O Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG) decidiu pedir a interdição dos 16 Centros de Referência em Saúde Mental de Belo Horizonte (Cersams). Segundo a presidente da entidade, Cibele Carvalho, todas as unidades passaram por fiscalização e foram encontradas irregularidades.
“Começamos a perceber que estava havendo uma dificuldade de atendimento na rede da saúde mental, principalmente do paciente psiquiátrico agudo em Belo Horizonte. Muitas vezes o paciente é encaminhado para o Cersam, eles entendem que ele tem um problema moderado e ele é mandado para uma unidade de saúde. Lá nem sempre quem atende é o psiquiatra, que teria a atenção direcionada para aquele quadro. Muitas vezes, é o clínico. Esse paciente, do ponto de vista psiquiátrico, não está sendo bem cuidado dentro da rede.”
A presidente conta que a fiscalização começou após o conselho receber denúncias de médicos que atendiam nos hospitais psiquiátricos Galba Veloso e Raul Soares.
“Alguns médicos que atendiam nesses hospitais denunciaram que, com o fechamento dos leitos do Galba Veloso para atendimento de pacientes clínicos de um modo geral, os pacientes psiquiátricos agudos foram encaminhados para o hospital Raul Soares. Com a promessa do aumento da oferta de vagas no hospital, tendo em vista o fechamento do Galba Veloso.”
Segundo ela, alguns médicos informaram também que estavam tendo dificuldades de internar os pacientes de Belo Horizonte, com quadro agudo, no hospital Raul Soares. “A ordem do diretor médico do hospital é que esses pacientes tinham que ser encaminhados para os Cersams.”
Cibele explica que são 16 unidades e apenas 2 funcionam 24 horas. Algumas só funcionam durante o dia. “Às vezes, existem alguns pacientes que precisam ter maiores cuidados, com transtornos agudos e que talvez precisem ficar mais tempo em observação, usando medicação. A prefeitura diz que nesses casos, em que os pacientes precisam ficar internados à noite também, existe um médico que é itinerante.”
Segundo a presidente, em uma fiscalização no hospital Raul Soares, foi constatado que a informação era verdadeira. "Vimos afixada na entrada do Raul Soares uma nota, com a proibição de internação de pacientes de Belo Horizonte no hospital. A ordem era encaminhar para os Cersams.”
Diante disso, ela afirma que o conselho entendeu que deveria fiscalizar não só os hospitais, mas toda a rede assistencial de psiquiatria. “Fizemos as fiscalizações tarde da noite ou de madrugada para saber como era o atendimento nos Cersams.”
O médico fiscal foi impedido de entrar em alguns deles. Nos poucos centros em que foi recebido, as enfermeiras disseram que contavam com a sorte do médico aparecer para fazer o atendimento dos pacientes que precisavam ficar internados à noite.
Irregularidades
Após a visita em todas as unidades, Cibele afirma que foram algumas irregularidades.
“Os Cersams não são inscritos no Conselho Regional de Medicina do estado, que é uma obrigação por lei. Tem que ter um responsável técnico médico porque ele que vai avaliar a qualidade assistencial, que se responsabiliza e decide como o paciente psiquiátrico agudo vai ser cuidado. A partir do momento que não há um responsável médico, que assuma essa responsabilidade e que coordene o atendimento daquele Cersam, a gente já corre o grave risco de uma má assistência à saúde daquele paciente psiquiátrico agudo.”
Outro problema apontado por ela é não haver escalas. “Se eu tenho um paciente agudo internado, isso é considerado urgência e emergência. E todos os estabelecimentos que fazem atendimento nessas condições têm que ter um médico de plantão para atendimento. As equipes são incompletas.”
Cibele explica que a rede de atendimento de saúde mental funciona com uma interligação entre os Cersams, de responsabilidade da prefeitura, e dos hospitais psiquiátricos, de responsabilidade do estado.
“Hoje a gente está conseguindo um pouco mais de diálogo com a Secretaria de Estado da Saúde, em relação à saúde mental. Mas estamos tendo uma dificuldade muito grande de discutir saúde mental com a prefeitura. Tanto o CRM quanto à Defensoria Pública estão ficando sem resposta às demandas de reuniões e conversas com a Secretaria Municipal de Saúde, para discutir a qualidade assistencial do paciente psiquiátrico agudo de Belo Horizonte.”
Interdição ética
Diante da falta de respostas do poder público, o CRM-MG decidiu pela interdição dos centros de saúde mental. Segundo a presidente, a interdição seria uma medida ética.
“Para o conselho fazer uma interdição ética é porque realmente o que se vê, em determinado estabelecimento, é tão grave que ele precisa ser fechado do ponto de vista assistencial médico. Eu retiro a assistência médica do local", afirmou Cibele
Ela conta que recebeu denúncia de um médico que fez a internação de um paciente e, imediatamente, recebeu um telefonema da direção questionando a internação e pressionando pela alta.
“O médico não tem sua autonomia profissional para cuidar, com todo o zelo, do seu paciente. Você começa a ficar submetido a ordens administrativas que não deveriam existir.”
Na prática, os médicos não poderiam mais atender nesses Cersams, já que precisam obedecer às ordens do CRM. “Se ele desobedecer, abre-se um procedimento administrativo em desfavor dele.”
Ela ressalta que o conselho sempre procurou a prefeitura para tentar resolver a questão.
“O tempo todo a gente tem tentado discutir essa questão da saúde mental e não temos espaço. Fizemos as fiscalizações de todos os Cersams, dos hospitais Raul Soares e Galba Veloso. Sempre encaminhamos isso para os gestores, diretores, secretários municipais e estaduais de saúde. Todas as fiscalizações foram encaminhadas para o secretário de saúde, falamos que eles precisavam adequar as irregularidades e demos um prazo de 30 dias e não tivemos qualquer retorno. Apesar de inúmeras tentativas, como não estamos tendo um retorno por parte da prefeitura, estamos iniciando a tramitação de uma interdição ética.”
Medida extrema
Bruno Moreira é vice-presidente da Associação Mineira de Psiquiatria e afirma que, apesar de extrema, a medida tomada pelo CRM-MG é necessária.
“O fechamento é uma tristeza para os pacientes e para os profissionais como um todo, mas visto tamanha desumanidade com que está sendo tratado o tema há décadas, sem investimentos, sem ampliações necessárias nos Cersams e a valorização dos profissionais. Não só profissionais da psiquiatria, os que mais sofrem são os técnicos em enfermagem, enfermeiros e profissionais de segurança que ficam expostos à violência.”
Ele acredita que a interdição tem o objetivo de tentar corrigir esses erros.
“A associação concorda com o CRM, no sentido que pacientes e familiares todas as semanas chegam com o mesmo relato: internados nos Cersams por 12 horas ou mais de 24 horas, sem médicos no período da noite, ficam apenas técnicos de enfermagem. Nos finais de semana e feriados também a mesma estrutura precária.”
Bruno conta que existem apenas dois médicos para atender mais de 12 unidades, com pacientes internados. “E não dão conta de atender todos esses pacientes, em casos de urgência. Quando o paciente está internado, é uma questão de urgência, não há como esperar o médico chegar para resolver.”
Ele relata também as principais queixas que recebe na associação.
“Falta de profissionais em virtude dos baixos salários, muito inferiores aos outros locais. Rotatividade constante desses profissionais e não preenche vagas. Desde técnico de enfermagem faltando no setor, enfermeiros à noite, finais de semana e falta de médicos psiquiatras também, além é claro de clínicos. Os Cersams são equipamentos da saúde, especializados, não têm interligação direta com a clínica médica. É um absurdo uma rede de Belo Horizonte não ter um setor de clínica médica junto com a psiquiatria. A entrada do paciente no setor especializado não deveria existir em nenhuma área, o paciente tem que ser visto como um todo e depois encaminhado para o setor de especialidade. Nós não temos nas UPAs serviço de psiquiatria, os hospitais não tem um serviço de psiquiatria adequado, não tem alas completas para internar.”
Outra falha, segundo ele, é com relação ao número de fugas.
“Os pacientes fogem, pois não tem o manejo de um paciente gravíssimo internado. Eles deixam pacientes que estão sem sanidade mental saírem pela rua, às vezes cometerem crime, aumenta o número de moradores de rua porque eles não conseguem se reabilitar socialmente. Aumenta o risco do paciente ser sedado excessivamente e de ser contido sem a presença de um médico ou enfermeiro, principalmente no período da noite.”
Para o médico, o atendimento de pacientes na rede de saúde mental está precarizado há algum tempo e a pandemia apenas agravou a situação.
“A luta antimanicomial perdeu o parâmetro de humanidade. Ao invés de começar a melhorar a humanização da psiquiatria, já tem 10 anos que está piorando. A saúde mental precisa de mais investimento, com hospitais psiquiátricos, Cersams, Caps e ambulatórios de qualidade. Inúmeras vezes a associação e grupos especializados em saúde mental tentaram contato com a prefeitura, com o secretário de saúde municipal e não recebemos resposta.”
Outro lado
Em nota, a Prefeitura de Belo Horizonte informa que os Centros de Referência em Saúde Mental continuarão funcionando normalmente. O município não reconhece nenhuma das irregularidades apontadas pelo CRM.
*Estagiária sob supervisão do subeditor João Renato Faria