando arranjos, fazendo composições, fomentando a nossa metodologia e estudos ao longo do ano”, revela Di Souza.
Fundador do maior bloco do carnaval de BH, o Baianas Ozadas, Géo Cardoso afirma que o isolamento social impediu que a banda do grupo fizesse shows em 2020, o que obrigou os músicos a buscar outras atividades para se manter financeiramente. Por isso, o bloco não promoveu nenhuma live. Mas, se houvesse apoio do poder público, acredita ele, os blocos poderiam ser um canal importante de informação sobre a COVID-19.
Festa sem dono
A Liga das Escolas de Samba fará live no dia 16, data em que desfilariam as agremiações, para discutir sobre o carnaval no período da epidemia e a postura do poder público com o setor. “Ano passado, conseguimos ser o segundo carnaval do país e era o carnaval da Belotur, do prefeito... Agora que estamos em pandemia, o carnaval não é de ninguém. Mas a festa é da gente, que faz o carnaval de verdade”, argumenta o presidente Márcio Eustáquio Antunes de Souza, ao defender suporte para quem depende da folia. “A COVID-19 bateu forte na periferia. A gente não vai sambar em cima do luto de ninguém, mas é preciso planejar o futuro”, conclui.