Uma referência cultural e esportiva de Belo Horizonte, a quadra do Vilarinho, palco de inúmeros eventos e que teria sido frequentada até por "um capeta", está à venda. Foram 41 anos levando entretenimento e diversão, principalmente a um público jovem e de periferia, em tempos de poucos espaços de diversão para essa parcela da população.
Calcula-se que nessas quatro décadas, mais de 5 milhões de pessoas passaram pelos 3.200 metros quadrados de uma das principais casas de eventos da cidade, na Região de Venda Nova. "Nos tempos de bailes funk, aos domingos, recebíamos entre 2.500 e 3 mil jovens", conta Francisco Filizzola Lima, proprietário do espaço.
Leia Mais
Uberlândia: projeto prevê multa de até R$ 5 mil por festas clandestinasTambores quilombolas silenciados pelo lutoRestrições diminuem no Norte e SudesteVisita de vereadores às obras da Vilarinho deve ser remarcada Governo de MG investiga vazamento de dados de professores da rede estadualBH conquista prêmio por sistema que estima tempo de internação em hospitaisBH: ciclista de 16 anos pega 'traseira' em ônibus e caiCom uma forte gargalhada, ao ser perguntado se quem comprar as quadras vai levar junto o capeta, Francisco Filizzola conta sobre o "sucesso da jogada de marketing", que teria surgido por acaso. "Entrou na mídia expontaneamente."
Segundo o proprietário, uma noite, um dos vigilantes das quadras, "que gostava de uma birita", ligou dizendo que tinha "dois capetas" na quadra. Filizzola, em tom de brincadeira, disse para chamar a polícia. O rapaz levou a sério e acabou registrando um boletim de ocorrência.
Nos anos 1980, havia um programa de reportagem policial muito ouvido em toda cidade, e a radialista, Glória Lopes, comprou a ideia e jogou a história no ar. "Foi uma jogada de sorte", reconhece Filizola.
O caso foi repassado por outros veículos e tomou grandes proporções. Passou a fazer parte da vida dos frequentadores. "Tinha um dançarino amigo nosso, que era muito bom, gostava de contar que fez aulas com o capeta."
O produtor e criador da revista em quadrinhos Celton, personagem muito conhecido nas ruas da cidade, onde vendia suas obras em semáforos, fez duas edições: a primeira, "O Capeta do Vilarinho", foi a mais vendida. Posteriormente, criou outra história de que o capeta engravidara uma frequentadora das quadras e foi em busca do filho. "Mas não teve sucesso na emboscada."
O padre Matias, pároco de um igreja católica de Venda Nova, tentou exorcizar a "entidade". "Ele chegou todo paramentado, com os instrumentos de exorcismo e me pediu permissão para a cerimônia", conta Francisco Filizzola. "Deixei que entrasse e fizesse o serviço, é claro."
A história rendeu até uma nota no New York Times, guardada com cuidado pelo dono das quadras.
Depois de tornar o assunto "da hora, na boca do povo", a casa promoveu um envento "Baile Caça Fantasma". Quem conseguisse capturar o suposto "capeta", receberia um prêmio em dinheiro. Uma emissora de rádio resolveu encampar a ideia, mas o diretor exigiu que Filizzola depositasse uma quantia em dinheiro. "Vai que alguém acha um capiroto e prende."
Francisco Filizzola fez o depósito em cheque "sem fundo", admite. A quantia era muito alta, conta entre risos. Mas os "bicho" não foi ao baile e continuou solto. "Tudo na vida tem começo, meio e fim. O mais gratificante de tudo é que, no fim, com tantas alegrias e algumas tristezas, principalmente pelo preconceito, encerro uma etapa da vida com a felicidade que foi um espaço tão querido da cidade."
Quadras foram sementes que se espalharão pela cidade
"Vida que segue." Com muito bom humor e tranquilidade, Filizzola considera que "a semente foi plantada e muitas quadras Vilarinho se espalharão pela cidade. Não guardo rancores e nem culpo ninguém". A pandemia foi o tiro certeiro para a decisão de colocar o imóvel à venda. O setor de eventos é o que mais sentiu a crise, com suspensão das atividades desde os primeiros momentos, em março de 2020. E sem previsão de voltar a atuar.
"Tenho um espaço no qual não posso explorar em sua total potencialidade. Apesar do nome, não era apenas quadra, tínhamos vários eventos. Nesses anos todos, trouxemos os artistas top do samba nacional, promovemos os primeiros bailes funk da capital. Aqui realizamos formaturas, ordenção de padres e festivais evangélicos. Nos tornamos uma referência para a cidade."
As práticas esportivas, tendo como principal atividade o futebol de salão, continuam funcionando, mas não cobrem os custos. "Não acredito que os eventos voltem antes de dezembro de 2022, e, caso aconteça, virão com muitos protocolos." Antes da pandemia, eram 71 funcionários, hoje são quatro.
Foi referência a uma população economicamente vulnerável, com poucas opções de lazer, que trouxe "inúmeras gratificações", lembra com carinho o proprietário. "Conviver com esses jovens me deixou mais feliz, com melhores relações com a vida, bem humorado", revela "seu" Chico.
Segundo Francisco, o projeto social Curumim teria nascido nas quadras do Vilarinho. "Partiu de ideia nossa, foi encampada pelo governo e depois transformada em Toriba." Tratava de atrair jovens entre 12 e 18 anos, em vulnerabilidade social, para prática de atividades esportivas, artísticas e aprendizado de ofícios.
A quadra abrigou jogos de futebol de salão, vôlei, basquete, aulas de artes e ofícios, cursos de DJ, gravação de MC's. "O que aconteceu foi que parou. O governo federal bancava uniforme e alimentação. Em contrapatida, o estado teria que dispor de espaço físico. O estado não tinha dinheiro ou não teve interesse. Durante um ano, banquei o projeto, depois não tive como continuar."
O espaço posto à venda fica no "bico do garrafão", apelido dado à confluência de todo o fluxo de veículos e pessoas que vêm de bairros de Venda Nova e cidades da Região Metropolitana, como Ribeirão das Neves e Justinópolis, no sentido Centro de BH, desembocando na confluência entre a Avenida Vilarinho e a Rua Padre Pedro Pinto, tornou-se tão famoso que a estação do Move leva o nome de "Quadras Vilarinho."
Foram muitas as tentativas de fazer com que esse espaço que abrigasse políticas públicas. "Enviamos inúmeros projetos a todas as instâncias municipais, estaduais e federais. Mas não obtivemos resposta. Não existe uma política de estado, tendo como referência esses projetos. São pontuais. Existe uma rejeição grande por parte do estado, por ser periferia. Num bolsão de pobreza. As atividades abraçadas por governos e grandes empresas praticam política de exclusão. Mesmo que fosse aprovado, na hora de levantar dinheiro os empresários se esquivam, por não estar em área nobre", lamenta.