Milhares de pessoas passam por dia em locais de Belo Horizonte onde pode estar enterrada uma arca com um tesouro da história que, perto de 100 anos de sua deposição, foi ignorado e perdido. O pavimento e as plataformas de ônibus de viagens no Terminal Rodoviário Governador Israel Pinheiro, o concreto da pista do BRT/Move em frente à Praça Rio Branco (Praça da Rodoviária) ou os jardins da antiga Alfândega, hoje edifício da 1ª Região Integrada de Segurança Pública (Risp). No subsolo de um desses lugares está esquecida uma cápsula do tempo que constituiu homenagem em reconhecimento aos 100 anos do início das últimas expedições em Minas Gerais do pai da paleontologia brasileira, o dinamarquês Peter Lund. Dentro de 13 anos, essa homenagem completa um século – a expedição de Lund somará 200 anos –, mas até agora não se sabe do paradeiro desse tributo.
Após a série de reportagens desta semana em homenagem aos 220 anos do aniversário do naturalista, que colocou o estado em destaque na paleontologia mundial, comemorado na última segunda-feira, o Estado de Minas investiga o paradeiro da cápsula lançada em 1934, mas que até agora nenhum órgão de patrimônio ou do poder público tem certeza de sua localização. No interior da cápsula, convites para a semana de Lund e jornais da época, como um exemplar do jornal Estado de Minas.
Quem emergiu com a notícia da existência desse artefato de memórias foi o pesquisador Luciano Emerich Faria, professor do Centro Universitário Newton Paiva. “Tenho reunido evidências dos locais onde a cápsula pode estar desde 2013. Um dos 'mapas' para esse 'tesouro' é um livro escrito na década de 1940 pelo presidente da Academia Mineira de Letras, professor Anibal Mattos, o único com pistas fotográficas e referências à caixa”, afirma.
O então presidente da academia é um dos maiores especialistas nas obras de Peter Lund de todos os tempos e, por meio da instituição, Aníbal foi um dos idealizadores do lançamento da cápsula do tempo em homenagem ao naturalista que projetou mundialmente as cavernas mineiras. A homenagem se deu durante a semana em homenagem a Lund, ocorrida em Belo Horizonte, e que contou com autoridades do estado, prefeitura da capital e entes da União.
A reportagem consultou a Secretaria Estadual de Cultura, que acionou o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), Arquivo Público Mineiro e Museu Mineiro. O mesmo foi feito em nível municipal à Fundação de Cultura, para que acionasse o Museu Abílio Barreto e o Arquivo Público de Belo Horizonte, e, por fim, a Academia Mineira de Letras. Nenhuma dessas instituições, pastas ou organizações apresentou qualquer pista sobre o paradeiro da homenagem a Peter Lund.
Pistas As referências deixadas pelo livro de Aníbal Mattos dão algumas pistas, mas não cravam o local onde está a cápsula. O artefato é uma caixa retangular com uma alça, que pelas velhas fotografias em preto e branco parece ser metálica ou de pedra e ter cerca de 40 centímetros de comprimento. O livro diz que a cápsula foi depositada sob a pedra fundamental da herma de Lund (monumento que pode ser busto de pedra ou obelisco).
A localização, no entanto, não é muito precisa. Um dos trechos diz que a arca foi enterrada “no jardim fronteiro à sede do futuro Museu de 'Sciencias Naturaes'”. Contudo, esse museu, que viria a substituir ou a integrar a antiga Feira de Amostras, foi demolido para dar lugar ao atual Tergip, a Rodoviária. Outra referência: “A pedra fundamental (sob a qual estaria a cápsula) foi lançada em cerimônia na Praça Rio Branco, no jardim fronteiriço ao antigo edifício da Alfândega, hoje, Tribunal Eleitoral". Tal edifício é onde hoje se encontra a sede da 1ª Risp.
Pelas fotografias do livro, tiradas durante o lançamento da cápsula, mais pistas podem ser colhidas. Em uma das imagens, o então prefeito de BH José Soares de Matos aparece colocando uma pá simbólica de cimento sobre a cápsula. Atrás das autoridades que o cercam, pode-se ver a porta de entrada do atual edifício da 1ª Risp, o que poderia situar a arca sob as pistas do BRT/Move. Em outra imagem, a foto do discurso de Waldemar Tavares Paes (pai de Rômulo Paes), médico higienista da Secretaria de Educação e Saúde Pública do estado, consegue-se ver a torre do Santuário Arquidiocesano Nossa Senhora da Conceição dos Pobres, na Lagoinha, o que sugere que a cápsula pode estar nos jardins da 1ª Risp.
Caça à relíquia
O que dizem as instituições envolvidas
» Academia Mineira de Letras (responsável pela concepção da Cápsula do Tempo)
Apenas referências nas Efemérides da AML. “Da autoria de Aníbal Mattos, surgiriam diversos estudos pessoais ou reprodução das memórias de Lund, como se vê em efeméride de 25 de junho.”
» Prefeitura de Belo Horizonte
Fizemos pesquisas nos acervos do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte e do Museu Histórico Abílio Barreto, mas, infelizmente, não encontramos nenhum documento ou material sobre o tema solicitado.
» Secretaria de Estado de Cultura
Foram feitas procuras junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG), Museu Mineiro e Arquivo Público Mineiro, mas nenhuma referência foi encontrada sobre a cápsula do tempo até o momento
» Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública
Verificamos com os atuais gestores do prédio da 1ª Risp, mas não conseguimos localizar nenhum documento ou profissional com informações sobre essa cápsula do tempo. Caso a relíquia realmente esteja no terreno da unidade, não é de conhecimento das forças de segurança
As notícias que foram guardadas
Na edição de 25 de outubro de 1934, a principal notícia era a apuração das eleições legislativas para a Câmara Federal, à Constituinte federal, à câmara estadual e à Constituinte estadual. A previsão era de que os resultados finais seriam divulgados em 40 dias. Na época, apenas dois partidos dominavam a disputa, o Partido Republicano Mineiro (PRM) e o Partido Progressista (PP). Ao lado, uma foto do navio-escola Almirante Saldanha, da Marinha de Guerra brasileira, tinha destaque ao fundear na Baía de Guanabara.
Na edição do dia seguinte, 26 de outubro de 1934, seguia o destaque para a apuração das constituintes estadual e federal, bem como para as vagas legislativas, com ampla margem de votos favorável aos progressistas. O retorno do arcebispo de Belo Horizonte, dom Antônio dos Santos, do Congresso Eucarístico Internacional, em Buenos Aires, também tinha posição nobre entre as notícias.
Pista na geometria do concreto
A investigação da reportagem do EM para encontrar a cápsula esquecida de Peter Lund procurou registros de obras naquela localidade. Em 2013, durante as intervenções de instalação do BRT/Move, as empreiteiras contratadas pela Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap) e a Secretaria de Estado de Transportes e Obras Públicas (Setop) precisaram escavar para remover o asfalto entre a Praça Rio Branco e a 1ª Risp e assim instalar as pistas de concreto. Na época, a reportagem do EM procurou os órgãos para saber se algum objeto antigo, histórico ou importante foi encontrado. A resposta foi negativa: “Apenas cabeamentos e antigos encanamentos”. Com isso, a cápsula pode não estar sob as pistas do Move.
A Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) foi procurada e informou que na 1ª Risp, onde trabalham policiais militares e civis integrados, não há qualquer informação sobre uma cápsula do tempo enterrada nos jardins. Mas o pesquisador e professor do Centro Universitário Newton Paiva Luciano Emerich Faria localizou no jardim um monolito de granito de um metro e meio de altura que pode ser a herma de Lund. “O monolito não tem uma marca de fixação de placas, mas pode ter tido. Pode ser a própria herma do Lund. Acredito que a cápsula do tempo possa estar em volta desse marco, porque para tirar a rocha seria necessário muito esforço. Mas só se saberá disso se escavarem as laterais para conferir”, afirma.
Essa candidata é a mais promissora, na opinião do professor, que é doutor em história da ciência. “Quase não tenho dúvidas de que a cápsula do tempo está na área do monolito. Se estiver embaixo da avenida ou da rodoviária a localização será mais difícil. A 'caça ao tesouro' continua. Mas é preciso que os órgãos de patrimônio e o poder público manifestem interesse e não permitam essa omissão à homenagem deixada para Lund”, afirma.
Apoio popular A população que circula pelo Hipercentro de BH se mostrou favorável a recuperar a cápsula do tempo. “Uma das coisas mais bonitas que já vi foram as grutas de Maquiné e da Lapinha (em Lagoa Santa, onde Lund viveu e fez estudos mundialmente reconhecidos). A gente não pode perder a história dessas coisas, que só ficam depois na nossa memória. É um desrespeito prestar essa homenagem e depois a perder, quando poderia ser aberta e mostrada para a sociedade”, disse o autônomo Paulo Sérgio Cândido, de 52 anos.
“Me lembro da torre alta da Feira de Amostras, antes de ser demolida para construir a Rodo- viária. Muita gente vinha para ver o programa do Bentinho do Sertão e sua gente, na Rádio Inconfidência. É mesmo um absurdo terem feito uma homenagem e depois a perdido. O brasileiro é mesmo um povo que esquece das coisas mais importantes”, disse o motorista Eustáquio Santos, de 74.