No segundo semestre de 2019, a professora aposentada Sandra Helena Lopes se viu à frente de uma luta muito complicada: contra a depressão. Foram dias sem comer e sem dormir direito.
A moradora de
Capelinha
, cidade no alto do Vale do Jequitinhonha, tinha na leitura a única companhia, e não é exagero quando falamos que ela "devorava" livros.
Lia quase 30 por semana. Um dia, pesquisando na internet, descobriu que havia um projeto em Araçatuba, cidade do interior de São Paulo, que trocava cartelas de remédios vazias por cadeiras de rodas .
Lia quase 30 por semana. Um dia, pesquisando na internet, descobriu que havia um projeto em Araçatuba, cidade do interior de São Paulo, que trocava cartelas de remédios vazias por cadeiras de rodas .
"Aí eu tive uma ideia. Por que não fazer a mesma coisa aqui em Capelinha? Na manhã seguinte, liguei para o pessoal de Araçatuba para buscar todas as informações", conta Sandra ao
Estado de Minas
.
Começava aí um projeto que repercute até hoje na cidade de 34 mil habitantes. Para preencher o vazio que a incomodava, Sandra decidiu enchê-lo de
solidariedade
– não que isso fosse exatamente uma novidade na vida dela, mas ganhava um novo sentido.
Ela decidiu sair às ruas para pedir aos vizinhos cartelas usadas.
Ela decidiu sair às ruas para pedir aos vizinhos cartelas usadas.
"Não foi fácil no começo. As pessoas não estavam aceitando muito bem isso, diziam que não tinham tempo para separar as cartelas", lembra.
Aos poucos, a ideia foi ganhando forma, mas o trabalho ainda era "de formiguinha". A professora procurou urnas que poderiam servir para arrecadar os materiais de forma efetiva. Conseguiu apoio do comércio local para bancar a fabricação delas.
A professora conta que são necessários
700 quilos
de cartelas para que elas sejam trocadas por uma cadeira.
"Eu pensei comigo mesma que '700 quilos era pouca coisa'. Mas, Deus do ceu, é coisa demais! É muito volume para pouco peso", brinca.
Tanto que apenas hoje, quase dois anos depois, ela está próxima de juntar os 700kg para trocar pela primeira cadeira. O peso real será computado nos próximos dias. Além das cartelas, Sandra também passou a juntar lacres de latas de refrigerante e cerveja.
São necessárias 140 garrafas PET de dois litros para que a "troca" pela cadeira aconteça. Hoje, ela tem 58.
São necessárias 140 garrafas PET de dois litros para que a "troca" pela cadeira aconteça. Hoje, ela tem 58.
Após juntar todo o material, os lacres e cartelas serão vendido, e o dinheiro usado para a compra da cadeira. A ideia inicial seria mandar tudo para Araçatuba, mas, por conta do alto valor do frete, Sandra ainda busca uma opção mais viável.
A chance mais provável é que uma cooperativa de Belo Horizonte compre os recicláveis, apenas quando houver um peso que valha a pena a viagem – já que são 433km de estrada de BH a Capelinha.
A chance mais provável é que uma cooperativa de Belo Horizonte compre os recicláveis, apenas quando houver um peso que valha a pena a viagem – já que são 433km de estrada de BH a Capelinha.
Para quem vão as cadeiras?
A veia de solidariedade de Sandra não fica apenas nesse projeto. Integrante da pastoral da saúde de Capelinha, frequentemente visita pessoas que precisavam das cadeiras de rodas para se locomover.
Como o hospital e o asilo da cidade já tinham os equipamentos apenas para uso interno em quantidade suficiente, ela decidiu que vai "emprestar" as cadeiras para pessoas que não têm condições financeiras de comprar os equipamentos, que podem custar até R$ 1 mil.
O empréstimo é algo comum quando se fala de cadeira de rodas, já que o uso geralmente tem prazo determinado.
O empréstimo é algo comum quando se fala de cadeira de rodas, já que o uso geralmente tem prazo determinado.
"Considero que essa é a forma mais inteligente, já que podem acontecer situações de a pessoa não precisar mais da cadeira e jogá-la fora, ou então a própria morte. Então, acredito que fazendo o 'empréstimo', absolutamente gratuito, conseguimos ampliar o acesso para outras pessoas", justifica.
Só que algo a surpreendeu: a campanha se espalhou nas cidades vizinhas, como Itamarandiba, e Sandra recebeu a doação de três cadeiras de rodas novas.
Há aproximadamente 20 dias, também recebeu uma cadeira de banho. Elas já estão sendo emprestadas, mas o objetivo maior ainda é trocar todos os recicláveis.
Há aproximadamente 20 dias, também recebeu uma cadeira de banho. Elas já estão sendo emprestadas, mas o objetivo maior ainda é trocar todos os recicláveis.
Sandra fala com um orgulho imenso sobre o projeto que desenvolveu. E, repetidas vezes, fala em empatia, amor ao próximo e desprendimento. Nunca tirou um centavo sequer para si, e nem pretende.
"Deus tem me pago bastante. Não sei te contar como, nem quando, nem de que jeito, mas é maravilhoso ajudar o próximo. Não tenho mais depressão, estou ótima. Pena que a pandemia veio e me trancou em casa, mas não vejo a hora de poder voltar a bater pernas para buscar mais material", finaliza.