Jornal Estado de Minas

SÃO JOAQUIM DE BICAS

Posseiros da Mata do Japonês reivindicam usucapião da terra

Em mais um episódio da ocupação da Mata do Japonês, em São Joaquim de Bicas, o grupo indígena Pataxó Ha-Hã Hãe e os posseiros de terra ainda não chegaram a um acordo definitivo. Ambos alegam ter direito sobre a terra, um por usucapião e o outro pela doação e compra do local.




 
Segundo a advogada Fernanda Lopes, defensora dos posseiros, eles são ex-membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e chegaram à Mata do Japonês em 2019, após a tragédia de Brumadinho – como os indígenas, foram atingidos pelas consequências da lama. 
 
“Eles chegaram lá depois da tragédia de Brumadinho, em 2019. Antes moravam em acampamentos do MST, às margens do Rio Paraopeba e também foram atingidos, ficando sem água. Eles começaram a sair desse local e, sem ter para onde ir, optaram pela mata”, diz Fernanda.
 
Em 9 de junho, cerca de 20 famílias indígenas do grupo Katuramã ocuparam a Mata do Japonês, por meio de doação de 70% do território, feita pelos proprietários legais do local, a Associação Mineira de Cultura Nipo- Brasileira (AMCNB).



Os outros 30% serão pagos pelo grupo após o recebimento de uma indenização. 
 
O lugar é uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) e recebeu o título em 2000, do Instituto Estadual de Florestas (IEF), entretanto a área total (40,6604 hectares) não foi contemplada como reserva, apenas cerca de metade dela (22,1136 hectares). 

Em virtude de, aproximadamente, 18 hectares que não fazem parte da RPPN, a advogada dos posseiros acredita que a ocupação indígena não pode exigir a saída do grupo.

Documentação


Além disso, alega que não há documentos públicos que comprovem a transferência da reserva da AMCNB para os Pataxós. 
 
“Para nossa surpresa, no dia 9 os indígenas começaram a ocupar o local à força, porque não existe nenhum tipo de ação judicial para fazer integração da posse. Fui chamada no local e levantei toda a documentação para saber da legitimidade da ação. De fato, existe um termo precário da posse, no entanto, nenhum documento foi levado a público. Não tem registro público da venda aos indígenas”, disse.




 
“Somente um registro público pode transferir a propriedade. Eles não têm qualquer tipo de documentação. E, ao que parece, a área doada são só os 22 hectares. Sobram, em média, 18 hectares sem reserva. Mas ninguém conseguiu identificar quais são as partes preservadas. Fazendo uma pesquisa, encontrei processos de 2016 e 2021, onde os proprietários entraram com uma ação judicial para pedir a reintegração das posses. No entanto, após cinco anos, o juiz indeferiu o pedido de retirada dos supostos novos invasores do imóvel. Ou seja, os meus clientes têm total legitimidade de ficar no local, até decisão contrária”, explica a advogada. 
 
Segundo o diretor administrativo da Associação Mineira de Cultura Nipo- Brasileira, Antônio Hoyama, o processo referido pela advogada dos posseiros está em andamento na Justiça desde 2016 e já conta com 29 pessoas indiciadas por invadir a reserva.

Quando novos invasores foram percebidos, a associação também tentou processá-los, mas sem seus nomes ainda não foi possível judicializá-los, como os outros.
 
“Nós indiciamos 29 pessoas que invadiram, porque o Ministério Público conseguiu identificar os nomes, através de oficiais. A Justiça identificou, só que a invasão continuou e existem mais pessoas. Os que já foram judicializados tem advogados, ela representa os que ainda não foram. Acontece que, só o fato de estarem invadindo nós não conseguimos processar, porque precisamos dos nomes. Assim, podemos dar andamento no processo. Por isso, o juiz indeferiu, estava sem nomes, só os identificados que continuam”, diz Hoyama.




 
Ele confirma que a área aprovada como reserva pelo IEF é cerca de metade do total, porém não há demarcação no espaço que garanta a divisão.

“No ano 2000, quando o IEF aprovou a portaria 75, eles aprovaram a área de 22,1136 hectares. Só que não tem a delimitação. Hoje, teria que contratar um topógrafo para descrever isso. Inclusive, na Prefeitura de São Joaquim de Bicas consta que a área toda é reserva”, explica o diretor administrativo. 
 
A documentação de transferência para o grupo Katuramã está em andamento e ficou acordado que 70% é doação e os outros 30% serão pagos quando os indígenas receberem verbas de indenização da mineradora Vale pela tragédia de Brumadinho.

Mas Antônio sabe que essa decisão pode levar anos ou, até mesmo, nunca acontecer. 
 
“Os indígenas não tinham onde morar, estavam no desespero e precisavam entrar de imediato. Os advogados estão estudando um meio correto para fazer a transferência de escritura, mas já demos um termo declaratório para o grupo, que eles só vão pagar quando receberem indenização da Vale. Não tem prazo para eles pagarem, pode durar 20 anos ou talvez não saia nunca, mas nós sabemos”, afirma Hoyama.




Reivindicar a doação

Documento de posse entrega pela Associação Mineira de Cultura Nipo-Brasileira ao grupo Katuramã (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)


Antônio se revolta com a atitude dos posseiros por questionarem a doação do território aos indígenas.

“Sendo proprietários da terra, podemos doar ou vender para quem quisermos, sem consultar ninguém. O decreto da reserva dá esse direito de doar e vender, mas transferindo a responsabilidade para o novo dono. A responsabilidade da reserva que estava sob nossos cuidados agora vai ficar com os indígenas”, diz.
 
Segundo Fernanda Lopes, advogada do grupo de posseiros, eles também ocuparam os lotes e não realizaram compra. “Muitos têm sido expulsos do MST e, quando ficam sem ter onde morar, um conhecido que já está na Mata do Japonês convida o outro, que passa a morar lá. Não existe venda de terra por parte dos meus clientes. Se tiver, não tenho conhecimento”, disse.




 
Apesar de a área se tratar de uma reserva em 22 hectares, com a Associação Mineira de Cultura Nipo- Brasileira enquanto proprietária, segundo Fernanda, o lugar era abandonado.

“Era uma área de desova de corpos, com grande criminalidade envolvida. Era um local de desmanche de carros, então não estava sendo cuidada, nunca foi. Depois de 2019, quando começou a ocupação, essa questão da criminalidade acabou. Porque, obviamente, tinha gente no local”, explica a advogada.
 
Por esse motivo, ela afirma que os posseiros podem entrar com uma ação de usucapião dos lotes: “Toda a área que não é cuidada pelo proprietário, a lei autoriza que outro cuide e, depois de cinco anos, eles podem entrar com acordo de usucapião e se tornarem proprietários daquela terra”, explica Fernanda.
 

O que é usucapião?

De acordo com Arthur Thomazi, advogado especialista em direito imobiliário, usucapião é uma forma legal de adquirir um imóvel.

“A lei determina alguns requisitos que, se forem preenchidos, tornam a pessoa dona da terra, casa, lote ou apartamento, sem necessariamente ter desembolsado por isso”, explica.




 
Entretanto, as regras variam de acordo com tempo de ocupação, tamanho do imóvel e qual destinação dele. “Os requisitos variam de acordo com o tipo de usucapião. Em alguns casos, a lei exige mais ou menos tempo de ocupação sem resistência do efetivo proprietário. Outra questão importante é o tipo de destinação que é dada ao imóvel e seu tamanho também. A aplicação de cada requisito depende da análise do caso concreto, inclusive, determinados bens não se sujeitam à usucapião, como imóveis de propriedade do Poder Público”, disse Arthur.
 
Segundo o especialista, doar um imóvel não garante posse imediata do local. “Pode parecer absurdo, mas quando fazem a doação, estão doando a propriedade. Isso é uma questão jurídica, cartorial. A posse é uma questão de fato, independentemente da forma, a verdade é que elas estão lá. Ter a propriedade, a partir da doação, não significa imediatamente a posse”, explica.
 
“Caso o imóvel recebido por doação esteja ocupado por terceiros que já preencham os requisitos para usucapir o local, é provável que o direito do ocupante prevaleça e ele continue na posse. Nesses casos, a discussão acabará no Judiciário, sempre complexa e demorada, a ser resolvida por meio de provas”, finaliza o especialista. 




Como está a situação da Mata do Japonês?

Na segunda-feira (14/6), foi feita uma reunião para fechar um possível acordo, porém nada ficou resolvido.

“Tivemos uma reunião na segunda e estiveram presentes a OAB, a DPU, as partes (Associação Nipo, os Katuramãs e a advogada). O que ficou definido: nada”, disse Alessandra Vilaça, que representa os indígenas.
 
Ela afirma que o grupo não quer conflitos com nenhum dos posseiros e gostaria que tudo se resolvesse o mais rápido possível. “Vamos tentar da melhor forma, queria muito que as coisas se resolvessem rápido. O projeto dos Katuramãs é ótimo e eles não querem brigar”, disse.
 
Mesmo com o processo indeferido pela Justiça por falta de nome dos novos invasores, Alessandra afirma que pretendem fazer um acordo com todos, para conseguir um local adequado de moradia, sem processá-los pela ocupação. 




 
“Vamos fazer um acordo com quem já está lá, se eles estiverem em um local que não pode, iremos encontrar outro. Nós queremos chegar nos grileiros, que estão vendendo as terras. Não é exatamente sobre quem comprou, porque os grileiros continuam espalhando lotes e eles têm que ser parados, isso é crime”, explica a advogada dos indígenas.
 
Ela diz não saber quem são ou quantos são os clientes defendidos pela advogada dos posseiros e que isso está dificultando um acordo. “Ela é advogada do grupo de grileiros? Posseiros? Que grupo? É muito vago ser advogada de um grupo. Deveria ter dito, pelo menos, de quantas pessoas e dado o primeiro nome. Não para judicializar, mas para sabermos quem é quem”, diz.
 
“Ela diz ter orientado os clientes dela para não fazer nada, mas não fala quem são eles. Como vou saber se não estão desmatando, colocando fogo na mata? Essas pessoas vão ser orientadas a falar que ninguém vendeu, entendo que ela está resguardando-os, mas sem os nomes, hoje podem ser 30 posseiros e amanhã podem ser 60. Como vou saber quem estava lá para fazermos um acordo?” questiona Alessandra.




 
Área desmatada e loteada (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)


A área é constantemente desmatada, com queimadas e cortes de árvores. Apesar disso ser proibido em uma reserva, a advogada dos posseiros afirma que já orientou todos os clientes a não tomarem nenhum tipo de atitude nesse sentido.
 
“A lei não permite que locais de reserva ambiental tenham desmatamento, isso não vamos justificar. A gente vê uma área desmatada, com queimada. Mas todos os meus clientes estão cientes que não podem fazer isso e, se ocorreu no passado, não foram eles”, disse Fernanda Lopes. 
 
A advogada do grupo Katuramã rebate, dizendo que, sem saber quem são os posseiros, não há certeza dos autores do desmatamento da área: “Quando eu mostro os vídeos, ela fala que não são seus clientes. Mas são os clientes de quem, então? Não consigo inibir a ação dessas pessoas, porque não sei quem é quem. Não sei se são os grileiros, os clientes dela, se é outra pessoa”, finaliza Alessandra Vilaça.

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