Consultado pela reportagem, o município não informou quantas ocupações surgiram na cidade durante a pandemia. O Movimento de Libertação Popular (MLP), no entanto, contabiliza ao menos 20 novos espaços ocupados por famílias sem-teto em BH desde o início de 2020.
Um deles fica na Rua dos Tamoios, número 40, no Centro. O imóvel, segundo os ocupantes, está abandonado há mais de uma década e está sob ocupação desde dezembro de 2020. Atualmente, abriga cerca de 20 famílias, que se instalaram em cômodos improvisados, separados por tapumes e lonas. Os moradores, no entanto, vivem sob a angústia do despejo, já que o proprietário do prédio já acionou a Justiça para removê-los.
Yasmin Emiliano, de 24 anos, chegou ao local em janeiro, com o marido e dois filhos – um de 2 anos e outro de 5 meses. Ela trabalhava como chapista em uma lanchonete da capital, mas perdeu o emprego em junho do ano passado. O companheiro dela, que é pintor, perdeu o trabalho pouco depois.
Do atraso do primeiro aluguel à ordem de despejo, a jovem calcula que foram aproximadamente cinco meses. Primeiro, a família se mudou do Bairro São Gabriel, Região Norte de BH, para o Bonfim, na Região Noroeste, onde era mais barato morar. Sem melhora na situação financeira, o casal passou a vender móveis e eletrodomésticos para fazer frente às despesas. Até que as panelas também se esvaziaram e já não havia mais o que vender.
Dívidas
"Antes da pandemia, eu estava juntando dinheiro para montar uma lanchonete, ia comprando os equipamentos devagar. Já tinha umas vasilhas e uma chapa de lanche. Quando comprei minha chapa, foi o momento mais feliz que eu tive. ‘Nossa, está chegando lá, eu vou conseguir’. Daí, veio a pandemia, e eu vi minhas coisas indo embora. Mas a chapa eu segurei até o último minuto, pois pensei: ‘Com ela, a gente monta o churrasquinho e continua a trabalhar. Vamos segurar’. Foi a última coisa que vendi dentro de casa. Vendi para pagar meu aluguel e o dinheiro nem era suficiente para cobrir tudo. Comprei por R$ 500, vendi por R$ 400. O aluguel era R$ 450. Paguei atrasado. Na época, já estávamos devendo conta de luz, não tínhamos gás. O leite das crianças também já tinha acabado”, relata a jovem.
Yasmin e o marido, agora, vendem bombons pelas ruas do Centro. “Tem mês que nós dois, juntos, não fazemos nem R$ 400. Para piorar, meu auxílio emergencial foi negado. Já fiz posts no Facebook para pedir ajuda, mas, atualmente, não quero fazer mais isso. Muitas pessoas me ajudaram, mas também passei por muita humilhação. Já me chamaram de golpista, oportunista, tanta coisa... Disseram que era mentira, que eu não estava precisando de nada. Buscaram fotos minhas antigas, de quando anunciei minhas coisas para vender por necessidade, e usaram para dizer que estava dando golpe. Que não precisava de nada, que pegava coisas dos outros para vender. Nunca tive dinheiro, mas é a primeira vez que me vejo à beira do olho da rua. Nenhuma mãe de família merece o que eu estou passando”, conclui.
Vivendo debaixo da “proteção do Brasil”
Se a situação é péssima nas ocupações ou para quem acabou de chegar às ruas, é ainda pior para quem já vivia nelas. Gente como Alexandre Cota Ferreira, de 46 anos, que há pelo menos três anos “mora” com a mulher na esquina da Praça Raul Soares com a Avenida Bias Fortes, no Centro da capital, enfrentando falta de emprego, fome e o frio do atual inverno. Ironicamente, uma Bandeira do Brasil, com cerca de 10 metros de largura, é o que lhe serve de teto há vários dias.
“Sempre que acho algo que me interessa, pego para ajudar a ‘formar’ minha casa. Essa bandeira eu achei dentro da caçamba de um lixo do lado do Mercado. O pessoal me pergunta se é por causa do futebol, mas eu explico direito, que é para nos proteger do frio. Muitos gostam de tirar foto e ficam me conhecendo. Fiquei amigo de muitos por causa da bandeira”, conta Alexandre, sorrindo.
Debaixo do símbolo nacional vive também a mulher dele, Jaqueline Valença, de 32, natural do Rio de Janeiro, além de um gatinho de estimação. Em abril, nasceu Jordan (bebê batizado em homenagem ao astro do basquete norte-americano Michael Jordan), que hoje vive em num abrigo do município com outros dois filhos dela, de outro casamento.
Alexandre sobrevive de reciclagem, lavagem de carros e “bicos” na região, além de moedas dadas por pessoas que passam pelo local. Do passado, além das lembranças dos trabalhos em lava-jato, como repositor de um sacolão e como auxiliar de pedreiro – e também de alguns “escorregões” e problemas com a lei –, traz o desejo de ter um lugar digno para passar as noites. “Quero uma moradia e os benefícios da maternidade do governo. Não recebemos nenhum até hoje, nenhum auxílio na pandemia. A prefeitura também não deu conta de nos atender. Minha intenção é registrar o meu filho e os da Jaqueline e ter uma casa para viver do nosso sustento”, resume ele, agora já vacinado, com a mulher, contra a COVID-19. (Roger Dias)
Projeto suspende ordens de desocupação
Com 38 votos favoráveis e 36 votos contrários, o Senado Federal aprovou, em 23 de junho, o Projeto de Lei 827/2020, que suspende medidas judiciais para despejo ou desocupação de imóveis até o fim de 2021, devido à pandemia de coronavírus. A regra vale para imóveis ocupados até 31 de março de 2021. O texto, porém, ainda retornará à Câmara dos Deputados para aprovação de um destaque que prevê a exclusão de imóveis rurais do escopo da lei. Em seguida, deve seguir para sanção presidencial. Também em junho, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu despejos e outras medidas de desocupação por seis meses. O prazo pode ser estendido caso a pandemia perdure. A decisão, porém, contempla apenas áreas habitadas antes de 20 de março de 2020.