Sem salário, folga, férias nem carteira assinada e vivendo em condições precárias. Essa era a situação de quatro pessoas que foram resgatadas após uma ação de fiscalização em uma fazenda na zona rural de Rio Vermelho, no Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Entre elas está uma idosa de 83 anos, que havia 60 vivia em situação análoga à escravidão.
A ação foi realizada em conjunto pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), pela Auditoria Fiscal do Trabalho do Ministério da Economia e Polícia Rodoviária Federal (PRF). A força-tarefa foi montada após uma denúncia relatar a situação da idosa. Além dela, foram encontrados os outros três trabalhadores. Após a equipe constatar as condições análogas à escravidão dos trabalhadores, eles foram resgatados e encaminhados a uma rede de proteção especial do município, serão inscritos em programas sociais e foram emitidas guias para o recebimento do seguro-desemprego.
Não foram divulgados os nomes das vítimas nem dos proprietários da fazenda. O Ministério Público informou que negocia com o dono da fazenda o pagamento das verbas salariais, rescisórias e indenizatórias dos quatro trabalhadores, além de compensação pelos danos sociais “decorrentes da gravíssima conduta praticada”.
Segundo texto publicado no site do MPT, o procurador Fabrício Borela Pena, que atuou na fiscalização, contou que essas pessoas também não recebiam remuneração ou 13º salário, não havia depósito de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) nem de contribuição previdenciária. Também não havia limitação da jornada de trabalho, exames médicos, medidas de gestão de trabalho rural nem equipamentos de proteção individual (EPIs).
A fiscalização ainda constatou moradia rural sem condições de segurança, conforto e higiene, sem armários individuais e local adequado para armazenamento e preparo das refeições.
TRABALHO DESDE OS 12
De acordo com o Ministério Público do Trabalho, a idosa de 83 anos morava na fazenda desde os 12, após se mudar para o local com a mãe. Segundo Fabrício Pena, ela realizou serviços domésticos por toda a vida. “Jamais foi reconhecida como trabalhadora: nunca recebeu salário, nunca tirou férias, não tinha limitação de jornada, folga semanal ou intervalos. Trabalhou por, no mínimo, 60 anos em favor da família do proprietário, preparando as refeições, limpando e organizando a casa, lavando e passando roupas, cuidando das crianças, entre inúmeras outras tarefas”, explicou o procurador, segundo o MPT.
“Nos últimos anos, com o avançar da idade, ela já não tinha condições físicas de trabalhar com a mesma intensidade, de modo que o proprietário passou a contratar pessoas para realizar o trabalho doméstico em alguns dias da semana. No entanto, ela nunca parou totalmente de trabalhar na casa”, disse.
A idosa recebia dinheiro contado para pagar despesas específicas e inevitáveis, como gastos com a saúde. A maior parte das roupas dela eram doadas pela família do dono da fazenda. Sem renda, ela tinha pouquíssimos pertences e de pouco valor, a maioria para higiene pessoal. Sua contribuição para a Previdência Social nunca foi recolhida e ela não se aposentou. A equipe da fiscalização encontrou a idosa debilitada, com uma ferida na perna e dificuldades para se locomover.
Outro trabalhador resgatado tem 49 anos e estava na fazenda há mais de 30, nas mesmas condições. Com deficiência auditiva, ele trabalhava todos os dias, sem descanso semanal, sem salário regular nem férias. De acordo com Fabrício Pena, do MPT, o quarto em que vivia o trabalhador estava em condições precárias de conforto, higiene, limpeza, organização, arejamento e iluminação.
“O trabalhador dormia em uma cama de madeira, com colchão encardido e empoeirado, roupas de cama gastas e sujas. Não havia armário para guarda de pertences, com objetos espalhados por todo o quarto e roupas amontoadas em um varal improvisado”, narrou. Ainda segundo Pena, embora houvesse janela, ela era mantida sempre fechada, “de modo que o cômodo era impregnado por forte cheiro de mofo, com muita poeira e sujidade”. O teto, o piso, as portas e o pouco mobiliário existente estavam deteriorados e sujos. “Dentro do quarto ainda eram deixadas diversas ferramentas de trabalho, como facões, enxadas, garrafas, etc.”, informou.
PERCURSO A PÉ
Os outros dois trabalhadores resgatados pela força-tarefa na operação são um casal que vivia com três filhos em condições inadequadas e em uma área de difícil acesso. O marido tem 42 anos e trabalhava na fazenda havia 13, e a esposa, de 50, passou a atuar no local há três meses. Para ir e voltar da fazenda, eles caminhavam por cerca de três quilômetros em cada trecho, passando por uma pinguela que construíram, ou atravessavam um riacho com água na altura dos joelhos. Quando o curso d’água sobe, eles ficam isolados.
“A casa em que residem é de pau a pique, subdimensionada, com diversas frestas no telhado que permitem a entrada de animais peçonhentos. Há fiação exposta e improvisada, com riscos de choques elétricos. Não há local adequado para guarda de alimentos. A água é retirada de uma pequena cisterna que não possuía vedação adequada, permitindo a queda de matéria orgânica e até pequenos animais e insetos, tornando a água imprópria para consumo, uma vez que não passa por qualquer processo de purificação ou filtragem”, detalhou o procurador do MPT em Minas.