Poucas vezes, o silêncio se fez tão importante numa entrevista. Valeu mais, no encontro, observar o olhar, acompanhar o movimento das mãos, sentir a ausência em estado absoluto. Palavras vieram no tempo certo. Fragilizada pela perda recente do marido, Altamiro, e dos filhos Roberto e Elaine Cristina, vítimas da COVID-19, a dona de casa Luzia Izabel Augusta Rodrigues, de 74 anos, busca conforto nas lembranças, no carinho da família, na boa energia dos amigos, nas orações.
“Se não fosse a fé em Deus, nem sei como seria. É muito difícil aguentar sozinha essa dor”, conta a moradora do Bairro São Geraldo, em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Não bastasse a morte dos três no curto período de oito dias, o câncer ceifou a vida do irmão de Luzia, José Geraldo Augusto, em 15 de março.
Na varanda da casa, arejada pelo vento da tarde e de onde se vê a igreja matriz da cidade, Luzia se mantém de pé apoiada no propósito de seguir a vida, mas, quando a saudade bate, chora suas lágrimas, que começaram pouco antes da semana santa e culminaram na véspera da sexta-feira da Paixão. Naquele dia, quando o marido Altamiro Rodrigues da Paixão, de 81, morreu, Luzia refletiu, pensando em Nossa Senhora das Dores: “Ela passou tanto sofrimento com a via-crúcis de Jesus... Também terei forças no meu caminho”.
A exemplo de Luzia, outros mineiros vivem seu calvário em decorrência do novo coronavírus, com a dor da perda – que já é imensa em qualquer caso –, repetida mais de uma vez. O padre Adriano Luiz da Silveira ficou sem os pais e a irmã, enquanto Valéria Cassimiro Costa, perdeu os pais. Nas casas, a chama da esperança para que a ciência e a fé vençam a doença está acesa, mesmo com aperto no coração diante do aumento de casos no país e com o luto que chegou, potencializado.
PAIXÃO
Casados durante 55 anos, Altamiro e Luzia tiveram 10 filhos, que lhes deram oito netos e dois bisnetos. O mais velho, Roberto Augusto Rodrigues, de 55, morreu em 11 de março, um dia depois da irmã Elaine Cristina, que, conta a mãe, sofria de asma. Altamiro, também hospitalizado, partiu uma semana depois. “Ele recebeu o sobrenome Paixão porque nasceu na sexta-feira da Paixão. E morreu na quinta-feira santa”, conta Luzia, rodeada pelas filhas Sandra, Rosiléia e Milene, as netas Izabela Cristina, Júlia Caroline e Maria Eduarda, e a bisneta Camila.A doença pegou de surpresa a família, que vive bem ao lado da Capela São Geraldo. Conforme costume em cidades do interior mineiro, todos ouviram sucessivamente os anúncios fúnebres no alto-falante do templo. “Mesmo escutando o anúncio dos falecimentos tantas vezes, custei a acreditar. Até hoje não acredito que é verdade. Altamiro gostava de reunir todo mundo aqui. Moramos próximos, então isso facilita as reuniões familiares. Nesta varanda, por exemplo, a gente gosta de ficar e conversar.”
Luzia, a filha Rosiléia e a neta Izabela Cristina também tiveram COVID-19. “Tomamos todos os cuidados, usando máscara, passando álcool nas mãos. Não sei como, fomos contaminadas. Acho que é um vírus traiçoeiro.” O conforto dos amigos se faz presente, e grupos já se reuniram na rua, na frente da casa, para rezar o terço. “Sempre rezamos em família e vamos continuar assim”, observa Luzia.
FERIDAS ABERTAS
Longe dali, em Corinto, as marcas ainda não cicatrizaram no coração, nas lembranças e nas palavras do padre Adriano Luiz da Silveira, da Paróquia Santo Antônio, na cidade da Região Central de Minas. Em dezembro, no período de 15 dias, ele perdeu o pai, a mãe e a irmã, todos em decorrência da COVID-19.
Não bastasse tanto sofrimento, padre Adriano também foi acometido pela doença, ficou internado e viu mais quatro pessoas da família contaminadas pelo coronavírus. “Se não fosse a fé em Deus, seria impossível suportar tantas mortes de pessoas queridas”, afirma o pároco, nascido em Juiz de Fora, na Zona da Mata, criado em Santa Luzia, na Região Metropolitana de BH, e que há 17 anos se dedica à vida sacerdotal na Arquidiocese de Diamantina.
Com a voz embargada pela emoção e explicando ter ficado com problema de visão como sequela da doença, padre Adriano conta que a primeira a morrer, em 25 de novembro, foi a irmã, Tânia Mara Silveira de Oliveira, aos 60 anos, viúva e mãe de Hanns Alberto, de 31.
Depois foi o pai, Ivan da Silveira, de 84, em 1º de dezembro: “Vítima de um AVC (acidente vascular cerebral), ele ficou internado no Hospital São João de Deus, em Santa Luzia. Na sequência, foi levado para a Santa Casa BH, onde morreu”, conta o padre.
Em 10 de dezembro, foi vez da mãe, Carolina de Oliveira Silveira. Os três velórios e enterros ocorreram de forma muito rápida. “Nem deu tempo de os familiares se despedirem”, lamenta o religioso, irmão de Ivan José e Mara Beatriz, que ficaram internados, e tio de Gabriella e Dhiego, também infectados, mas esses sem gravidade.
MISSA EM CASA
O conforto em meio a toda a tristeza, segundo o padre, foi poder ministrar o sacramento dos enfermos ao seu pai e à sua mãe, fazer a encomendação de sua mãe e, em 11 de dezembro, em memória da irmã e do pai, celebrar a missa de sétimo dia na sala da casa da família no Bairro Carreira Comprida, em Santa Luzia.
“Superar três perdas em tão pouco tempo não é fácil, ainda mais de pessoas insubstituíveis. Meu pai e minha mãe sempre estiveram presentes na minha vida. Aprendi com eles a amar a Deus, a ter fé. Meus pais acompanhavam de perto meu trabalho sacertotal.” No momento de tanta tristeza, o religioso recebeu muitos “ombros amigos”, e destaca o apoio do padre Felipe Lemos de Queirós, reitor do Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia, “meu amigo, que esteve comigo nos dias difíceis e me ajudou muito, convidando-me para celebrar a missa de Natal no Santuário de Santa Luzia.”
Diante da dor, padre Adriano faz questão de reafirmar sua fé: “No dia em que recebi alta do hospital, ajoelhado no Santuário Santa Luzia, eu dizia: 'Senhor, meu Deus, o Senhor pode levar tudo de mim, mas meu amor pelo Senhor continuará sendo eterno, pois sei em quem depositei toda a minha confiança”.
Agora, com a luz da esperança a guiar seus passos, o religioso se fortalece na passagem bíblica da carta de Paulo a Timóteo: “Por essa causa também sofro, todavia não me envergonho, porquanto sei em quem tenho confiado e estou plenamente convicto de que Ele é poderoso para guardar o que lhe confiei até aquele Dia.” (2Tm1,12).
DOR E PRECONCEITO
As lágrimas ainda não secaram de todo – e vão ficar assim por um longo tempo. Mas, se a vida segue seu caminho, andam, lado a lado, os longos anos de convivência, as histórias da família e o amor que jamais terá fim. Moradora do Bairro Serra Verde, na Região de Venda Nova, na capital, a diarista Valéria Cassimiro Costa, de 50, casada e mãe de Esther, de 12, perdeu o pai e a mãe no curto tempo de oito dias. E o peito dói só de lembrar.
Calixto Cassimiro, de 89, morreu em 7 fevereiro, e a mãe, Maria Beatriz Ferreira, de 88, no dia 15. Valéria testou positivo em 26 de janeiro. Depois, foram acometidos pela doença o marido, a filha e a irmã, mas sem gravidade.
Leia Mais
COVID-19: mais de 700 mil doses de vacinas são distribuídas em MGCOVID-19: Minas recebe mais de 130 mil medicamentos do ''kit intubação''COVID-19: Minas registra 402 mortes em 24 horas; quase 30 mil no totalCOVID-19: UFMG convocará 40 mil voluntários para testar vacina mineiraCOVID-19: vacinados no Brasil chegam a 26,1 milhões, 12,36% da populaçãoCOVID-19: Brasil teve 1.657 mortes nas últimas 24 horasMorre, aos 59 anos, a benzedeira Mãe Rita Contagem vacinará idosos de 65 anos a partir de terça-feira (20/4)Centro de Nova Lima tem 'calmaria' no 1° domingo após decreto COVID-19: MG registra 369 mortes em 24 horas e abril é o mês mais letal Caminhão atropela cinco pessoas e mata duas no Sul de MG; motorista fugiu Cientista de dados prevê bomba-relógio com aceleração da covid-19: 'Brasil não está nem perto da queda de casos'“Foram momentos terríveis, os piores da minha vida. Perder o pai e a mãe praticamente de uma vez...” Também incompreensível para a diarista foi sentir uma certa rejeição das pessoas. “Alguns, quando souberam que meus pais tinham morrido com COVID-19, viraram as costas. A gente sofre toda essa carga emocional e física e ainda é obrigada a lidar com o preconceito. Ver que as pessoas não querem se aproximar de você é muito doloroso. Ainda bem que meu Deus nunca me desamparou”, conforma-se, ainda se esforçando para compreender tanto sofrimento.