Uma pesquisa feita em Belo Horizonte revela o padrão da violência sexual contra crianças e adolescentes menores de 14 anos. Na maioria dos casos (80%), as vítimas são mulheres, negras e os autores são homens conhecidos, que frequentemente têm acesso ao ambiente doméstico das vítimas.
O levantamento foi feito com base na análise de 308 casos registrados oficialmente, em 2015, na base de dados de segurança da polícia, o Registro de Eventos de Defesa Social. E desenvolvido pela então chefe da Divisão de Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente da Polícia Civil de Minas Gerais, delegada Elenice Cristine Batista Ferreira, em sua dissertação de mestrado pela PUC Minas.
Além das vítimas menores de 14 anos, a pesquisa analisou os dados do grupo de pessoas com algum tipo de deficiência mental ou incapacidade, que por alguma razão, eram incapazes de oferecer resistência no momento do ato. Neste caso, as vítimas do gênero feminino também são maioria, com 75% do total de casos registrados.
Comparando por faixa-etária, em algumas idades há equivalência de registros para vítimas tanto femininas, quanto masculinas. De 0 a 2 anos, 4,6% dos casos registrados são de meninas contra 4,8% de meninos. Enquanto dos 3 aos 5 anos de idade, as meninas figuram em 16,6% dos registros e os meninos em 15,9%.
Já na faixa etária de 9 a 11 anos as meninas contabilizam 22% dos casos em comparação aos 19% de meninos. Por fim, acima dos 15 anos, no grupo formado por pessoas com alguma incapacidade de reação, as vítimas do gênero feminino somam 7,3% dos casos e o masculino 7,9%.
Apenas na faixa etária de 6 a 8 anos o número de vítimas do gênero masculino supera o número de vítimas do gênero feminino, representando 39,7% dos casos contra 17,8% do gênero feminino.
O contrário é observado entre as vítimas de 12 a 14 anos, faixa-etária que as meninas são 31,7% das vítimas, mais que o dobro dos registros do gênero masculino na mesma idade, que são 12,7%.
Segundo a delegada, essa diferença demonstra que existe uma subnotificação de casos entre os meninos de 12 a 14 anos, já que em todas as faixas etárias anteriores os números eram parecidos. "Essa diferença de faixa etária considerando os 12 a 14 anos, demonstra que existe uma maior subnotificação dos casos dos meninos, por questões culturais ligadas à masculinidade, eles têm maior dificuldade para relatar eventuais abusos sofridos à medida que atingem a adolescência", explica a delegada Elenice Cristine .
Casos de estupro por região de BH
A análise também foi feita com separação geográfica da cidade, porém as notificações não tiveram um destaque de incidência em um local específico. Segundo a delegada, a separação foi feita com base na Área Integrada de Segurança Pública (AISP), que divide a cidade em seis grupos. Veja as regiões e a quantidade de casos.
- Venda Nova- 26,3%
- Região Leste- 21,1%
- Região Noroeste- 17,2%
- Barreiro- 16,6%
- Região Sul- 15,9%
- Centro- 2,6%
A maior discrepância da análise geográfica dos casos é a quantidade que foi registrada no Centro de Belo Horizonte. "Percebemos que essa circunstância do Centro ter número menor de registros pode estar relacionada à grande concentração de população flutuante (que passam no local) e número menor de residências", disse Elenice.
"Porque a maioria dos estupros de vulneráveis acontece dentro das casas. A pesquisa deixa claro que o estuprador não é aquele que passa num carro preto e pega a criança. O estupro acontece dentro da residência e com pessoas conhecidas", afirmou.
Perfil dos autores de estupro
Em 91,2% dos casos registrados a vítima conhece o autor. Esta característica tem referência com o tipo de relacionamento encontrado entre ambos, indicando que pessoas conhecidas predominam neste tipo de crime e que a autoria desconhecida/ignorada é pequena, representando apenas 8,8% dos casos.
Mais de 65% dos autores têm idade acima dos 18 anos; 17,7% são menores de 18 anos e em 16,5% dos casos, não foram encontradas informações referentes à idade dos suspeitos.
Entre os autores acima de 18 anos, a maioria tem entre 31 a 40 anos, sendo 18% dos autores identificados. Em seguida, os de 21 a 30 anos e 41 a 50 anos, contabilizando 14,1 %, cada uma. A faixa etária de 51 a 60 anos registrou 7,6% do total e na faixa etária acima de 61 anos, corresponde a 4,3%.
Nos casos que as vítimas tinham algum tipo de relação com os autores, 26% eram pai/mãe/padrasto, sendo que apenas três registros as mães eram suspeitas, nos outros 82 casos os suspeitos eram pais ou padrastos. Em seguida a categoria tio/cunhado (8%), irmão/primo (7,3%), avó/avô (4,3%) e por último, namorados (3,7%).
Ações para diminuir os casos
Segundo a autora do estudo, a expectativa é de "que as análises apresentadas na pesquisa possam servir como contribuição para o desenvolvimento de políticas públicas no Sistema de Justiça Criminal em Minas Gerais".
Atualmente, Elenice integra a equipe de Assessoria de Planejamento Institucional da Polícia Civil de Minas Gerais e com base na pesquisa e nos acompanhamentos diários da corporação, uma política interna foi criada para oferecer atendimento mais acolhedor às crianças e adolescentes vítimas de estupro.
"Com base nessa pesquisa e nos acompanhamentos sistemáticos, a polícia tenta qualificar o trabalho com crianças e adolescentes. Neste momento, está investindo em um melhor atendimento, por exemplo, com a sala de depoimento especializada, para que as vítimas se sintam mais à vontade em buscar a polícia e contar a situação".
"Atualmente já temos 13 unidades em fase de implantação, em BH já foi efetivamente implantada e fica na Delegacia Especializada de Proteção a Criança e ao Adolescente, no Bairro Prado. A intenção é inaugurar salas do tipo em todo estado", explica Elenice.
As salas de depoimento especializadas são construídas em um ambiente adaptado para receber crianças e adolescentes. São utilizados brinquedos, recursos pedagógicos adequados, mesinhas e cadeiras menores, além das vítimas serem abordadas por profissionais capacitados à escuta. Toda a entrevista tem gravação de áudio e vídeo.
Procurando ajuda
Em todos os casos de abuso é extremamente importante que a denúncia seja realizada de maneira oficial, mesmo que de forma anônima. "Como normalmente estamos lidando com crianças e adolescentes que, na maioria das vezes, são vitimadas por pessoas do seu convívio familiar, pedimos que seus representantes legais fiquem atentos aos sinais que elas apresentam, procurem os órgãos responsáveis e não deixem de fazer o registro", disse a delegada.
"Como acontece num ambiente familiar, as pessoas temem denunciar, mas é importante fazer a denúncia formal. Pois é com base nos registros dos órgãos responsáveis por esse tipo de atuação que as políticas públicas podem ser movimentadas com o que for necessário para melhorar a situação".
"É muito importante estimular as denúncias. Ainda que sejam anônimas, precisam ser feitas. Mesmo que não pelos representantes legais, considerando que os autores são conhecidos, alguém que conviva com a criança pode fazê-la", afirma Elenice.
Em Belo Horizonte, as vítimas podem procurar a Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA), que fica na Avenida Nossa Senhora de Fátima, 2175 - Carlos Prates. Ou ligar para a delegacia no telefone 3228-9000.
Para denúncias anônimas, em todo estado, as ligações podem ser feitas para os números 100 ou 181.
Também podem ser registradas ocorrências nos números 197 (Polícia Civil), 190 (Polícia Militar).
*Estagiária sob supervisão
O termo cultura do estupro tem sido usado desde os anos 1970 nos Estados Unidos, mas ganhou destaque no Brasil em 2016, após a repercussão de um estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro. Relativizar, silenciar ou culpar a vítima são comportamentos típicos da cultura do estupro. Entenda.
O que diz a lei sobre estupro no Brasil?
De acordo com o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 213, na redação dada pela Lei 2.015, de 2009, estupro é ''constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.''
No artigo 215 consta a violação sexual mediante fraude. Isso significa ''ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima''
O que é assédio sexual?
O artigo 216-A do Código Penal Brasileiro diz o que é o assédio sexual: ''Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.''
O que é estupro contra vulnerável?
O crime de estupro contra vulnerável está previsto no artigo 217-A. O texto veda a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos, sob pena de reclusão de 8 a 15 anos.
No parágrafo 1º do mesmo artigo, a condição de vulnerável é entendida para as pessoas que não tem o necessário discernimento para a prática do ato, devido a enfermidade ou deficiência mental, ou que por algum motivo não possam se defender.
Penas pelos crimes contra a liberdade sexual
A pena para quem comete o crime de estupro pode variar de seis a 10 anos de prisão. No entanto, se a agressão resultar em lesão corporal de natureza grave ou se a vítima tiver entre 14 e 17 anos, a pena vai de oito a 12 anos de reclusão. E, se o crime resultar em morte, a condenação salta para 12 a 30 anos de prisão.
A pena por violação sexual mediante fraude é de reclusão de dois a seis anos. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.
No caso do crime de assédio sexual, a pena prevista na legislação brasileira é de detenção de um a dois anos.
O que é a cultura do estupro?
Como denunciar violência contra mulheres?
- Ligue 180 para ajudar vítimas de abusos.
- Em casos de emergência, ligue 190.