No mês em que Minas Gerais lembra os 18 anos do início da grande campanha de resgate de bens desaparecidos de igrejas, capelas e museus, o Arquivo Público Mineiro (APM), em Belo Horizonte, recebe documentos do século 19 furtados no estado e à venda num site de leilões. A entrega à diretora da instituição, Luciane Andrade Resende, foi na tarde de ontem, na sede do APM, pelo coordenador estadual das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC)/Ministério Público (MPMG), Marcelo Maffra. O Arquivo, vinculado à Secretaria de Estado de Cultura e Turismo, comemora esta semana seus 127 anos.
Destacando a importância dos três documentos referentes à Revolta da Fumaça, ocorrida em Ouro Preto, ex-Vila Rica, em 1833, Maffra adiantou que em 5 de agosto será lançado um aplicativo, fruto da parceria entre CPPC e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), para celular/tablet, trazendo completo banco de dados dos bens culturais desaparecidos de Minas e permitindo a participação da população na fiscalização do comércio irregular. "Só do APM, já foram furtadas cerca de 4 mil páginas", afirmou o promotor de Justiça.
No caso específico dos documentos entregues ontem e a partir de agora sob custódia do APM, Luciane informou que será investigada a procedência. Há possibilidade de terem sido levados de Lavras, no Sul de Minas, "pois estão endereçados à Câmara da Vila de Lavras (antigo nome do município)". A apreensão, acrescentou, é desdobramento da operação Páginas Históricas realizada a partir de denúncias de furtos de cerca dos cerca de 4 mil documentos ocorridos no APM entre 2013 e 2016.
Venda ilegal
Em 26 de abril deste ano, a CPPC recebeu denúncia sobre a venda ilegal de documentos de possível origem pública em um site de leilões. "No dia seguinte, a equipe do MPMG elaborou parecer técnico, em conjunto com profissionais do APM, constatando que os três documentos identificados no site de leilões faziam referência à Revolta da Fumaça. Conforme a perícia, o APM já havia registrado furto de documentos com esse conteúdo, de forma que havia grande possibilidade de pertencerem ao seu acervo", contou Maffra.
Análises concluíram que os documentos tinham conteúdo de natureza pública, estando vinculados a personalidades públicas e produzidos antes do fim do período monárquico (século 19). "Portanto, tratava-se de coisa fora do comércio, estando inseridos no período descrito na legislação pertinente, qual seja o Decreto-Lei 25/37 (artigo 14), as leis 4.845/65 (artigos 1º ao 5º) e 5.471/68 (artigos 1º ao 3º), que vedam a saída definitiva do país de bens tombados, de objetos de interesse arqueológico, pré-histórico, histórico, numismático e artístico, bem como de obras de arte e ofícios produzidos no Brasil até o fim do período monárquico e de livros antigos e acervos documentais."
Na sequência, o MPMG recomendou ao leiloeiro que os documentos fossem imediatamente retirados do pregão e que os detentores apresentassem dados comprobatórios de compra/venda. Além disso, o MPMG solicitou que os documentos fossem entregues para realização de perícia pelo APM. O MPMG também requisitou os dados do detentor dos documentos, o qual foi imediatamente notificado para celebrar termo de ajustamento de conduta para a devolução dos documentos. "Em 23 de junho, os documentos chegaram à CPPC e são entregues para que possam, novamente, voltar a ter fruição coletiva", ressaltou.
"Depois do tráfico de drogas e armas, o comércio ilegal de bens culturais é o mercado ilícito mais lucrativo do mundo. A maioria das vendas ocorre na internet"
Marcelo Maffra, coordenador estadual das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC)/Ministério Público (MPMG)
Busca
Conforme levantamento mais recente da CPPC/MPMG, Minas procura 787 bens sacros desaparecidos, a exemplo de imagens de santos, castiçais, sinos, partes de altares e outras. Na lista há objetos desaparecidos desde 1807. No período da grande campanha, que completará 18 anos em julho, conduzida no estado para resgate de bens desaparecidos de igrejas, capelas, museus e prédios públicos, foram recuperados 463 bens, fruto de apreensões do MPMG, polícias Federal, Militar e Civil ou entregues espontaneamente. E foi restituída ao local de origem a maior parte delas. Aguardam decisão judicial 88 – entre essas, há peças atribuídas a Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814), o “mestre do Barroco ".
Estima-se que mais da metade do patrimônio cultural mineiro tenha sido extraviado ao longo da sua história. "Depois do tráfico de drogas e armas, o comércio ilegal de bens culturais é o mercado ilícito mais lucrativo do mundo. A imensa maioria das vendas de peças extraviadas ocorre na internet, principalmente em sites de leilões", destaca o coordenador da CPPC.
Sobre o aplicativo a ser lançado dia 5, Maffra explica que, na primeira etapa do projeto, qualquer pessoa poderá acessar o catálogo de peças desaparecidas e denunciar a venda ilícita aos órgãos de fiscalização. Na segunda fase, a ideia é que o banco de dados permita o uso da inteligência artificial para rastrear na internet qualquer anúncio de venda dos bens cadastrados, permitindo a imediata atuação do MPMG, com a recuperação do objeto e a devolução ao local de origem. O sucesso desse trabalho depende não apenas da integração de todos os órgãos públicos que atuam na proteção do patrimônio cultural, mas também da sociedade, que tem um papel fundamental nesse processo contínuo de vigilância.
Revolta da fumaça
Os documentos entregues ontem jogam luz sobre a Revolta do Ano da Fumaça, conflito regencial que aconteceu em Ouro Preto, em 1833, na então Província de Minas Gerais. O nome curioso do movimento tem explicação referente ao clima: durante alguns dias, houve grande neblina na região.
Em 22 de março daquele ano, o grupo político apelidado caramuru (restauradores), aproveitando-se da ausência do presidente da província, Manuel Inácio de Melo e Sousa, marchou sobre Ouro Preto com o apoio do povo e assumiu o poder na então capital mineira. O movimento soltou presos militares e deportou o conselheiro Bernardo Pereira de Vasconcelos e o padre José Bento Ferreira de Mello.
Marco nos resgates
Na história dos 18 anos de resgate das peças sacras e obras de arte por meio da campanha da Coordenadoria Estadual das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico (CPPC)/Ministério Público (MPMG), vale destacar a atuação da Associação Cultural Comunitária de Santa Luzia, na Grande BH. Em agosto de 2003, para ter de volta três anjos barrocos do santuário dedicado à padroeira, desaparecidos desde a década de 1950, a entidade ajuizou ação e conseguiu retirar as peças de um leilão no Rio de Janeiro (RJ). O caso de Justiça e fé ganhou repercussão nacional e se tornou março da recuperação de imagens sacras no país, criando uma política específica no estado para o setor. Hoje, quem visita a igreja, no Centro Histórico de Santa Luzia, pode ver os anjos (foto) em todo o seu esplendor, beleza e significado para os moradores.
Para denunciar
Quem tiver informações sobre peças desaparecidas e quiser fazer denúncias pode acionar:
Ministério Público de Minas Gerais
E-mail: cppc@mpmg.mp.br e telefone (31) 3250-4620. Pode também enviar correspondência para Rua Timbiras, 2.941, Bairro Barro Preto, Belo Horizonte. CEP 30140-062. Também está disponível o blog patrimoniocultural.blog.br.
Iphan
Para obter ou dar informações, basta acessar o site www.iphan.gov.br e verificar o banco de dados de peças desaparecidas. Denúncias anônimas podem ser feitas pelos telefones (61) 2024-6342, 2024-6355 ou 2024-6370, do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização (Depam), e pelo e-mail depam@iphan.gov.br
Iepha/MG
Pelo site www.iepha.mg.gov.br ou telefones (31) 3235-2812 ou 2813