É de consenso entre médicos e autoridades de saúde que nenhum fármaco tem eficácia no tratamento da COVID-19 cientificamente comprovada. Mas o assunto gera polêmica, já que outra parcela de profissionais de saúde vem receitando alguns remédios no enfrentamento inicial da do- ença, e isso passa pela liberdade do médico – o Conselho Federal de Medicina (CFM), inclusive, recomenda que cada médico faça a prescrição conforme suas próprias convicções, e essa é uma decisão tomada em conjunto com o paciente.
No rol dos medicamentos que vêm sendo usados para tratar precocemente o coronavírus, estão a ivermectina, cloroquina, vitaminas C e D, zinco, antibióticos e o vermífugo Anitta. A ivermectina, usado no tratamento de vários tipos de infestações por parasitas, entre elas as causadas por piolhos e sarna, está no centro de uma denúncia feita pelas redes sociais do médico pneumologista Frederico Fernandes, presidente da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia (SPPT).
No sábado, ele contou através de um post no Twitter sobre o caso de um paciente que desenvolveu hepatite medicamentosa depois de ser internado com COVID-19. Trata-se de uma pessoa jovem, que manifestou sintomas leves da infecção e, depois de passar uma semana recebendo a ivermectina, a uma dosagem de 18 miligramas por dia (prescrição considerada equivocada na opinião de Frederico Fernandes), acabou apresentando piora em seu quadro de saúde.
A hipótese entre a equipe médica que atende o caso agora é que o problema esteja relacionado ao uso da ivermectina. Conforme Frederico Fernandes, o paciente agora está em avaliação quanto à necessidade de um transplante de fígado. “Muito triste ver uma pessoa jovem a ponto de precisar de transplante por usar uma medicação que não funciona em uma situação que não precisa de remédio algum”, postou o pneumologista.
A lesão hepática induzida por medicamentos é uma complicação hepática do uso de medicamentos, ervas e fitoterápicos de espectro variável, de alterações leves a hepatite aguda grave, que se manifesta algum período após a administração do medicamento. A médica hepatologista do Orizonti, Instituto Oncomed de Saúde e Longevidade, Maíra Fernandes Almeida Penna, explica que muitas drogas usadas em tratamentos médicos, incluindo ervas medicinais ou outras substâncias, podem provocar alterações no fígado. Na maioria das vezes, a médica esclarece, são manifestações leves, e em outros casos mais graves.
São alterações que podem estar associadas à dose prescrita, ou acontecer de forma imprevisível, as chamadas reações idiossincrásicas, ligadas ao metabolismo hepático da droga. “A toxicidade hepática pela ivermectina é rara e não é dosedependente, se enquadra na segunda definição. Ou seja, problemas gerados pelo uso não estão relacionados à dose. É uma droga segura, usada frequentemente. A questão é ser prescrita em situações em que não se tem comprovação científica, expondo o paciente a um risco desnecessário. Ao se prescrever um medicamento, deve ser sempre discutido com o paciente risco X benefício. Se o benefício não foi comprovado, não vale a pena correr o risco, por menor que ele seja”, afirma. Em casos mais severos de hepatite pode haver indicação de transplante do órgão.
Cuidados
A maioria das doenças hepáticas são inicialmente silenciosas, por isso é importante ter atenção aos sinais e manter os exames de rotina. Maíra lembra que são raros os casos de desenvolvimento de hepatite aguda relacionada à ivermectina. Não se trata de um medicamento de alto risco de toxicidade hepática, como se denominam danos no fígado causado por substâncias químicas. A questão passa mais pela necessidade de uso do remédio. E isso não tem a ver com a quantidade de doses, tempo de uso ou predisposições de saúde. São reações que não podem ser controladas. “É importante lembrar que os quadros de hepatite aguda são a via final de várias causas. Outros diagnósticos devem ser descartados antes de atribuir o quadro a um medicamento, incluindo a ivermectina”, ensina.
A ivermectina já foi recomendada como eficaz para tratar o coronavírus pelo ministro da Saúde e pelo presidente Jair Bolsonaro, e esteve em pauta em outra polêmica na última semana. Em comunicado divulgado na quinta-feira passada, a Merck Sharp&Dohme (MSD), subsidiária no Brasil da farmacêutica Merck, que fabrica a ivermectina, afirmou que o medicamento não consegue combater a infecção ocasionada pelo coronavírus. O “kit COVID", conjunto de remédios que vêm sendo preconizados para tratamento precoce da doença, vai em sentido contrário às orientações científicas, das autoridades sanitárias e de órgãos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Sobre a ivermectina, o médico infectologista e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dirceu Greco pontua que, na fase in vitro (testes em laboratório), as expectativas eram grandes, mas, a partir das avaliações clínicas, com experimentos em humanos, não houve resultados comprovados. “Até o momento não existe nenhum tratamento farmacológico, nenhum remédio com eficácia comprovada para a COVID-19", alerta. Dirceu reforça a necessidade de se manterem as medidas de prevenção ao coronavírus, de conhecimento geral, ainda mais diante do processo lento da vacinação que ocorre até agora no país e do provável surgimento de variantes do coronavírus mais infecciosas, o que já vem acontecendo, e que eventualmente demandem atualizações nos imunizantes.