Quais as consequências da pandemia e do fechamento prolongado das escolas país afora? Na saúde, os resultados visíveis são certamente os milhões de contaminados e mortos, mas por trás dessas cifras superlativas, a crise sanitária disfarça outro lado nefasto, de números tidos como assustadores, porém ainda desconhecidos. Ele esconde velhos problemas que historicamente calam crianças e adolescentes vítimas de violência física e sexual, desafiam diariamente portadores de autismo e outras condições limitantes na luta por seus direitos e mascaram a maior das chagas da educação brasileira: a evasão escolar.
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Ele tinha apenas 6 anos e como toda criança nessa idade gostava absurdamente de brincar. Morava com a avó, responsável legal depois da morte precoce da mãe, quando o menino ainda tinha 1 ano e meio de idade. Era feliz, mas lhe faltava o senso da família e, na falta do abraço materno, não entendia por que não podia encontrar conforto no aconchego do pai, morador de Caratinga, cidade vizinha à sua Santa Bárbara do Leste, no Vale do Rio Doce.
A exemplo das relações que via na TV ou nas ruas, queria também estar ao lado dele. Em um dos dias em que conseguiu, o pequeno Elias Emanuel Martins Leite sorriu pela última vez. O pai agrediu o garoto, que não resistiu. O motivo: ter errado o dever de casa.
Elias entrou para a lamentável estatística de agressões, maus-tratos e mortes subnotificada nesses últimos meses. Assim como o garoto do interior de Minas, um incontável número de crianças e adolescentes são vítimas diariamente de crueldades física e sexual, mas, agora, além de sufocados pela violência, estão imobilizadas também pelos efeitos colaterais do novo coronavírus.
A pandemia não cessou o aparecimento de casos na esfera oficial nem o trabalho da polícia, Justiça ou conselhos tutelares. Mas autoridades e especialistas são unânimes em dizer que o atual banco de dados, subnotificado, está longe da realidade.
Com o esvaziamento das salas de aulas por tanto tempo, fechou-se também uma das principais portas de denúncia desse tipo de crime. Uma realidade que preocupa a Vara Especializada em Crimes contra a Criança e o Adolescente, do Fórum Lafayette, em BH. Lá existem 3,5 mil processos, sendo 90% crimes de estupro. A juíza Marixa Fabiane Rodrigues, uma das titulares da vara, afirma que, em Minas e em todo o Brasil, a crise sanitária coincide com uma redução drástica no número de denúncias de crimes contra crianças e adolescentes.
Foram 8.888, em 2018; 8.564, em 2019; e, no ano passado, 2.053. “É a síndrome do espelho. Você olha e vê o dado invertido. Ele não confere com a realidade. Na maioria dos crimes o agressor está dentro de casa. Familiares que deveriam proporcionar a proteção integral e acabam violentando a criança naquele ambiente”, relata a magistrada. “Com a pandemia, mães e crianças foram inibidas de falar, pois ficaram ‘encarceradas’ em casa. E o professor ou outro profissional que no convívio diário estabelece relacionamento afetivo e de proximidade não pode mais assumir essa tarefa”, completa.
No Brasil, relatório recente da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra que as escolas ficaram fechadas por mais de 40 semanas, uma das maiores médias do mundo. Em grande parte de Minas Gerais e particularmente em Belo Horizonte, alunos do ensino infantil foram autorizados a retomar o caminho das salas de aula no início de maio e os do ensino fundamental, desde o último dia 26 de junho – do 1º ao 9º ano de escolas particulares e até o 3º ano de estabelecimentos municipais.
Preocupação por trás dos portões fechados
Na escola, educadores e outros funcionários costumam perceber indícios quando algo vai mal na casa de algum estudante: um roxo no corpo, a blusa de manga comprida em pleno verão, a mudança de comportamento na forma de introspecção ou agressividade... Mas o isolamento social necessário na pandemia, ironicamente, aproximou como nunca agressores e vítimas, ao mesmo tempo que afastou aqueles que muitas vezes representavam a salvação. “Essa é uma das nossas principais preocupações, pois são situações que ocorriam antes da pandemia. O silêncio das crianças e dos adolescentes não significa que esses casos não estejam acontecendo. Numa situação normal, eles já não denunciam. Descobríamos muitos casos a partir das observações de professores e monitores”, afirma diretor de uma escola pública da Região de Venda Nova, em Belo Horizonte, que prefere o anonimato.
Ele conta um fato marcante de uma sexta-feira de agosto de 2016, para revelar a importância da escola na vida dessas crianças. Na ocasião, a coordenadora pediu autorização a uma família para dar banho em um menino de 8 anos que estava indo à aula sem condições mínimas de higiene. “Descobrimos marcas de espancamento. Na mesma hora, chegou uma conselheira tutelar para levar também a irmã, de 6 anos. No caminho, a garotinha começou a narrar como o padrasto abusava dela e o menino a interrompeu, dizendo que a mãe lhes havia dito se tratar de segredo”, relata. “Se aqui eles não têm coragem de contar, imagine dentro de casa, presos? Sofremos por algo que não sabemos como está e em que não temos como intervir neste momento”, desabafa o diretor.