Jornal Estado de Minas

Pandemia é mais cruel com alunos com deficiência, alertam especialistas


A inclusão de crianças com algum tipo de deficiência no ambiente escolar convencional, tão controversa quanto questionada em relação à forma como ocorre, ganhou um novo desafio na pandemia. Minoria nas salas de aula clássicas, esses alunos, que têm na integração social o eixo central para seu desenvolvimento cognitivo e físico, se viram silenciados atrás de uma tela de computador ou – talvez pior – da ausência total de aulas on-line. Famílias veem seus pequenos e adolescentes com autismo, síndrome de down e outros transtornos esquecidos ou relegados em meio ao fogo cruzado da adaptação ao ensino remoto.





Para quem precisa de situações concretas, mesmo as atividades a distância propostas por estabelecimentos de ensino especializados perdem sentido. Na terceira reportagem da série “Os invisíveis da pandemia”, sobre efeitos do fechamento prolongado dos estabelecimentos de ensino, o Estado de Minas mostra que, se para grande parte da população a COVID-19 é a maior inimiga, para quem tem alguma deficiência ela ganha o reforço negativo da falta de equidade e dignidade escancarada nesses últimos 17 meses.  

“A perda de intervenção gera a desconstrução de meses e anos de trabalho”, afirma o neuropediatra Rodrigo Carneiro, presidente da Sociedade Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil e Profissões Afins (Abenepi). Ele explica que a vulnerabilidade das crianças com quadro de atraso no desenvolvimento é extremamente desproporcional à daquelas sem transtorno: as condições de adaptação delas são mais delicadas e elas respondem à quebra da rotina com desorganização muito maior que as demais.  

Além das escolas que reabrem progressivamente, pesa ainda a dependência de uma série de profissionais e intervenções interdisciplinares. “Em uma pandemia, as pessoas evitam buscar sistemas de saúde, pois evitam aglomeração. E a intervenção em termos do neurodesenvolvimento tem que ter volume, frequência e continuidade. Em 30 dias de férias, já se observa perda na sequência do desenvolvimento. Em mais de um ano de afastamento, tudo é amplificado. Temos que mitigar os efeitos, fazendo com que esses estudantes sejam os primeiros a retornar (às escolas)”, afirma o médico.

“Esses alunos dependem da mãe, pai ou outra pessoa para que consigam se manter conectados a alguma coisa que os lembra de aprender”, afirma a psicopedagoga e mestre em educação Jane Patrícia Haddad. “As escolas agora estão começando a procurar, mandar atividades, mas nada que seja processo de aprendizagem. A inclusão já não ocorria dentro da escola, menos ainda fora”, diz.  

A aprendizagem foi interrompida literalmente e muitas crianças não têm qualquer acesso às telas. Quem tem condições contratou nesse período professora particular, leva para terapias e outros acompanhamentos. Quem não tem, sofre dentro de casa. “Seria ótima oportunidade de pôr esses meninos em contato com a natureza e a terra, mas isso precisa de mediação, políticas públicas, assistente social, alguém que pudesse orientar dentro dos protocolos sanitários. Mas quem deveria não está preocupado com isso. As crianças estão à deriva na família, que precisa trabalhar e se depara com o lugar de apoio no contraturno fechado”, acrescenta.  

Jane é categórica ao afirmar que não houve adaptação de aula on-line para esse público. “Tem criança que não consegue permanecer na frente da tela, não porque não dá conta dos estímulos, mas porque não faz sentido. É diferente de estar na tela jogando algo de que eles gostam. Perdeu-se a alteridade: o olhar em relação ao outro. E a gente se constitui humano é na relação com o outro. Se ele não está ali e eu nem me reconheço, como vou me constituir?”


VÁRIOS PAPÉIS

Antes das aulas on-line, a garotinha Melissa, de 9 anos, uma loirinha esperta e cativante, não via tela nem nunca tinha jogado um jogo no computador. “Para ela, as aulas on-line eram um programa infantil com pessoas que, de vez em quando, falavam o nome dela”, conta a mãe, a psicóloga Caroline Pereira Marques, de 47. Toda a parte pedagógica estava sendo feita antes ou depois da aula virtual. A mãe se tornou também professora e monitora. Depois da reabertura das escolas em modelo híbrido, é Caroline também quem se encarrega da construção pedagógica, se dividindo entre provas do dia, simulados, deveres de casa e as aulas remotas. 

Com uma demanda além do normal, a psicóloga parou de trabalhar e foi morar na casa dos pais, hospitalizados por COVID-19, para centralizar tantas tarefas. “Sempre fiz superestimulação, desde os 10 dias de vida, sempre a levei para terapias. A pedagoga parou de trabalhar, tentei uma moça para fazer o dever com ela e não deu certo. Sei reproduzir muitas coisas, mas e o caso do pai e mãe que não são da área nem têm condição emocional para acompanhar ou precisam trabalhar para pôr comida em casa? Isso é recuperável? Não.” 

DESABAFO

Caroline, mestre pela Universidade de Sussex (Inglaterra), especializada em avaliação neuropsicológica e síndrome de Down, relata que a filha não consegue se concentrar na frente da tela. Melissa se recusa a fazer letra cursiva. A complexidade do raciocínio também é um freio e limita a interpretação de questões. “Pago escola particular cara, cujas monitoras continuaram lá, e que poderia ter disponibilizado uma para falar com minha filha uma vez por semana, pelo menos. Eu não podia fingir que nada acontecia, tive que pegar e fazer”, relata. Para piorar a cadeia de desenvolvimento, o balé, sonho da garotinha, parou uma semana depois de começar. A natação foi cancelada e retomada diversas vezes, o judô foi interrompido.  

“Uma criança de 6 anos não perdeu 15 meses, foram quatro ou cinco anos, pois ela não vai começar hoje do ponto em que estava. Tem o prejuízo de todo o caminho feito até então, dos meses de paralisação e do tempo de reabilitação”, explica. “Sem contar os meninos com discalculia, dislexia e autismo, que poderiam ser estimulados a tempo e não serão, porque ficaram sem diagnóstico.” 


Palavra de especialista

Rodrigo Carneiro, neuropediatra e presidente da sociedade Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil e Profissões Afins (Abenepi) 

Emergência médica

“Há uma preocupação com todas as crianças e adolescentes, em especial com aqueles com transtorno de desenvolvimento ou alteração comportamental. As pessoas que convivem com eles devem ficar atentas para ter um mínimo possível de quebra de rotina e de atendimento das atividades terapêuticas. Não é só o tempo perdido, mas uma situação de estresse que precisa de atenção, porque essas crianças respondem a essa quebra de rotina e falta de intervenção de forma desorganizada: comportamento e esteriotipias pioram muito. Nem a literatura médica recente é capaz de indicar os efeitos de um isolamento tão prolongado. O exemplo mais próximo é o de crianças que ficaram três meses sem escola, na ocasião da passagem do furacão Katrina, em 2005, nos Estados Unidos: levou um ano para  adquirirem  o mesmo nível pedagógico de antes. Considero emergência médica o cérebro das crianças em desenvolvimento confinadas. Estamos expondo-as a um risco que pode ser irreparável.” 


Desafio para pais e para profissionais

Professora de uma escola inclusiva, Ana Carolina Marques de Campos Melo, de 42 anos, conta que passou os últimos tempos dividida entre a tentativa de implantar alternativas ao fechamento do estabelecimento e a agonia de sentir o desespero dos pais sem poder fazer mais. Recentemente, ela pôde reencontrar parte de seus alunos, que agora frequentam as aulas em modelo híbrido.  

As aulas on-line foram implementadas no início da pandemia, mais para não perder contato que para a continuidade pedagógica. “Os alunos são muito de contato, precisam de uma referência e os autistas, de rotina. Houve muita empolgação no início, mas, com o passar do tempo, as famílias também se cansaram, pois começaram a ver as consequências desses meninos em casa”, relata. Houve casos em que alunos sem histórico passaram a ser agressivos em casa, afirma. “Uma aluna minha parou no hospital, porque teve um surto e quebrou quase a casa inteira. Os pais mandavam mensagens dizendo que não sabiam ensinar nem estimular como a gente”, conta. 

Pais se viram diante de outro drama, mais real que o próprio vírus que os aterrorizava: o trabalho de anos estava comprometido, e seus filhos perdendo conquistas de uma vida. “Teve garoto que vestia o uniforme e na hora habitual esperava o motorista para ir à aula. Em dado momento, tivemos que abrir a escola e mostrar a eles que não havia ninguém”, lembra Ana Carolina. A professora diz que agora não há  opção que não tentar recuperar o tempo perdido: “Com amor e nossa experiência conseguiremos ganhar esses meninos de volta”. 





Na Associação de Apoio à Deficiência Nossa Senhora das Graças (Agraça), no Bairro Carlos Prates, Região Noroeste de Belo Horizonte, as famílias atendidas ainda aguardam ansiosas o retorno às escolas inclusivas ou especializadas, mesmo que na modalidade híbrida. Afinal, são muitas variáveis dentro de um contexto ameaçador de crise econômica, a COVID-19 propriamente dita e níveis elevados de estresse. “Tudo isso se reflete na criança, principalmente aquelas com o sensorial mais aguçado, que somatizam o que ocorre no ambiente”, ressalta a vice-presidente da Agraça, Maristela Barros Mayer Ferreira.

MEDICAMENTOS

Privados da terapêutica durante muito tempo e sem o estímulo da socialização, para muitas famílias não restou outra opção que recorrer à medicação na esperança de administrar os problemas. “Uma criança de 6 anos passou já 30% da vida dela isolada. Para qualquer criança isso é demais, mas se agrava em alguém com o espectro do autismo”, diz Maristela. 

Embora a filha, de 36 anos, que tem grau severo de autismo, não frequente mais a escola, a rotina na casa de Maristela também foi alterada.  “Minha filha não aceita usar máscara, por isso, não pode ir ao parque. Tive que recorrer ao Conselho da Pessoa com Deficiência e à Ouvidoria da prefeitura, porque se recusaram a vaciná-la, entendendo que ela não fazia parte do grupo prioritário”, conta. A associação retomou há três meses as oficinas de artesanato, música, atividade física e cidadania, um alento para as duas.

“As crianças que hoje têm acesso à escola inclusiva, contrariamente à geração dos adultos autistas, continuam sendo negligenciadas e estão em desvantagem social. Como mãe e diretora de uma entidade, afirmo que as consequências são uma incógnita. A saúde mental de todos da família está afetada, e o prejuízo será coletivo.” 

A psicanalista Maria de Lourdes Elias Pinheiro lembra que a relação estabelecida com essas crianças não se dá por meio da linguagem. “São outros recursos que passam pelos canais da comunicação meramente psíquica”, diz a voluntária do Espaço Segunda Letra, no Bairro Serra, Região Centro-Sul de BH, instituição dedicada ao atendimento a autistas. “Há casos diversos. De meninos que até se desenvolveram na relação com os pais, outros que pioraram. Tem um menino que não dá conta de ouvir ou ficar parado, só roda. Ele já estava dando conta de ficar em sala, mas não sei como voltará à escola”, conta.






Outra do ministro

Mais uma polêmica envolve declaração do ministro da Educação, Milton Ribeiro (foto), com repercussão em redes sociais. Em entrevista ao programa “Sem censura”, da TV Brasil – a mesma na qual afirmou que universidades deveriam ser para poucos, em defesa de cursos técnicos –, o responsável pelo ensino no país disse que crianças com deficiência “atrapalham” as demais quando colocadas na mesma sala de aula. “O que é inclusivismo? A criança com deficiência é colocada dentro de uma sala de alunos sem deficiência. Ela não aprendia, ela ‘atrapalhava’ – entre aspas, essa palavra eu falo com muito cuidado – ela atrapalhava o aprendizado dos outros porque a professora não tinha equipe, não tinha conhecimento para dar a ela atenção especial”, declarou.