Todas as homenagens a uma mineira destemida, que ganhou o mundo com a arte da costura, enfrentou poderosos na busca pelo filho desaparecido e deixou o nome gravado, com muita coragem, na história do país. Curvelo, na Região Central do estado, celebra hoje, com exposição em praça pública, o centenário de nascimento de sua filha ilustre: Zuleika de Souza Netto (1921-1976), ou simplesmente Zuzu Angel. O sobrenome Angel veio do casamento, na década de 1940, com o canadense naturalizado norte-americano Norman Angel Jones, que gerou três filhos – Stuart, Ana Cristina e Hildegard.
Ao longo do ano haverá uma série de eventos (veja quadro), entre presenciais e virtuais, para lembrar Zuzu Angel e mostrar às novas gerações a importância dela no cenário social e político e da moda, que ultrapassou fronteiras e tinha Minas como inspiração.
“Mamãe tinha grande orgulho de ser mineira”, conta a filha caçula de Zuzu, a jornalista Hildegard Angel, que não poderá estar presente à abertura da exposição em Curvelo, mas avisou que partirá do Rio de Janeiro, onde mora, possivelmente em 10 de junho, para ver e agradecer a homenagem.
A exposição “100 anos costurando com Zuzu” começa hoje, às 9h, na Praça Central do Brasil, em Curvelo, e ficará aberta ao público, respeitando protocolos sanitários, até o dia 30. Não haverá cerimônia oficial, devido à pandemia. A promoção é da prefeitura local, via Secretaria Municipal de Cultura, Desportos, Lazer e Turismo, que, ontem, finalizava a montagem da mostra com fotografias, croquis de roupas criadas pela estilista, estudos para coleções, capas de revistas e reportagens de jornais. Parte do material foi cedida pelo Instituto Zuzu Angel, presidido por Hildegard.
De acordo com a secretaria, as imagens da exposição estarão em 32 painéis, alguns com seis metros de altura, em busca de um efeito que alie beleza e simplicidade, ressaltam os organizadores.
Eventos
No Rio de Janeiro também serão muitas as homenagens. Hoje, às 16h, com retransmissão pelo YouTube, haverá a leitura dramática do espetáculo “Eu, Zuzu, agora milito”. A programação neste mês inclui o relançamento do livro infantil “Zuzu”, de David Massena, com ilustrações de Rodrigo Macedo.
O Instituto Zuzu Angel vai promover exposição sobre a arquitetura da Casa Zuzu Angel, que fica na Usina da Tijuca, na capital fluminense. Em parceira com a PUC Rio, via Departamento de Artes e Design, fará um ciclo de palestras até novembro, com abertura no dia 21. Como pedem os novos tempos, será no modo virtual. Em pauta, mesas redondas, incluindo moda e política, aula aberta, visita virtual ao acervo, exibição de filmes e oficina de bordados. A previsão é organizar, em maio de 2022, mostra com os trabalhos resultantes do ciclo de atividades. Para outubro de 2021, está prevista outra exposição, no Rio, sobre a estilista.
Sobre o Brasil de hoje, com tantas perdas provocadas pela pandemia, Hildegard não tem dúvida de que sua mãe estaria sofrendo muito, e usando três máscaras para evitar a contaminação. “Era uma pessoa extremamente solidária. De bengala ou cadeira de rodas, estaria na rua durante a manifestação do dia 29”, afirmou, a respeito dos atos públicos contra o presidente Jair Bolsonaro e a favor de vacinação para todos.
Raízes
Ao reiterar o amor da mãe por Minas, Hildegard destaca as raízes da família em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. “Terra de gente corajosa. Terra de Elisinha Moreira Salles (1929-1988, nascida Elisa Margarida Vianna Gonçalves e embaixatriz do Brasil nos Estados Unidos na década de 1950) e de Anna Marina (uma das primeiras mulheres a atuar no jornalismo em Minas)”, citou Hildegard.
Pesquisador da história de Minas e de famílias estabelecidas no estado desde o século 18, o mineiro Douglas Fasolato estudou a genealogia da família de Zuzu, cujo pioneiro no Brasil foi Bernardo de Souza Vianna. Ele veio de Vianna do Castelo, em Portugal, e foi morar em Santa Luzia. “Já no século 19, o neto dele, o luziense Cândido de Souza Vianna, se mudou para Curvelo. A menina Zuleika era bisneta de Cândido”, explica Douglas. “Descendem de Bernardo de Souza Vianna muitas pessoas de expressão na vida política e econômica de Minas”, acrescenta.
Para homenagear a estilista, a Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia também irá relembrar suas origens familiares em suas redes sociais, destacando o legado, informa o presidente da entidade, Adalberto Andrade Mateus.
Juventude
A família de Zuzu Angel se mudou de Curvelo para BH quando ela ainda era criança. Na capital, estudou no Colégio Sagrado Coração e foi campeã de natação.
Entre os 18 e 19 anos, a jovem estava na casa de parentes, na capital, quando viu pela primeira vez Norman Angel Jones, que comprava cristais de rocha e pedras de Minas para a embaixada dos Estados Unidos. Já falando inglês, garantiu às amigas que se casaria com o rapaz. E assim aconteceu.
Em 1947, o casal foi morar no Rio e, mais tarde, nas criações de Zuzu, o Angel (anjo) do sobrenome passou a ser logomarca.
VIVA ZUZU!
Confira alguns destaques da programação comemorativa
do centenário de nascimento de Zuzu Angel:
- HOJE 9h - Abertura da exposição "100 anos costurando com Zuzu" (foto), na Praça Central do Brasil, em Curvelo, na Região Central de Minas. Devem ser observadas as normas sanitárias. Até 30/6
- 16h - Leitura dramática do espetáculo "Eu, Zuzu, agora milito", com transmissão pelo YouTube. Texto e direção de Sophia Colleti.
- DIA 21 - 17h - Abertura da programação “Zuzu 100 anos/Zuzu Agora”, ciclo promovido pela PUC Rio em parceria com o Instituto Zuzu Angel. Haverá palestras, debates, exibição de filmes, aula aberta e oficina de bordados. Na abertura, mesa "Zuzu 100 anos", com participação de Hildegard Angel, Celina de Farias, Heloísa Buarque de Hollanda e Luíza Marcier, com mediação de Isabel Martins Moreira. O evento terá atividades mensais, virtuais, até novembro, com exposição em maio de 2022.
Informações em www.dad.puc-rio.br; Instagram: @designpucrio; ou e-mail para atendimentodad@puc.br
A luta da mãe que não pôde dar adeus ao filho
Para conhecer a trajetória da guerreira Zuzu Angel, muito mais do que voltar no tempo, é preciso entender outros tempos. E se emocionar com a história da mãe que não pôde segurar o filho morto nos braços, enxugar o sangue e o suor de seus poros, dar o beijo da despedida, jogar flores sobre o caixão e ter uma sepultura para visitar quando a saudade batesse fundo na alma. Para resumir a dor, ela jamais teve acesso ao corpo do filho.
Até o fim de seus dias, Zuzu Angel lutou com todas as forças para encontrar o corpo do primogênito Stuart Edgar Angel Jones, assassinado aos 26 anos, em maio de 1971, no auge da ditadura militar, pelos órgãos de repressão. A morte ocorreu na base aérea do Galeão, no Rio, e o corpo teria sido jogado no mar.
Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em agosto de 2013, dois militares perseguidos pela ditadura confirmaram a cena de horror e as “toxinas do cano de escapamento” de uma viatura que o jovem fora obrigado a inalar. Estudante de economia, Stuart caiu na clandestinidade e integrou o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).
Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em agosto de 2013, dois militares perseguidos pela ditadura confirmaram a cena de horror e as “toxinas do cano de escapamento” de uma viatura que o jovem fora obrigado a inalar. Estudante de economia, Stuart caiu na clandestinidade e integrou o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).
Zuzu nunca perdoou, não se conformou com a morte de Stuart e fez da perda uma bandeira.
Se a moda era uma mensagem de vida – com a qual fez sucesso nos Estados Unidos, pela originalidade de seu estilo –, podia ser também de denúncia. Para um desfile-protesto, em 1971, nos EUA, criou estampas com anjos de luto (o anjo era uma das marcas de suas criações, apoiada em seu nome), engaiolados, grandes manchas vermelhas, motivos bélicos, mensagens políticas, que foram amplamente divulgadas pela imprensa internacional.
Voltando ao Brasil, continuou a lutar contra o desaparecimento do corpo de seu filho Stuart. Incomodou tanto que, em 14 abril de 1976, morreu em um desastre no Rio de Janeiro: o Karmann Ghia azul que dirigia derrapou na saída do túnel Dois Irmãos (depois batizado com o seu nome), bateu na mureta de proteção e caiu numa ribanceira.
Em 25 de março de 1998, 22 anos após a morte da mineira de Curvelo, o governo brasileiro reconheceu que ela fora vítima de atentado político e não de acidente de carro. O depoimento de dois advogados residentes em João Pessoa (PB) e que estudavam direito na PUC do Rio, na época, foi decisivo para esse desfecho.