Jornal Estado de Minas

EPIDEMIA DO DESPEJO

Moradores de rua em BH já superam população de 450 cidades mineiras

Primeiro, vem o corte drástico da renda, normalmente provocado pela perda do emprego de um ou mais integrantes da família. Algum tempo depois, a cruel escolha entre necessidades básicas: moradia ou alimentação. O desfecho é tão implacável, quanto triste: barracas montadas nas calçadas, colchões sob marquises, mudanças para ocupações precárias.





Esse é o roteiro padrão dos relatos de inúmeras famílias que passaram a morar nas ruas de Belo Horizonte desde o início da pandemia. Um total estimado em 8.840 pessoas pelo Projeto Polos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais, em relatório publicado em abril deste ano. Se esse grupo formasse uma cidade, teria mais habitantes que a população individual de 450 municípios mineiros, e equivaleria ao número de moradores estimado pelo IBGE para Coluna, no Vale do Rio Doce.

É um contingente 20% maior em relação aos registros do fim de 2019, quando os mesmos pesquisadores contabilizaram 7.390 cidadãos vivendo ao relento na capital. O levantamento foi feito com base em dados do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico).

Os dados divergem dos cálculos da prefeitura. Segundo o último censo municipal, divulgado em janeiro de 2020, há 4,6 mil sem-teto na capital mineira. Os estudiosos da UFMG, contudo, contestam o município e alegam que os cadastros da Secretaria de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania estão desatualizados.



Retrato da vulnerabilidade: de acordo com projeto da UFMG, capital tem 8.840 pessoas vivendo ao relento, 20% a mais que o estimado em 2019 (foto: Edésio Ferreira/EM/DA Press)
Esse aumento da população vulnerável também é notado por entidades de assistência e movimentos sociais. No Canto da Rua Emergencial, projeto aberto em junho na Serraria Souza Pinto, Centro de BH, a coordenadora Claudenice Rodrigues diz receber até 30 novos desabrigados diariamente.

Na Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte, outra instituição em que a assistente social atua, o movimento dobrou. “Até o início de 2020, atendíamos em torno de 350, 400 pessoas por dia. Atualmente, já são mais de 800. Também notamos que as condições de quem já vivia na rua pioraram. Está mais difícil achar trabalho, e a concorrência por doações aumentou. A pandemia veio como um trator sobre essas pessoas”, compara Claudenice.

 

"Ninguém imagina. Até que acontece"

Na rua há três meses, Daniel Fidelis passa as noites em colchões posicionados em passeio público da área hospitalar (foto: Maria Pereira/EM/DA Press)
Entre 29 de junho e 1º de julho, a equipe do Estado de Minas percorreu diversos pontos da cidade, onde foi fácil encontrar pessoas dos mais variados perfis recém-chegadas às ruas.



Uma delas é Daniel Fidelis, de 24 anos. Há cerca de três meses, ele passa as noites em colchões posicionados em passeio público da área hospitalar, próximo à Avenida Alfredo Balena. Pai de uma filha de 1 ano, o rapaz conta que perdeu o emprego durante a pandemia. Sem dinheiro para custear despesas dentro de casa, conta que acabou expulso pelos parentes.


 

“Esta é uma situação em que ninguém se imagina. Até que acontece. Enquanto você está com a sua casa, com o seu lugar para morar, você nunca pensa: 'Olha, isso pode acontecer comigo'. Sua ficha só cai depois que você está nessa situação”, descreve o rapaz.

Sem trabalho, ele tem sobrevivido principalmente da venda de balas. A renda, no entanto, mal cobre as despesas básicas. Para se alimentar, tomar banho e lavar roupas, precisa recorrer à unidade de assistência emergencial Canto da Rua, na Serraria Souza Pinto.



“O pior momento é à noite. Não tem como explicar, não tem como dizer. Você passa o dia inteiro carregando o mundo nas costas. Você carrega ofensas, carrega mau olhado, carrega brigas, energias negativas, humildade, amor, preconceito, muitas coisas. Na hora em que você se deita ali no colchão, no chão, cai a ficha : ‘Estou dormindo no Centro de Belo Horizonte’. Seu mundo cai em cima de você. Imagina o peso de um mundo caindo nas suas costas quando você vai dormir? É uma coisa que dói muito”, descreve.

As angústias de Daniel também estão registradas em letras de rap, que ele compõe desde os 9 anos. “Posso dar uma palinha para a câmera?”, pergunta o rapaz à reportagem, já emendando os versos.

“Cê tá ligado que o bagulho é muito louco, mano, presta atenção/A pandemia veio agitando muito o coração/Muita gente que achou que ia se levantar/Com essa coisa ruim, começou a se afundar/Eu vou te explicar, agora, eu te falo/A cachaça está salvando todos esses intervalos/Eu vou te falar, preste muita atenção/Meu coração chora de hoje estar dormindo no chão/Mas tenho fé de que, um dia, uma king size eu vou portar/Meu carro, eu vou comprar/e eu vou me levantar/Porque é Deus que me ajuda e sempre vai me salvar.”





 

"Acho que virou a chave do mundo”

Sem dinheiro para pagar o aluguel, entregou o apartamento onde morava e se viu sem teto. Ele diz que já foi casado e tem dois filhos jovens. "Um é formado em Ciências Sociais na UFMG e outro está no segundo período da Escola de Música". (foto: Edésio Ferreira/EM/DA Press)
Aos 64 anos, Ari* ainda se lembra da sensação de dormir em camas confortáveis e dirigir bons carros. Ex-gestor comercial de grandes cervejarias e montadoras, ele estava desabrigado havia cerca de duas semanas quando foi entrevistado na rua pelo equipe do Estado de Minas. Agora, tem passado as noites sob o Viaduto Santa Tereza, no Centro da capital. Do passado bem-sucedido, restaram a pasta de executivo e a calça social. E as lembranças.


“Eu sempre trabalhei com vínculo empregatício. Sempre na área comercial, ininterruptamente. Até que a idade foi chegando. Fiquei desempregado antes da pandemia mas, quando ela chegou, o emprego desapareceu. Então eu calcei as sandálias da humildade e estou procurando a ajuda possível”, relata. 


 

O último emprego de Ari foi como gerente regional de uma grande companhia do ramo de bebidas. Ao ser demitido, ele conta que recebeu as indenizações trabalhistas e decidiu apostar na venda de cervejas.



“Até que, numa dessas operações, uma das distribuidoras que trabalhava comigo fechou as portas. E foi aí que eu perdi todo o capital que tinha da minha rescisão e começou a minha queda vertiginosa”, descreve.

Sem dinheiro para pagar o aluguel, entregou o apartamento onde morava e se viu sem teto. Ele diz que já foi casado e tem dois filhos jovens. “Um é formado em Ciências Sociais na UFMG e outro está no segundo período da Escola de Música, também na universidade. Mas eu não quero que eles saibam que estou nessa situação. Ficariam muito abalados.”

A luz no fim do túnel, projeta, chega em fevereiro do ano que vem, quando completa os requisitos para se aposentar. Até lá, ele segue buscando uma ocupação que lhe garanta alguma renda. “O que eu espero nesta altura da vida? Ter a qualidade de vida possível, dentro de uma realidade que eu acho que é diferente da que eu estava pensando anos atrás. Mudou tudo, acho que virou a chave do mundo”, reflete. (*Nome fictício para preservar a identidade, a pedido do entrevistado) 

"A rua é uma doença gradativa"

Edilson Alves veio de Ilhéus (BA) para BH. No início da pandemia, perdeu o emprego, e desde então, dorme em albergues da PBH (foto: Maria Pereira/EM/DA Press)
Às 11h de uma quinta-feira, o vendedor de balas Edilson Alves, de 33 anos, tinha feito apenas três vendas. Com pouco mais de R$ 5 no bolso, ele foi encontrado pela reportagem na Serraria Souza Pinto, onde aguardava o almoço servido diariamente no local pela unidade emergencial Canto da Rua. 

 

O rapaz veio de Ilhéus (BA) para Belo Horizonte há pouco mais de três anos, em busca de oportunidades de trabalho. No início da pandemia, perdeu o emprego de vigilante patrimonial e desde então dorme em albergues mantidos pela prefeitura.



“Quando eu era produtivo, tinha como custear um aluguel de R$ 450, R$ 400. Em consequência da pandemia, veio uma perda considerável. Tive que abrir mão da moradia. O único recurso que eu tenho agora é o auxílio emergencial no valor de R$ 150, com que eu não consigo fazer nada. Estou a Deus dará, né?”, relata o baiano.

A rua, descreve Edilson, é “como uma escada que a gente sobe enquanto está se quebrando”. Sob os viadutos e marquises da capital, não foram poucos os episódios de fome e violência que ele teve que enfrentar.

“Já agredi e já apanhei. Uma vez, sofri um acidente, estava em uma situação de vulnerabilidade. O indivíduo veio contra mim. Eu, como não tinha artifício, peguei uma barra de ferro e apliquei um golpe nele. A rua é isso. Inflama o seu emocional, inflama seu psicológico, muda seu eu, muda tudo. A rua é uma doença gradativa. Quanto mais tempo você passa nela, mais doente você vai ficando.”





Apesar das adversidades, Edilson assume um tom esperançoso quando pensa no futuro. Ele diz que sonha em conseguir um emprego que lhe proporcione uma vida digna, retomar os estudos e voltar à Bahia. 

“Nunca me imaginei nessa situação. Mas estou me adaptando. Estou sendo resiliente o máximo que posso, apesar desse sentimento de degradação que as vezes toma conta de mim. Você era alguém e, de repente, se tornou nada. Mas aí vem também a força de vontade, que é maior. Virão dias melhores. Tenho essa perspectiva de dias bons. Se eu não tiver, vou acabar me revoltando e fazendo o que tantos fazem, cair no crime”, pondera.  

“Pedi, mas os donos não deixaram dormir na obra”

'Trabalho em obra, quando acho vaga. Quando acabar, vou ter que vender pipoca no sinal ou juntar papelão', diz jovem de 25 anos, que volto para as ruas de BH há cerca de 15 dias. (foto: Maria Pereira/EM/DA Press)
Esta é a segunda passagem de Marlon Vinícius, de 25 anos, pelas ruas da capital. Quando foi entrevistado, o rapaz havia perdido a moradia cerca de 15 dias antes. Pedreiro, ele conta que faz bico em uma obra, mas o pagamento não é suficiente para custear o aluguel. “Tem lugar em que o patrão deixa a gente dormir na obra. Eu pedi mas, desta vez, os donos não deixaram, não.” 

Há três anos, Marlon deixou as barracas e colchões em que dormia no Centro de BH para morar com a namorada, com quem hoje tem uma filha. Emocionado, ele conta que as oportunidades de trabalho foram ficando escassas.

Com a falta de dinheiro, os conflitos conjugais foram aumentando, até que ele decidiu deixar a casa onde morava com a família. Sem teto ou familiares que pudessem acolhê-lo, o rapaz hoje é outro que “mora” sob o Viaduto Santa Tereza. 

Essa temporada na rua tem sido mais dura. “A situação, da primeira vez, era um pouco melhor. Tinha mais doação de alimentos e roupas, os abrigos não estavam tão cheios como agora. Os bicos também diminuíram muito. A gente corre atrás de serviço todo dia, e não acha. A pandemia prejudicou muito. Antigamente, era fácil achar um serviço para descarregar um caminhão. Hoje, não tem mais isso. Trabalho em obra, quando acho vaga. Quando acabar, vou ter que vender pipoca no sinal ou juntar papelão, coisas que dão uma renda muito pequena e incerta. Num dia bom, a pessoa faz R$ 30. O que é que dá para fazer com isso?”, questiona o pedreiro.  

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