Que ninguém duvide da força da amizade entre duas comadres. Em Sarzedo, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, ela foi capaz de vencer um muro de concreto e abrir uma brecha, com a necessária segurança, no isolamento imposto pela pandemia.
As amigas em questão são Maria Verônica Firmo dos Santos, de 70, e Maria Angélica das Mercês, de 79. Vizinhas há 44 anos, elas tiveram que abolir as conversas diárias ao fim da tarde na calçada, além das visitas para o café ou para o almoço, diante da disseminação do novo coronavírus.
Engenhosas, as duas, literalmente, cavaram uma saída. No caso, um buraco no muro que separa as casas, espaço por meio do qual elas mantêm as conversas em dia, sem arriscar a saúde.
Dona Maria Verônica conta que o serviço foi executado pelo marido dela, Pedro Gaspar dos Santos, de 73. “Ele já foi pedreiro, então foi fácil. Só arrancou daqui um bloco do muro, passou um reboco e pronto”, explica a aposentada.
Quitutes
Carinhosamente batizada de “janela da amizade”, a abertura permite que os casais sigam compartilhando “causos”, desabafos e quitutes. “Outro dia, teve um 'bolinho' na casa de familiares da Maria, pois o bisneto dela fez aniversário. O Mário, marido dela, não demorou para subir na janelinha e nos chamar para nos dar uns docinhos”, relembra dona Maria Verônica.“Ontem, eu é que me dei bem: Verônica fez um churrasco aí com o pessoal dela e eu senti o cheiro. Fui subindo na janelinha e ganhei um pratinho de carne. Quem disse que não dá para participar de festa na pandemia? Assim, a distância, dá sim!”, brinca dona Maria Angélica.
Recentemente, ela criou um instrumento para facilitar a troca de iguarias e outros objetos entre as famílias. Trata-se de um arame com ganchos nas pontas. Uma das extremidades fica encaixada no muro. Na outra, as comadres penduram sacolas, embalagens e até bilhetes.
“Quando eu quero mandar uma verdura ou recado qualquer para a Maria, mas não tem ninguém em casa, penduro no arame e deixo lá, virado para o lado da casa dela. Ela faz o mesmo quando quer me mandar alguma coisa. Deixar de mandar, de ser solidária uma com a outra, é que a gente não deixa”, relata dona Maria Verônica.
Antes do muro
A convivência entre as amigas remonta a 1977, quando dona Maria Verônica e seu Pedro Gaspar se mudaram para a Rua Campo do Meio, onde a vizinha Maria Angélica já vivia com o marido Mário Evangelista da Silva, de 85. A amizade começou com um gesto solidário.
“Eles compraram o terreno e vieram de mudança, mas o lugar ainda não tinha cobertura, não tinha nada. E eles foram fazer o almoço a céu aberto. Como ventava muito, o fogo não parava aceso. Daí eu chamei a Maria para cozinhar aqui na minha casa. Desse dia em diante, ficamos amigas para sempre”, relembra dona Maria Angélica.
O muro que hoje separa as duas residências, contam as comadres, foi erguido bem depois da mudança. “Primeiro, construímos uma cerca de arame e madeira, eu e ela, enquanto os maridos saíam para trabalhar. Entramos no mato, catamos a lenha e fizemos a cerca. Quando eles chegaram, já estava tudo pronto, eles até se assustaram! Só muitos anos depois é que subimos esse muro atual, de blocos”, diz dona Maria Angélica.
De perto, os vizinhos parecem formar uma só família. Uma das filhas de dona Maria Verônica é afilhada de dona Maria Angélica. Ela e o marido, por sua vez, consideram os netos da vizinha como se fossem seus. “Sou madrinha de uma só, mas as meninas todas me chamam de ‘dinha’ e me tomam a benção. Meu marido chama os netos dela de ‘meus netos’. Graças a Deus, a gente vive bem. Nunca tivemos uma briga séria, um desentendimento”, comenta dona Maria Angélica.
Questionadas sobre o segredo da convivência harmoniosa, as amigas são unânimes: “Em parte, acho que é o muro! Nós somos muito próximas, mas fazemos questão de respeitar a privacidade uma da outra. Toda amizade, eu acho precisa de um muro”, aconselha dona Maria Verônica.