Catas Altas – As quaresmeiras em flor, magníficas no seu tom em meio à extensão verde neste outono de sol forte, dão as boas-vindas a quem chega ao Santuário do Caraça, dono de terras distribuídas entre Catas Altas e Santa Bárbara, na Região Central de Minas, a 104 quilômetros de Belo Horizonte. Um dos principais destinos dos viajantes, o complexo histórico, cultural, religioso e paisagístico, com o charme da pousada, foi reaberto para visitas em 19 de abril, depois de ficar três semanas fechado por conta altos indicadores de COVID-19 no estado.
Caraça preserva cama, presentes e até tropeço imperial
Desde o feriado de Tiradentes, o santuário voltou a receber hóspedes no limite de 50% da sua capacidade, informa o gerente-geral Márcio Mól. Serão, portanto, 150 visitantes por dia e entre 60 e 90 pessoas hospedadas. Por enquanto, em sintonia com as determinações da Arquidiocese de Mariana, estão suspensas as missas na Igreja Nossa Senhora Mãe dos Homens, a primeira construída em estilo neogótico do país e com vitrais doados pelo imperador dom Pedro II (1825-1891), que visitou o local, quando ainda era colégio, há 140 anos.
Seguindo o decreto da Prefeitura de Catas Altas, município ao qual está ligado juridicamente, o santuário da Província Brasileira da Congregação da Missão perdeu, desde o início da pandemia do novo coronavírus, grande número de visitantes.
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"Antes do fechamento, estávamos com apenas 20% de ocupação. Em março, houve muito cancelamento de reservas", conta Márcio Mól. Nos primeiros quatro meses da pandemia, o complexo turístico também limitou a visitação. "Vivemos uma situação muito difícil no ano passado. Não conseguimos fechar as contas, trabalhamos no vermelho", afirma. Em tempos normais, o Caraça recebe milhares de pessoas de mais de 30 países, com destaque para França, Estados Unidos e Alemanha. Em 2019, foram registrados 70 mil visitantes e 22 mil hóspedes.
Mesmo em pandemia, não se pode descuidar do patrimônio. Em março, foi entregue pela Prefeitura de Catas Altas a obra de restauro da Capela Sagrado Coração de Jesus, a dois quilômetros da sede do Caraça. Tombado pelo município, o espaço teve licitação na gestão anterior e serviços que duraram de outubro a março. "Para chegar até a capela, o visitante precisa caminhar cerca de 40 minutos", informa Mól.
OUTROS TEMPOS
Desde que se abriu para o turismo em 1972, o Caraça se tornou sinônimo de aconchego absoluto, movimento na dose certa e "clima" internacional, com vários idiomas se cruzando no restaurante, nos corredores, nas áreas de lazer, incluindo a cachoeira. Mas o que se ouve atualmente é muito silêncio.
Complexo da diversidade
Com 12,4 mil hectares distribuídos entre Catas Altas (55%) e Santa Bárbara (45%), o complexo religioso e ambiental tem números superlativos: cerca de 800 tipos de líquens, quase 400 de aves, 800 de besouros, 50 de cobras e outros habitantes da vegetação exuberante. O Caraça também faz parte das reservas da Biosfera da Serra do Espinhaço Sul e da Mata Atlântica e também do Caminho da Estrada Real. Em 1994, ele se tornou unidade de conservação do Ibama – Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com área protegida de 10,1 mil hectares (ha), do total de 12,4 mil ha.
A área de pesquisa encontra terreno fértil, e os cientistas constataram a riqueza da fauna e da flora: há 240 espécies de samambaias e mais de 200 de orquídeas. E não é de hoje que o local desperta interesse. No século 19, viajantes europeus conheceram esse patrimônio, a exemplo do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) e das expedições dos alemães Carl von Martius (1794-1868) e Johann Baptiste von Spix (1781-1826).
HISTÓRIA
Fundado em 1774 pelo português Carlos Mendonça Távora, chamado de Irmão Lourenço de Nossa Senhora, o santuário reserva surpresas e mistérios. Não é à toa que seu apelido é “Porta do Céu”. Sem dúvida, natureza e religiosidade comandam a vida no lugar. Anualmente, em 7 de setembro, às 17h, a luz solar bate diretamente sobre o sacrário da igreja. Também nos solstícios, época em que o Sol passa pela sua maior declinação boreal ou austral, há espetáculos de beleza: no inverno, a luz incide sobre a imagem de São Francisco, padroeiro secundário da igreja; no verão, sobre São Vicente, fundador da Congregação dos Lazaristas.
A diversidade permeia todos os espaços desse patrimônio, tombado desde 1955 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e incrustado no topo do maciço do Espinhaço, tendo a Serra do Caraça como sentinela. No prédio – que foi colégio até 1912 e seminário até 1968, ano em que foi destruído por um incêndio – está a pinacoteca, com quadros, relíquias e alfaias (paramentos) catalogados e guardados com máxima segurança. Para o pesquisador Rudney Avelino de Castro, mestre em ciências sociais, que apresentou o trabalho “Santuário do Caraça: Um corpo de memórias na escritura do tempo”, no 12º Congresso Luso-afro-brasileiro (2017), em Lisboa, Portugal, “o viajante recém-chegado percebe que o Caraça não se estabelece como uma arquitetura isolada a refletir um passado morto”. Ele prossegue: “Ao contrário, espelha a universalidade do conhecimento na sua biblioteca de documentos centenários, nos utensílios, quadros e objetos, e nas pinturas. Sua igreja de estilo gótico é o convite a uma viagem vertiginosa, como quem adentra o túnel do tempo e a Europa do século 13. Porém, é notório o fato de toda essa excentricidade ser arrebatada pela natureza vivaz que se forma ao seu redor”.
LOBO-GUARÁ
Na área de transição entre mata atlântica e cerrado vivem 79 espécies de mamíferos, entre eles o lobo-guará, as onças preta e parda e a anta. A história do lobo já correu mundo: sempre no início da noite, um deles chega perto da igreja para receber, em bandejas, pedaços de frango oferecidos pelos padres. Há quatro décadas o ritual se completa, mesmo em tempos de pandemia, para alegria dos turistas, especialmente crianças. (GW)
CRONOLOGIA
1774 – O português Carlos Mendonça Távora, conhecido como Irmão Lourenço de Nossa Senhora, funda o Caraça para ser uma casa de hospedagem e acolhida de peregrinos e visitantes
1819 – Morre Irmão Lourenço, que deixa, em testamento, as terras e a ermida para dom João VI, com o objetivo de ser construída uma escola no local
1820 – Dom João VI faz a doação do Caraça aos padres lazaristas. Naquele ano, os padres Leandro e Viçoso fundam o colégio, que funciona até 1912
1842 – O colégio interrompe suas atividades devido a problemas políticos envolvendo os padres na Revolução Liberal, e se transfere para Campina Verde, no Triângulo Mineiro
1854 – Transferência do seminário de Mariana para o Caraça e reabertura do colégio em 1856
1881 – Entre 11 e 13 de abril, o Caraça recebe a visita do imperador dom Pedro II e da imperatriz Teresa Cristina
1955 – Igreja e demais dependências são tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
1968 – Na madrugada de 28 de maio, o fogo destrói o edifício do colégio. Não houve vítimas
1972 – A partir desse ano, o Caraça se torna hospedaria, embora sem deixar de ser uma casa religiosa
1994 – O complexo se torna Reserva do Patrimônio Natural (RPPN), com área protegida de 10.187 mil hectares, do total de 12.475 mil hectares
2013 – Dentro do projeto da Estrada Real, entra em operação o Roteiro Entre Serras: da Piedade ao Caraça, ligando os dois monumentos naturais e passando por Caeté, Barão de Cocais, Santa Bárbara e Catas Altas