Esta história demorou mais de 50 anos para ser contada e, quando vem à tona no mês em que se lembra o mistério da eucaristia, na figura da celebração de corpus chrtisti, ganha o tom da comunhão com o patrimônio, do respeito à religiosidade e da consciência na preservação da memória de Belo Horizonte. Está de volta ao interior da Igreja Nossa Senhora do Carmo, no Bairro Carmo, na Região Centro-Sul da capital, uma balaustrada em duas peças esculpida em mármore de Carrara e destinada, até o fim da década de 1960, aos fiéis que se ajoelhavam para receber a hóstia das mãos dos freis carmelitas, nas missas.
Durante cinco décadas, a chamada mesa de comunhão, medindo 15 metros de comprimento por 35 centímetros de largura e 80cm de altura, ficou na casa de “um devoto de Nossa Senhora do Carmo, um paroquiano que cuidou dela como um guardião”, afirma o prior do Convento do Carmo e pároco da igreja, frei Evaldo Xavier Gomes.
“Ficamos muito felizes, pois a mesa faz parte da nossa igreja. O mármore é de Carrara, mas ela foi esculpida em BH, pela mesma pessoa responsável pelo altar. Devemos enaltecer a consciência religiosa e o ato de valorização do patrimônio, pois a mesa poderia ter sido destruída, quebrada, enfim, podia ter desaparecido”, diz frei Evaldo. Após tantos anos, a peça foi restaurada, o que exigiu quase um mês de trabalho e uma semana para instalação.
O guardião foi um homem, que faleceu, já muito idoso, no ano passado. “Ao me entregar a mesa, ele contou que, em 1969, durante uma obra no templo do qual era vizinho, a peça foi retirada e descartada, de forma a não voltar mais ao local de origem. Temeroso de que algo pudesse ocorrer, como a danificação do mármore, o homem propôs a compra, levando-a para sua casa”, conta o frei.
Sobre o porquê de a devolução só ter ocorrido tanto tempo depois, o líder religioso se limita a reproduzir as palavras ouvidas do guardião: “Agora, que a Virgem do Carmo voltou a reinar em sua igreja, quero que volte para a casa dela”. Frei Evaldo prefere não se manifestar a respeito das palavras, apenas garante que, com o ato, os belo-horizontinos têm de volta um bem de relevância.
Houve mudanças na dinâmica da distribuição da comunhão a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965), quando as mesas saíram de cena, mas frei Evaldo conta que a balaustrada complementa a concepção original da nave, por ser um elemento arquitetônico próprio da Igreja do Carmo. E agora integra um histórico de devoluções espontâneas de peças do patrimônio de Minas, que tem um dos acervos culturais mais ricos do país (veja o quadro).
História
Vindos de São Paulo e comandados pelo frei holandês Atanásio Maatman, os carmelitas chegaram a Belo Horizonte no fim da década de 1930 para fundar uma igreja de grandes dimensões. Na época, a região, que muita gente chama hoje de Carmo-Sion, tinha o nome de Acaba Mundo, pois se imaginava que a cidade terminava ali. De início, os frades ergueram um templo pequeno e provisório, de alvenaria, voltado para a Rua Grão Mogol.
Mais tarde, quando Juscelino Kubitschek (1902-1976) era prefeito de Belo Horizonte e começava a abrir a antiga rodovia BR-3 (atual BR-040), ligando BH ao Rio de Janeiro, frei Inocêncio Gerritsjans, então dirigindo a ordem na capital, decidiu fazer a frente voltada para o trecho da estrada que se tornaria a Avenida Nossa Senhora do Carmo.
Para conseguir o dinheiro, frei Inocêncio circulava pela Cidade Jardim, considerado então “o bairro das famílias ricas de BH”. Há registro de que entrava em festas, ao final tocava piano e acabava conseguindo adesões. Era comum ainda ver outros religiosos pelas ruas, batendo de porta em porta atrás dos recursos necessários para a obra. O templo se encontra em processo de tombamento pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte.
Devoluções espontâneas
Autoridades mineiras do setor de patrimônio registram uma série de entregas voluntárias de bens culturais, religiosos ou não. Relembre algumas das mais importantes