"Teremos um bom ano, mas não o ideal. Vai faltar muito (da vacinação) e eu creio que a gente não consiga atingir as coberturas em 2021"
A queda do ritmo de contaminação pelo coronavírus e do número de mortes provocadas pela COVID-19 no Brasil alimenta o sonho da população com um fim de ano melhor, frente às restrições enfrentadas no ano passado. Por outro lado, provoca temor o avanço da cepa Delta do coronavírus. Com a experiência de ter atuado no combate à pandemia na gestão do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, o epidemiologista Wanderson Oliveira alerta que o país precisa acelerar a vacinação como mecanismo eficaz de conter a variante.
Para que o Brasil chegue a um fim de ano como o imaginado pelos brasileiros, o ex-secretário de Vigilância em Saúde estima que será necessário completar o ciclo vacinal de 144 milhões de brasileiros com idade a partir dos 18 anos até 31 de outubro. Wanderson Oliveira é secretário de Serviços Integrados do Supremo Tribunal Federal (STF). Até a última sexta-feira, 53,2 milhões de pessoas haviam sido imunizadas, ou seja, 25,2% da população total. O epidemiologista observa que a esse ritmo a campanha ainda não é o ideal.
“Teremos um bom (fim de ano), mas não o ideal. Ainda vai faltar muito e eu creio que a gente não consiga atingir as coberturas totais em 2021, como imaginávamos. O ritmo hoje, por semana, ainda não chega a 11 milhões de doses. Isso complica muito. Para que a gente pudesse ter um volume de pessoas vacinadas e atingir a cobertura, teríamos que ter tido uma média regular por 11 milhões de doses aplicadas”, afirmou Wanderson, em entrevista ao Estado de Minas.
"Tem que haver (dose de reforço), pelo menos, para as pessoas acima de 50 anos, não porque é a CoronaVac. Deveria valer para qualquer vacina"
Como o senhor avalia o ritmo da vacinação contra a COVID-19 no Brasil?
O ritmo melhorou bastante. Estamos, hoje, com dados do Ministério da Saúde indicando que já atingimos cerca de 54% (de pessoas com a primeira dose). O ministério está confuso, porque no sistema oficial há registro de 114 milhões de brasileiros que receberam a primeira dose, sendo que 49 milhões receberam a segunda. Mas nos municípios e estados o dado é um pouco melhor. São 117 milhões que receberam pelo menos uma dose e 53,2 milhões que receberam as duas doses ou esquema completo com dose única. Se levarmos em consideração que a população do Brasil, hoje, está estimada em 213 milhões, temos que vacinar 75% das pessoas que são aqueles com mais de 18 anos com as doses planejadas. Isso dá 160 milhões de brasileiros. Há, ainda, os adolescentes de 12 a 17 anos que representam em torno de 8% da população. Daria 18 milhões de brasileiros. Para conseguirmos vacinar todo mundo, precisamos chegar ao limite desse volume que seria de 178 milhões de brasileiros. No momento, temos 53,2 milhões com esquema completo e 117 milhões com esquema incompleto. Se considerarmos até outubro chegarmos a 160 milhões de pessoas com 18 anos ou mais com pelo menos uma dose, é possível, mas não vamos conseguir atingir o volume de vacinados até dezembro. Nós temos, até agora, apenas 25,2% da população total com as duas doses. Para termos uma imunidade completa, teríamos que ter 160 milhões em vez de 51 milhões.
Para a população ter um bom Natal, quantas doses devem ser aplicadas?
Para fazer até 31 de outubro, vou considerar a população vacinada com as duas doses. Então, temos que sair de 53,2 milhões e chegar a 160 milhões de brasileiros com 12 anos ou mais, ou, pelo menos, 144 milhões de brasileiros com as duas doses. Se tivermos, acima de 18 anos, 160 milhões de brasileiros, menos os 53,2 milhões, vamos ter que vacinar, até outubro, 109 milhões de pessoas. Teremos um bom ano, mas não o ideal. Ainda vai faltar muito e eu creio que a gente não consiga atingir as coberturas totais em 2021, como imaginávamos. O ritmo hoje, por semana, ainda não chega a 11 milhões de doses. Isso complica muito. Para que a gente pudesse ter um volume de pessoas vacinadas e atingir a cobertura, teríamos que ter tido média regular de 11 milhões de doses aplicadas.
Qual é a opinião do senhor sobre a terceira dose ou dose de reforço?
Tem que haver, pelo menos, para as pessoas acima de 50 anos, não porque é a CoronaVac. Deveria valer para qualquer vacina, porque as pessoas a partir de uma certa idade acabam tendo o sistema imunológico envelhecido. Então, é natural que seja necessária a dose de reforço. Isso sempre aconteceu, como por exemplo, com a febre amarela, sarampo, poliomielite, porque o seu organismo vai reduzindo ao longo do tempo. Vale também para a AstraZeneca, vale para a Pfizer… os Estados Unidos, por exemplo, estão fazendo dose de reforço para a Pfizer. A questão não é com a CoronaVac. O equívoco é você ficar focando na CoronaVac. Deveriam estar discutindo a vacinação heteróloga: se eu apliquei CoronaVac, agora, então, poderia utilizar outra plataforma. Isso deveria estar sendo colocado para tentar extrair o máximo da capacidade protetora que a vacina pode provocar. E combinar com a vacinação de adolescentes com a vacina da Pfizer e a vacinação de idosos, porque estamos observando aumento de casos graves, principalmente em jovens e crianças com comorbidades. Isso tem aumentado muito nos Estados Unidos e em outros países. A incidência de casos mais graves em crianças e adolescentes no Brasil é muito maior que em outros países.
Trata-se, então, de elaborar uma estratégia?
É preciso, sim, fazer uma estratégia de vacinação. Agora, não terminamos de fazer a primeira dose em todo mundo que deveria receber a primeira dose. Na primeira dose, nós fizemos, até o momento, 117 milhões. Neste ritmo em que estamos, conseguiríamos, até final de setembro, completar essa vacinação das pessoas com 18 anos ou mais, atingindo uma cobertura de cerca de 90%. Isso é legal, mas, ao mesmo tempo, está se discutindo a terceira dose – ou seja, precisa de terceira dose para fazer este grupo –, está se discutindo a vacinação em adolescentes e, além disso, a redução do intervalo de três meses para AstraZeneca e Pfizer para um intervalo de 21 dias, pelo menos. Então, na medida em que eu tenho essa junção de fatores, vou precisar de mais vacinas. Vamos receber mais vacinas que o Ministério (da Saúde) adquiriu – em torno de 660 milhões de doses –, acho que é um quantitativo que dará para fazer essas atividades. Porém, a pressão de grupos setoriais está provocando essa necessidade de reprogramação sem ter ocorrido completa conclusão do esquema vacinal previsto. Vamos fazer uma terceira dose? Sob quais condições? Sou a favor de uma terceira dose desde que a gente garanta pelo menos uma dose com 12 anos ou mais. Temos de vacinar todo mundo, desde adolescentes aos mais velhos.
Faltando pouco mais de um mês para o fim do inverno, vemos números em queda de forma geral no Brasil. O que se temia era aumento do contágio. Qual a análise que pode ser feita?
É interessante, porque o que aconteceu durante o inverno foi um aumento expressivo na vacinação, principalmente ali em meados de junho. Os números não cresceram justamente pelo aumento da cobertura vacinal entre pessoas de 60 anos ou mais, que eram justamente as que davam volume muito maior (à doença). Temos que lembrar que o Brasil teve muita transmissão. Então, a gente não sabe quantas pessoas que pegaram COVID-19 e tinham algum nível de proteção prévio. Mas os números do Brasil, apesar de estarem em queda, estamos falando de mais de mil óbitos por dia. Isso é muito alto. Não dá para dizer que não tivemos um problema no inverno, ainda continuamos tendo. As taxas caíram em relação aquela situação que estava surreal, mas ainda são muito elevadas. Só não estamos tendo mais casos por causa da vacinação.
Até o começo desta semana, o Brasil registrava mais de mil confirmações de infecções provocadas pela nova cepa Delta. É possível falar em epidemia entre pessoas não vacinadas ou com esquema vacinal incompleto?
Isso aconteceu nos Estados Unidos. Agora, tem um detalhe que a gente precisa destacar. As variantes anteriores, como a Gama, o R0 (número de pessoas que transmitem para outras pessoas) era de dois a três. Ou seja, cada pessoa infectada transmite para duas ou três pessoas. No caso da Delta é de sete a oito. Então, estamos falando de um vírus muito mais transmissível. Além disso, estamos conhecendo melhor a Delta. Ela tem transmissão mais elevada do que a Alfa e a Gama. O potencial de gravidade dela é aumentado, com elevação da taxa de hospitalização. Ela aparentemente não tem mais virulência (não mata mais), no entanto, locais que possuem baixas coberturas vacinais também observaram aumento da mortalidade.
Como a vacina age contra a variante Delta?
A gente sabe que pessoas que tiveram COVID-19 leve têm uma probabilidade maior de ser reinfectadas, principalmente aquelas que pegaram no ano passado e não tomaram vacina ainda. Há uma pequena redução na eficácia de algumas vacinas contra a Delta e um impacto significativo da vacina em casos graves. Alguns estudos têm demonstrado que a Pfizer, por exemplo, com as duas doses, apresenta uma redução na variante Delta. Com uma dose, ela representa em torno de 33% de proteção. Já contra a variante Alfa chega a 80%. No caso da CoronaVac, cai de 80% para 70% no caso da variante Gama. Já com a Delta, na AstraZeneca, cai de 82% para 33%, no caso de uma dose. Em duas doses, a AstraZeneca apresenta 94% de proteção contra a Gama e 60% contra a Delta.
Quais os sintomas da variante Delta?
A variante Delta apresenta características um pouco diferentes. No ano passado, a gente viu que as pessoas apresentavam muita perda do paladar, do olfato, e, com isso, muitas pessoas falavam que estavam com COVID-19. Então, o diagnóstico de COVID-19 em muitas situações acontecia ali naquele padrão baseado nessas próprias características clínicas. No entanto, não quer dizer que isso vai acontecer sempre. No caso da Delta, você tem esses sintomas um pouco diferentes. Eles não têm as mesmas características. O padrão clínico das pessoas não é o mesmo que a gente viu com a variante Gama. As pessoas totalmente vacinadas vão ter um quadro de síndrome gripal, mas, potencialmente, não terão quadro clínico de internação, com falta de ar, como a gente viu com as outras variantes. Temos que vacinar o mais rápido para a gente conseguir um Natal mais seguro. Vamos continuar usando máscara, investir na manutenção do distanciamento físico e na higienização das mãos com álcool gel.
Nesse contexto de ação da variante Delta, que tende a aumentar o número de internações, sobretudo entre não vacinados, é hora de fechar leito hospitalar?
Não é hora de fechar leito, embora tenha havido crescimento importante de leitos. Mais importante do que fechar é saber se eu consigo abrir um leito rapidamente se houver necessidade. Há locais que fecharam todos os leitos. É isso que me preocupa, pois a velocidade de transmissão da Delta é muito grande. A gente pode ter uma consequência muito trágica do aumento da transmissão que é a mortalidade por desassistência, como aconteceu em Manaus por falta de leitos. Estamos na pandemia, ela ainda não acabou para começarmos a desarmar a barraca.
A Delta Plus, que é uma subvariante da nova cepa, foi identificada em pelo menos 30 países. Como podemos defini-la?
A variante Delta apresenta uma série de mudanças naquela proteína chamada spike, que parece um espinho do lado de fora do vírus. A variante Delta Plus tem mais mutações naquelas áreas, sofreram mais mudanças. A clareza do que representam essas mudanças, como virulência, ainda não estão bem descritas. Estamos acompanhando. A mesma coisa ocorre com a Gama, que tem a Gama Plus. Tivemos agora a variante P.1.1.7. Isso vai acontecer e continuar acontecendo. Repito: isso ocorre porque estamos com um nível de transmissão e um número absurdo de mortes, que, apesar de estar em queda, ainda em patamares muito elevados. O Brasil está com R0 de 0,9, variando de 0,9 a 1. Ou seja, estamos num platô. Não caímos. A impressão de que estamos caindo é porque estamos comparando com a montanha. Se tivéssemos olhando para o horizonte, estaríamos em um platô. Minas Gerais está com R0 variando entre 0,6 e 0,8. Ou seja, uma queda maior, mas temos outros estados com taxas menores ou maiores.
O presidente Jair Bolsonaro disse que “tem gente que tomou as duas doses de CoronaVac e está morrendo”. Como esse tipo de discurso repercute?
É surreal. Lamento muito essa fala de uma autoridade. Não é só ele. Tenho visto autoridades e órgãos importantes falando que máscara não tem efeito, estamos vendo de tudo. Esse pessoal está brincando com a vida das pessoas. Houve o episódio lamentável do Tarcísio Meira, uma pessoa querida que teve um papel importante. Pessoas assim, com idade avançada, têm desgastes naturais do organismo. A chance de uma pessoa totalmente vacinada morrer por causa de uma infecção da COVID é de 0,0003%. É muito baixo. A maior parte das pessoas terão um mal-estar que vai durar dois, três dias. Alguma pessoa imunizada pode ter alguma complicação e morrer? Pode, mas isso acontece em se tratando de todas as vacinas e em qualquer condição. A vacina não é uma proteção individual. É uma proteção coletiva. Quanto mais gente vacinada, menor será a possibilidade de termos casos graves. A CoronaVac está protegendo. Só não há mais óbitos no Brasil por causa da CoronaVac, porque foi ela que protegeu, principalmente, as pessoas mais vulneráveis. Devemos a nossa vida ao Butantan.