Jornal Estado de Minas

Os invisíveis da pandemia

Especialistas temem fuga em massa da escola no retorno do isolamento

 

Foram longos e numerosos passos até que se conseguisse, nas últimas décadas, implementar políticas públicas rumo à garantia efetiva do direito à educação. Ainda que lentamente, indicadores revelavam como o Brasil galgou degraus na busca pela qualidade do ensino e no enfrentamento de chagas crônicas, como analfabetismo, falta de acesso universal à escola e evasão. Mas, com as salas de aula de portas fechadas há 17 meses, a saúde da educação brasileira, que já era frágil, foi parar na UTI, vítima indireta do novo coronavírus e com problemas encobertos pela pandemia.





 

O diagnóstico dessa outra doença que assola o país ainda é tão invisível aos olhos quanto o vírus da COVID-19. Na quarta e última reportagem da série “Os invisíveis da pandemia”, o Estado de Minas mostra o retrocesso histórico na aprendizagem e o abandono em massa de livros e cadernos como uma das consequências do fechamento prolongado das escolas. 

 

Os efeitos sobre a realidade da educação brasileira só serão conhecidos quando as escolas forem plenamente reabertas. Estimativas dão conta de que a maioria das instituições de ensino no Brasil ficou fechada durante grande parte de 2020 e no primeiro trimestre deste ano, em média superior a 40 semanas. Sem números oficiais, restam projeções de institutos e fundações e uma grande preocupação com o futuro próximo.  

 

O Todos pela Educação, um dos principais movimentos do setor no país, prevê retrocesso perto de duas décadas nos indicadores de evasão e nos de aprendizagem. Em São Paulo, onde aulas remotas foram dadas por meio da TV, aplicativos e sites e onde as escolas chegaram a ser reabertas, avaliação de impacto da pandemia feita pelo governo do estado revela retrocesso de mais de uma década na aprendizagem do aluno. Em outros estados, os efeitos serão ainda mais cruéis. Na Bahia, por exemplo, o modelo remoto só foi adotado este ano.  

 

No ensino médio, a previsão é de que a média nacional de aprendizagem esteja entre 20% a 30% – mesmos patamares de 20 anos atrás. Isso significa que os estudantes sairão da última etapa da educação básica tendo aprendido entre um quinto e menos de um terço do que deveriam. Esses percentuais tendem a apresentar ramificações ainda mais dramáticas: a terceira das cinco metas de aprendizado do Todos pela Educação (todo aluno com aprendizado adequado à sua série) saiu de 28%, em 2005, quando os objetivos foram fixados, para 60% em 2017. É tido como certo que as próximas avaliações revelarão volta à casa dos 30%.  

 

“O Brasil cometeu alguns erros durante a pandemia, e um dos maiores foi ter normalizado esse fechamento total das escolas por tanto tempo”, critica a presidente-executiva do Todos pela Educação, Priscila Cruz. “Não entrando no mérito dos patamares altos em que está a pandemia, mas o país optou por abrir outros setores no período de controle da doença e manter fechadas as escolas. Os alunos ainda pagam o preço disso. São necessários vários cuidados sanitários para reabertura, mas onde está o esforço para isso?”, questiona. 

 

PALIATIVO Ela ressalta que as aulas remotas são insuficientes, e só têm efeito no curto prazo, uma vez que as crianças ficam desestimuladas e os professores não conseguem excelência no ensino por falta de formação específica. “A elite deste país, que é a elite social, econômica e cultural, não cobrou providências. Normalizou o fato de haver 48 milhões de escolas públicas sem aula, durante 1 ano e meio. E isso me escandaliza”, desabafa.





 

Priscila ressalta que a qualidade da escola pública, que atende 85% dos jovens brasileiros, é condição para o país crescer, ser mais seguro, ter cidadãos mais atuantes, prevenir doenças e gravidez precoce. “Quem influencia os rumos do país, a elite, não demanda atenção à educação, à reabertura das escolas, e deixou claro neste período o quanto precisamos avançar no processo civilizatório do Brasil.” 

 

(foto: Antônio Araújo/Agência Câmara - 9/10/13)

 

OCDE faz diagnósticos de abandono dos estudos 

 

As preocupações quanto aos efeitos da pandemia na educação estão expressas em dois relatórios divulgados pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os documentos apresentam o panorama do ensino infantil ao superior no Brasil em uma perspectiva internacional, e destacam que, embora a situação socioeconômica e as diferenças regionais sejam fatores que influenciam em todos os sistemas, seus impactos são mais fortes no Brasil do que em muitos países comparáveis.  

 

O trabalho destaca ainda a grande proporção de jovens que não concluem os estudos ou não o fazem dentro do tempo esperado. “Isso é o resultado de uma série de aspectos, incluindo a repetência e um currículo pouco engajador. Alguns alunos também abandonam os estudos para procurar emprego ou assumir responsabilidades de sustento da casa. A pandemia da COVID-19 pode ter alimentado ainda mais essa tendência, especialmente entre os mais vulneráveis”, informa a publicação.  

 

Mesmo sem dados oficiais sobre o impacto do fechamento das escolas e da educação a distância nos resultados de aprendizagem dos alunos brasileiros, a previsão é de que, de novo, o público mais vulnerável socioeconomicamente pagará a conta mais cara, com uma defasagem ainda maior, e não apenas de aprendizado. “Episódios prolongados de fechamento de escolas podem aumentar as desigualdades se os governos não implementarem medidas para garantir que todas as crianças tenham recursos suficientes para aprender em boas condições, principalmente em países onde fatores não escolares desempenham um papel importante nos resultados de aprendizagem”, reitera a OCDE.  

 

Segundo a presidente-executiva do Todos pela Educação, Priscila Cruz, o mais grave entre as crianças pobres, essa “geração COVID” que perdeu o vínculo com a escola, não é não ter aprendido. É o fato de estarem sofrendo abusos que antes a escola identificava, sob estresse tóxico e vendo a família no desespero, o que afeta o aspectos cognitivo, emocional e físico.  

 

Ela salienta que em momento de vulnerabilidade, a escola se torna o local mais seguro. “É o máximo da reação positiva de um país que cuida das suas crianças: num momento de grave crise, precisamos protegê-las em um ambiente saudável, em tempo integral. Mas, como elas são invisíveis, as lideranças políticas e econômicas brasileiras não sentem a dor delas agora, nem a dor futura”, lamenta a presidente-executiva do movimento. “Está na hora de o Brasil começar a ir para a rua porque a criança pobre não está indo para a escola. O dia em que a criança pobre tiver o dobro de oportunidades educacionais e de desenvolvimento que uma rica, teremos feito a revolução neste país.” 

 

 

56% das desistências após março de 2020

 

Pesquisa recente do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve), “Juventudes e a pandemia do coronavírus”, revelou que quase metade dos jovens de 15 a 29 anos (43%) não estão estudando em 2021 e, entre os que abandonaram, 56% o fizeram depois de março de 2020. Mas um dado crucial dificulta saber ao certo a medida da evasão: muitos ainda estão com a matrícula ativa. Na rede estadual de Minas Gerais, a tentativa de reverter o problema passa por busca ativa de estudantes infrequentes ou em vias de abandono. A Secretaria de Estado de Educação informa o retorno de mais de 30 mil alunos ano passado, o dobro do ano anterior, quando a campanha começou. Este ano, cerca de 44 mil alunos foram localizados e levados de volta às atividades escolares.  

 

Se pesquisas anunciam um drama, o cotidiano de alguns educadores já sente a realidade. É o caso da professora Ailsa Alves, de 42 anos, que dá aulas nos ensinos infantil e fundamental. Em contato com ex-alunos, hoje adolescentes, ela se diz perplexa com a falta de perspectiva: 80% deles relataram que não voltarão à escola no pós-pandemia. “Abandonaram o ensino médio e já estão trabalhando. Não querem mais saber”. 

 

FORA DA SALA O jovem Mateus Moreira Fagundes, de 19, morador do Bairro Santa Mônica, na Região de Venda Nova, em Belo Horizonte, não cancelou sua matrícula, mas não sabe se ainda está no cadastro do colégio. Aluno do 3º ano do ensino médio, abandonou os estudos em março do ano passado. Depois de reprovado pela primeira vez em 2019, contava recuperar os rumos do aprendizado em 2020. “Ninguém imaginava a pandemia. Eu nunca tive internet em casa, o que já dificultava tudo, e em dado momento cheguei à conclusão de que ou estudava ou passava fome. Tive que procurar um serviço”, relata. 

 

Mateus está empegado numa fábrica de produção de copos e canecas personalizados, e diz que ganha o dobro do salário de quando era jovem aprendiz. “Não tenho paciência. Mal aprendo na sala, sabia que seria muito difícil sozinho em casa. Acabei desistindo”, diz. Mas ele garante que não vai parar os estudos e diz que pretende voltar à sala de aula quando as escolas retomarem as atividades presenciais completamente. “Não quero estragar minha vida. Quero me formar e atuar na área de segurança.” 

 

 

Um desafio por trás das portas fechadas pela crise na saúde

 

O Estado de Minas publica hoje a última edição da série “Os invisíveis da pandemia”, que revela os efeitos colaterais da crise sanitária desencadeada pela COVID-19 sobre crianças e adolescentes diante do fechamento prolongado de escolas. Em um contexto em que privações e violações de direitos se agravaram e foram mascaradas pelo isolamento social, a primeira reportagem mostrou, no domingo, como a falta da sala de aula se tornou obstáculo extra para que situações como a violência familiar fossem identificadas. Na segunda-feira, autoridades da polícia e do Judiciário indicaram prever uma avalanche de denúncias de abusos, avaliando que os pedidos de socorro nunca foram tão silenciados quanto no período de portas fechadas pelo distanciamento social. Ontem, a reportagem do EM mostrou o drama das crianças com deficiência e de seus pais: famílias viram anos de progresso cognitivo sendo comprometidos pela falta de atividades pedagógicas, em um quadro cujas consequências nem especialistas se arriscam a prever.





 

Palavra de especialista
Andreas Schleicher, diretor de Educação e assessor especial em política educacional da Secretaria Geral da OCDE 
 
Capacidade de resposta

“Não há correlação entre infectados e escolas fechadas. Em alguns lugares, (a pandemia) foi terrível e as escolas continuaram abertas. De uma forma ou de outra, causou problemas. Mas não foi a pandemia, e sim a capacidade do sistema educacional daqueles países em lidar com as dificuldades. Países foram mais organizados e conseguiram manter as escolas abertas, apesar das dificuldades. Tiveram acesso tecnológico e conseguiram lidar com a pandemia. Outros lugares não têm acesso (à tecnologia) ou pais que possam ajudar seus filhos, e isso piorou a situação. A pandemia não é a origem da desigualdade social que levou a isso, ela só a amplificou. E a educação é uma das ferramentas mais importantes para se resolver a desigualdade do país.”  

audima