Jornal Estado de Minas

PETER LUND - 220 ANOS

Expedição em Curvelo encontra "caverna perdida de Peter Lund"


Curvelo – Os pulmões ofegantes repunham o oxigênio exigido em excesso. As mãos trêmulas tentavam ser menos rudes. Mudaram do agarro forte dos dedos às rochas de uma escalada contínua para o folhear das páginas com a descrição feita por Peter Lund, 186 anos antes.





 

Foi no alto de um paredão de quase 100 metros de altura, no portal do sertão mineiro, em Curvelo, Região Central de Minas, que as formas das gravuras nas páginas deixadas pelo naturalista dinamarquês Peter Lund começaram a descrever o que os olhos de oito exploradores viam, petrificado à sua frente: a boca, corredores, teto e galerias do que pode ser a Lapa dos Gentios. Nada menos do que a primeira gruta descrita em papel por Peter Wilhelm Lund (14/6/1801-25/5/1880), ilustrada pelos traços de Peter Andreas Brandt em 1835, e que desde então está desaparecida dos registros formais.

 

Como homenagem aos 220 anos do nascimento do pai da paleontologia brasileira, comemorados amanhã, a equipe do Estado de Minas organizou expedição entre 3 e 5 de junho com especialistas ligados ao Centro Universitário Newton Paiva e ao Grupo de Estudos Espeleológicos Opilião, que pela primeira vez fazem pesquisas e trabalhos comparativos que podem comprovar se aquela cavidade é a caverna perdida de Peter Lund.

 

Essa busca pela Lapa dos Gentios começou há 10 anos, com as investigações de Luciano Emerich Faria, pesquisador e professor do Newton Paiva e doutor em história da ciência. “Essa gruta no paredão de Curvelo é uma grande candidata. Primeiro, porque está no Vale do Córrego dos Gentios, mesmo nome usado por Lund. Por aqui, ninguém tinha notícia de uma gruta, até sabermos dessa, em local de acesso extremamente difícil. Os desenhos de Lund e Brandt, que costumam ser precisos, também batem geométrica e descritivamente com a estrutura que encontramos”, defende Faria.





 

A Lapa dos Gentios é a primeira que consta na sequência de ilustrações que o naturalista Peter Lund deixou após começar a trabalhar, em sua derradeira viagem ao Brasil, em 1833, com o parceiro que se tornou inseparável, o artista e auxiliar norueguês Peter Andreas Brandt.

 

Em lombos de mulas, a partir de 1835, os dois percorreram a região cárstica de Lagoa Santa pelo Vale do Rio das Velhas, fazendo a maior quantidade de registros de fósseis da megafauna americana de sua época e comprovando que os homens pré-históricos, que denominaram “homens de Lagoa Santa”, conviveram com tais animais extintos – uma revolução para a ciência.

 

Expedição precisou vencer encostas íngremes e escorregadias até localizar a boca da gruta e os acessos que possibilitaram descobrir semelhanças entre os registros de Lund e a cavidade encontrada (foto: Leandro Couri/EM/D.A press)

 

O vice-prefeito de Curvelo, Gustavo Nascimento, conseguiu localizar pessoas que viram a caverna que está em estudos em seu distrito natal, de São José da Lagoa (JK). “A gente espera que isso seja um começo, que venham mais estudos e que possamos preservar essa riqueza, que era desconhecida até por mim”, disse.





 

Com ajuda da prefeitura local, o guia do grupo nessa expedição em busca da caverna perdida de Lund foi Éverton Júnior dos Santos, o “Tiziu”, de 31 anos, que veio de Contagem, na Grande BH, para construir um haras na região. “Não conhecia muita gente em Curvelo. Então, me falaram dessa gruta e resolvi ir até lá. É um lugar muito difícil de chegar e perigoso, mas lá do alto a gente tem só a paz da natureza”, afirma. Em homenagem ao apelido pelo qual gosta de ser chamado, a caverna passou a ser conhecida também como “Lapa do Tiziu”.

 

Não há trilha até lá. É no fio dos facões golpeando o matagal que ressurgem picadas antigas, rastros de enxurradas e caminhos de gado. Passa-se por terrenos de velhas cercas de arame farpado enferrujado até o leito seco de um córrego intermitente. Um rumo sobre os seixos claros e arredondados, por onde a água das tempestades corre na estação chuvosa, contida sob densa mata ciliar. Mesmo o sol forte de um outono sem nuvens não consegue penetrar o emaranhado das copas, deixando o clima ambiente ameno.

 

Mas a temperatura do corpo se eleva invariavelmente pelo esforço do avanço na floresta sertaneja. Seja tentando se desvencilhar dos ramos de espinhos que se agarram às roupas, cipós que laçam as pernas ou vencendo a altitude do terreno. Rochas se alargam e ganham tonelagem, de seixos para pedras empilhadas, formando barreiras que na época das águas certamente criam brutas cachoeiras. Dali em diante, as escarpas pedregosas da Serra de Santa Helena se impõem como paredões que só permitem progressão aos que pelas fraturas encontrarem apoio, caminho e vias de escalada.





 

A subida alterna níveis de inclinação de difíceis aos muito temerosos, de patamares para descanso a praticamente 900 de aclives, com inúmeros perigos até a altura da caverna. Em alguns pontos, a passagem se dá por pequenas ranhuras rochosas, onde mal se apoiam as pontas dos pés, e protuberâncias onde os dedos das mãos funcionam como ganchos, com todo o esforço de se içar, levando a um lento e desgastante avanço, lado a lado com os riscos de escorregar em musgo, deslizar na água empoçada ou desabar junto com pedras soltas.

 

Entre o desânimo e o deslumbramento 

Tiziu, o guia, precisa alertar que a boca da caverna já está adiante, pois muitos nem sequer a veem camuflada entre as rochas, por estar concentrados no avanço paredão acima, já resignados com a lentidão e perigos da subida. “É aqui. Olha a boca (da gruta) ali”, indica o guia, apontando para uma fenda horizontal em uma formação que lembra um mezanino de pedras.

 

Primeira vez na cavidade rochosa, como todos, à exceção de Tiziu, o professor Luciano Faria e o colega Marcos Moreira, do Grupo de Estudos Espeleológicos Opilião, se lançam dentro da estreita abertura. O túnel que se apresenta, no entanto, é muito estreito, tendo acima da entrada uma rocha achatada e ampla que não parece se aprofundar.





 

A primeira constatação dos dois é desanimadora. “Olha, essa não me parece uma caverna onde Lund esteve. Até mesmo para chegar aqui seria difícil naquela época”, observa Luciano Faria, enquanto desbrava uma galeria com uma água parada e insalubre até os joelhos, entre aranhas caranguejeiras em suas tocas apertadas e corpos de morcegos boiando. “Até há mesmo marcas de ferramentas riscando as paredes para a exploração da época em que se retirava o salitre das cavernas mineiras para produzir pólvora. Mas o esquema de Lund sobre a Lapa dos Gentios mostra dois corredores, e este aqui não tem outra saída, apenas um corredor”, lamenta o professor do Newton Paiva.

 

O desânimo se espalhou no grupo, muitos ainda deitados se recuperando dos esforços para subir. Até que, em uma última investida, Luciano Faria atinge o alto da formação e sob a rocha achatada chama a equipe de reportagem. Os olhos dele observavam a escuridão, mas, ao se nivelar com o livro que tinha os registros de Lund e Brandt, as imagens imediatamente começam a fazer sentido, ao se perceber que do fundo estreito da rocha achatada se prolongava outro túnel, ainda que bloqueado por um desabamento. “Geometricamente, é muito similar ao que Lund registrou”, observa. “Há indicativos muito fortes de que tenhamos finalmente encontrado a Lapa dos Gentios, a primeira que a dupla Lund e Brandt descreveu”, comemorou o professor, sua emoção contagiando o restante do grupo.

 

Dali em diante, cada contorno do desenho parece se materializar na cavidade pedregosa no alto do paredão. Inclusive a visão de fora, que foi cuidadosamente retratada por Brandt, mostrando que acima da boca da caverna o teto sustentava uma mata fechada, como se vê ainda hoje, protegida pela dificuldade de se chegar até lá.





 

“Os próximos passos serão continuar a explorar essa gruta com técnicas verticais e instrumentos de medição. Paralelamente a isso, precisamos manter uma busca ativa para eliminar outras candidatas possíveis. Mas é certamente uma homenagem a Lund termos realizado esta expedição, tentando trazer de volta ao mapa os locais onde ele fundamentou sua pesquisa”, disse Luciano Faria. Uma deferência aos 220 anos do homem que deixou a Dinamarca para se embrenhar por matas, desbravar terrenos inóspitos e vencer escarpas em uma jornada para colocar Minas Gerais no mapa da paleontologia, tão importante que segue sendo festejada mais de dois séculos depois de seu nascimento.

 

 

Grutas perdidas 

 

Localize as primeiras grutas exploradas por Lund e Brandt


Data Gruta Localização

 

1835 Lapa dos Gentios Curvelo

1835 Lapa da Onça Curvelo

1835 Lapa Velha de Maquiné Desconhecida

1835 Lapa de Santo Amaro Curvelo

1835 Lapa da Lagoa da Pedra Cordisburgo

04/09/1835 Lapa do Capim Branco Curvelo

04/09/1835 Lapa Velha de Mucambo Desconhecida

16/09/1835 Lapa das Quatro Bocas Curvelo

16/09/1835 Lapa dos Morcegos Desconhecida

16/09/1835 Lapa de Três Bocas Desconhecida

16/09/1835 Lapa da Boca Apertada Desconhecida

1835 Lapa do Mosquito Curvelo

1835 Lapa do Saco Comprido Curvelo

1835 Lapa da Dona Ana Felícia Desconhecida

1835 Lapa do Soares Desconhecida

1835 Santa Rita Desconhecida

1835 Lapa da Cagaitera Desconhecida

1835 Lapa do Labirinto Desconhecida

20/09/1835 Lapa do Olho D’Água Desconhecida

24/09/1835 Lapa de Santo Hippolito Desconhecida

26/09/1835 Lapa da Vargem da Anta Desconhecida

28/09/1835 Paredão do Rio Paraúna Santo Hipólito

06/10/1835 Lapa da Parobas Jequitibá

09/10/1835 Lapa do Cortume  (Sumidouro) Baldim

11/10/1835 Lapa da Forquilha Baldim

 

 

Fonte: Peter Lund e Peter Brandt