Dependurar-se em paredões íngremes. Rastejar por câmaras subterrâneas e galerias alagadiças. Apalpar rochas no escuro, a centímetros das aranhas mais venenosas do Brasil. Deslizar por encostas que abrem a carne e partem os ossos. Seguir os passos do naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund em suas aventuras, entre 1835 e 1844, na região cárstica de Lagoa Santa, foi uma aventura que demandou pesquisas, esforços físicos, planejamento e sacrifícios. Mas os resultados da expedição seguida pelo Estado de Minas, entre 3 e 5 de junho, reafirmam a importância do cientista, considerado o pai da paleontologia brasileira, naquele que seria seu aniversário de 220 anos, comemorados na última segunda-feira e que o EM mostra em série que termina nesta edição.
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Momento alto da viagem foi presenciar quando pesquisadores constataram que uma caverna longínqua perdida em uma encosta íngreme de Curvelo era a primeira gruta descrita por Lund e Brandt, a Lapa dos Gentios, que estava desaparecida há 186 anos. À descoberta se seguiram as dificuldades das explorações da dupla e ainda um importante alerta sobre o sumiço da cápsula do tempo em homenagem ao cientista, lançada em 1934, em BH, e que tem o seu paradeiro ignorado.
A peça fundamental para essa expedição, em parceria com especialistas do Centro Universitário Newton Paiva e do Grupo de Estudos Espeleológicos Opilião, foi o pesquisador e professor da instituição Luciano Emerich Faria, que é doutor em história da ciência. Obstinado explorador das cavernas mineiras, Faria procurava há 10 anos pela Lapa dos Gentios, considerada a primeira caverna descrita por Peter Lund e seu inseparável parceiro de aventuras, Peter Brandt, em 1835, quando teve início a última fase de explorações. A procura da caverna foi tema da primeira reportagem da série, mas já em 2016 o professor levou a reportagem a uma outra gruta de Peter Lund que foi reencontrada, a Lapa da Forquilha, em Baldim.
Para localizar a lapa, o professor procurou em comunidades rurais de Curvelo notícias sobre grutas próximas, mas as pessoas, inclusive os mais antigos moradores da região, nem sequer conheciam cavidades rochosas perto de suas casas. Até que, com a ajuda do vice-prefeito da cidade, Gustavo Nascimento, o pesquisador soube de uma caverna erma, onde poucos iam, no alto de um paredão rochoso de quase 100 metros que se torna cachoeira quando chove.
“Eu mesmo, que sou da região, nascido no distrito de São José da Lagoa (JK), não sabia dessa gruta. Mas chamou a atenção pelo córrego e o nome da comunidade ser 'dos Gentios', como a lapa de Lund. O que nos moveu a apoiar essa expedição é descobrir e promover estudos desse que pode ser um tesouro para a história da nossa cidade”, afirma Gustavo Nascimento.
Lacuna preenchida Outras cavernas candidatas a Lapa dos Gentios também foram visitadas na expedição, algumas ainda mais longínquas, sem estradas de acesso ou trilhas demarcadas, mas acabaram descartadas pelos cálculos comparativos. Pelos caminhos até a Lapa dos Gentios, com facões, água, instrumentos de medição, filmagem e fotografia, os oito integrantes da expedição enfrentaram escalada em paredões íngremes. O impacto de ver as formas desenhadas por Brandt se encaixando na estrutura de rochas que o grupo vasculhava é dos momentos mais significativos de qualquer descoberta ou redescoberta científica. Uma lacuna na história que se preenche.
Seguir os passos de Lund e Brandt, imaginando-os dependurados no alto de encostas como a da Lapa dos Gentios, muda a percepção das condições de trabalho enfrentadas pela dupla de desbravadores e revela um lado de extrema coragem que é pouco conhecido. Os longos deslocamentos da expedição pelo cerrado mineiro, entre Curvelo, Matozinhos, Pedro Leopoldo e Lagoa Santa, dão uma ideia do esforço da dupla, que percorria essas distâncias em lombos de burros, no início do século 19.
Com apoio da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Semad), que possibilitou acesso aos sítios explorados por Lund em parques estaduais, acolhendo também a reportagem em suas dependências, as paisagens naturais e rochas preenchidas por pinturas rupestres de mais de 10 mil anos ficaram mais acessíveis, mostrando que se conservam praticamente do mesmo jeito em que estavam quando foram ilustradas pelo norueguês Peter Brandt. O grupo percorreu as incríveis formações de Cerca Grande, pronta para se tornar um parque totalmente do estado, em setembro, e a Lapa do Sumidouro, onde Lund fez as descobertas que mudaram o entendimento da história.
O ingresso na Lapa do Sumidouro mostrou como foi difícil para Lund chegar até os fósseis de 30 indivíduos e verificar que o pré-histórico homem de Lagoa Santa conviveu com as feras extintas da Idade do Gelo. Logo na entrada apertada, observa-se um canal que Lund construiu para desviar a água que entra por fendas na superfície, os sumidouros, e cursos dentro da caverna, alagando partes da cavidade por longos meses.
Tal umidade torna a caverna escorregadia e por isso perigosa, a ponto de dificultar a sua exploração, propiciando muitos tombos e quedas, tendo o repórter Mateus Parreiras deslizado de uma descida com dois metros de altura e quebrado a sétima costela do lado direito. Ainda assim, a exploração continuou. Para penetrar na caverna, só rastejando, e é perto do chão que se observa uma cobertura diferente formada por conchas de crustáceos recobrindo o solo, mostrando que o ambiente realmente fica alagado em algumas épocas. Outro habitante frequente e perigoso são as aranhas marrons, um dos aracnídeos mais venenosos do Brasil, produtor de veneno necrosante que pode levar a mutilações, falência renal e até a morte.