O inverno rigoroso escancara as desigualdades na capital mineira. Dentro dos apartamentos de classe média ou nas casas mais abastadas, o frio é degustado sob edredons macios, com bons vinhos ou bebidas quentes. Enquanto isso, a população de rua de BH, estimada em 8,8 mil pessoas pelo Projeto Polos de Cidadania da UFMG, se encolhe sob lonas e cobertas finas para tentar escapar dos ventos cortantes.
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Consultada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Assistência Social informou que passou a realizar um monitoramento especial da ocupação das vagas dos abrigos do município e, se necessário, realizará ampliação dentro das estruturas já existentes. Caso a ocupação chegue à totalidade, o Executivo diz que pretende recorrer a hospedagens parceiras.
Por ora, há um protocolo especial ativado nos serviços de saúde. Agentes públicos estão orientados a monitorar possíveis casos de hipotermia e encaminhá-los imediatamente às Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e pronto-socorros da capital.
Os abrigos existentes na cidade, contudo, não parecem responder às necessidades da população de rua. As unidades disponibilizam em torno de 600 vagas. Ou seja: 6% do necessário para acolher os sem-teto.
Cachaça
Instalado há nove invernos na grama da Praça Raul Soares, Centro da cidade, Wander Alves, de 46 anos, não cogita procurar os albergues nos próximos dias. “O abrigo é pior do que a rua. É muita confusão, muito perigoso. A pessoa é roubada lá dentro, sofre violência na calada da noite. Fora os percevejos. Além disso, com um frio desses, os monitores nos acordam 5h30 e nos botam para fora. É uma humilhação”, queixa-se.
“Por outro lado, já estou atrás de um lugar mais quente. De repente, uma ocupação. De quarta para quinta, nem a cachaça, que é o Rivotril do pobre, me fez dormir, de tanto frio. A madrugada foi gelada demais, ninguém pregou o olho. Pode ter certeza de que todas essas pessoas que você vê aqui na praça passaram a noite em claro”, complementa.
Gilmar Barbosa, que também vive na praça, confirma o que diz o amigo. “E o pior de tudo é que nem uma fogueirinha aqui a gente pode fazer. Os fiscais vêm aqui e tomam até a lenha que a gente guarda para fazer um fogo. Nem um café quente a gente tem o direito a fazer”, diz o homem que, as 7h de ontem (29/7), preparava uma caipirinha sobre uma mesa improvisada com tijolos.
“Vocês não reparem, viu? Eu não escondo que bebo não. Bebo bastante. Encarar a nossa realidade de cara limpa é impossível, as pessoas julgam porque não estão na nossa pele. Mas pelo menos não é droga. Graças a Deus, nem eu, nem meus amigos aqui mexemos com isso. Vício em droga é o grande mal do morador de rua. Por causa dela é que ele passa a roubar e agredir os outros. A cachaça ao menos é R$ 2,50 uma garrafinha que dá para cinco, seis pessoas. Eu não preciso roubar pra comprar isso”, desabafa.
Saúde afetada
À beira do Rio Arrudas, na Avenida dos Andradas, Região Centro-Oeste de Belo Horizonte, a cachaça também é a válvula de escape de Fabiana Ferreira e Roberto Costa, ambos de 43 anos. “A gente não vive, a gente vegeta. Não sabemos que dia é hoje, nem que mês, que ano. E assim nós vamos vivendo”, diz a mulher. Além de desconforto, o inverno trouxe doenças respiratórias à dupla.
“Tossia muito, tive febre. Achei que era coronavírus, mas não era. É doença que a gente pega por ficar em contato com esse rio (Arrudas), que é muito sujo. Debaixo da nossa casinha tem um tampão por onde a água desce. O vapor dessa água vem direto no nariz da gente, acabamos adoecendo. No inverno, tudo piora, doença parece que adora frio”, relata Fabiana.
Roberto, que há pouco tempo se curou de uma tuberculose, sabe dos riscos que corre ao se instalar no casebre de lona erguido próximo ao curso d’água, sobre terra e muito lixo. No local, contudo, ele diz que evita outros perigos.
“Ficar perto do rio faz a gente sentir mais frio, tem muito mais sujeira, mas a calçada é mais perigosa. No passeio, a gente corre mais risco de ser queimado, tomar pedrada. Dos males, viver nesse chiqueirinho aqui é o menor”, pondera Costa, que também descarta a possibilidade de ir para albergues durante o inverno. “Já estive neles, sei como é. Em albergue, a gente não prega o olho por causa dos percevejos e, pior, por medo de ser roubado ou atacado por alguém. O que a gente queria mesmo é um cômodo com banheiro. Uma ajuda para pagar um aluguel. É isso que resolveria o nosso problema aqui”, cobra.
“Ficar perto do rio faz a gente sentir mais frio, tem muito mais sujeira, mas a calçada é mais perigosa. No passeio, a gente corre mais risco de ser queimado, tomar pedrada. Dos males, viver nesse chiqueirinho aqui é o menor”, pondera Costa, que também descarta a possibilidade de ir para albergues durante o inverno. “Já estive neles, sei como é. Em albergue, a gente não prega o olho por causa dos percevejos e, pior, por medo de ser roubado ou atacado por alguém. O que a gente queria mesmo é um cômodo com banheiro. Uma ajuda para pagar um aluguel. É isso que resolveria o nosso problema aqui”, cobra.
'Misturados ao lixo'
Na Praça da Estação, Cláudio Santana, de 48, conta que passou a madrugada gelada com as cobertas úmidas. “Serenou, molhou tudo, foi horrível. Tem gente aqui com problema de bronquite, asma. O perrengue aqui é muito bravo, ninguém sabe o que é o inverno na rua, só vivendo mesmo”, diz o pedreiro.
Constrangido, ele diz que não toma banho há cerca de duas semanas, pois a bica usada para a higienização é gelada. "Nem direito a banheiro nós temos. Fazemos nossas necessidades em um beco e tomamos banho gelado. Nós somos, lixo. Somos misturados ao lixo", desabafa.
Interior lança ações de socorro nas ruas
Com a chegada das frentes frias e previsões meteorológicas para os próximos dias de temperaturas ainda mais baixas, prefeituras do Sul de Minas anunciaram que vão aumentar a busca ativa por pessoas em situação de rua para serem levadas para os abrigos municipais. Em Passos, a administração municipal iniciou um plano de contingência para minimizar os impactos do frio sobre essa população. Como parte das ações estão abordagens sociais mais intensas, encaminhando as pessoas para acolhimento, e ainda uma campanha de arrecadação de agasalhos. Na Zona da Mata, Juiz de Fora – que tem a quarta maior população do estado, o frio rigoroso estimulou a administração municipal a criar, em 29 de junho, o Comitê Permanente de Gestão de Situações de Baixas temperaturas. Como parte das diligências, a prefeitura lançou a “Campanha JF Solidária no Frio” com o objetivo de arrecadar cobertores e colchões novos para a população em situação de rua e famílias em vulnerabilidade social no município.