Faça chuva ou sol, o dia mal despertou e as demandas já começam a aparecer. Nas esquinas, becos ou vielas, pedidos de socorro, de orientação ou mesmo uma singela troca de ideias se tornam comuns na difícil tarefa de ajudar a cuidar de uma grande família de 120 mil pessoas. Fragmentadas em oito vilas, com origens e costumes parecidos, mas com pontos de vista diferentes. Uma rotina que faz parte da líder comunitária Cristiane Pereira, de 44 anos, a mãe de todos numa luta constante contra a desigualdade e o preconceito na Vila Santana do Cafezal, no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte.
Leia Mais
Balada em ritmo de paz: EM mostra baile funk legalizado do Aglomerado da SerraNo baile funk da Serra ninguém é excluído, mas manter segurança é desafioVoluntários doam 300 marmitas no Aglomerado da Serra, em BHAglomerado da Serra: 'caminhão-piscina' leva alegria para comunidade de BHFavorita para prêmio 'Casa do Ano 2023' fica no Aglomerado da Serra, em BHSimone: 'Por que temos camisinhas disponíveis, mas não temos absorventes?'Saiba como foi construído o Pirulito da Praça Sete, símbolo de BHJúlio César, líder comunitário: "Favela é sempre vista de forma pejorativa"Paraisópolis, 100 anos: como loteamento de luxo virou favela mais famosa de SPExoneração repentina de diretor intriga comunidade de escola estadual em BHSegundo levantamento da Central Única das Favelas (Cufa), mais de 550 mil pessoas vivem em 223 vilas e favelas de Belo Horizonte. Em seu último Censo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já apontava, em 2010, quase 300 mil belo-horizontinos vivendo nos chamados aglomerados subnormais, com renda-média mensal de R$ 600 por família.
O rendimento é 38,7 menor que a média encontrada em bairros nobres da região Centro-Sul, como Belvedere, São Bento e Comiteco, nos quais a renda média das famílias é de 11,7 salários mínimos, como aponta um estudo mais recente, intitulado Mapa da Desigualdade 2021, feito pela ONG Nossa BH. Essa realidade pode se deteriorar mais em virtude das consequências diretas da pandemia do coronavírus, que prejudicou, sobretudo, a faixa mais pobre da sociedade.
Cultura de transformação
Dentro das favelas, ações contra a desigualdade são trabalhadas por meio de ajudas humanitárias e movimentos culturais de inclusão social, que buscam talentos e geram oportunidades no mercado de trabalho. Envolvida com atividades como essas desde a infância, Kika tem como maior desafio consolidar a mudança de paradigmas em relação às pessoas que vivem nos aglomerados. “Somos uma grande potência na música e na arte. Queremos deixar as páginas policiais e aparecer apenas nas culturais. Na favela, 99% das coisas são boas”, afirma.
Há três anos, ela e sua equipe fizeram o Circuito Serra da Quebrada, com intenção de mapear grupos dedicados à arte e estimular novas criações. O esforço de todos também contribuiu na fundação, em 2017, do Observatório do Funk, entidade responsável pela legalização do maior baile funk em favela em Minas Gerais, com a participação de mais de 3 mil pessoas antes da pandemia.
A iniciativa partiu de Kika, depois de um triste episódio no Aglomerado da Serra. Em julho de 2017, o adolescente Gabriel Soares Mendes, de 14 anos, foi assassinado durante troca de tiros durante uma intervenção de policiais militares num baile funk na comunidade. A partir daí, foram necessárias muitas negociações com a Polícia Militar e o poder público para que o evento fosse realizado sem complicações.
A iniciativa partiu de Kika, depois de um triste episódio no Aglomerado da Serra. Em julho de 2017, o adolescente Gabriel Soares Mendes, de 14 anos, foi assassinado durante troca de tiros durante uma intervenção de policiais militares num baile funk na comunidade. A partir daí, foram necessárias muitas negociações com a Polícia Militar e o poder público para que o evento fosse realizado sem complicações.
“Nosso dever como liderança é mostrar para outras pessoas a potência que nós somos, o que podemos agregar. A favela é ligada à criminalidade. Todos acham que só existe o crime. Não é isso. A pessoa está fora da comunidade e não entende o que ocorre dentro. Nosso papel é mostrar que ela não é o que muitos pensam. A gente consegue seguir normal, igual outras pessoas conseguem em outros lugares”, afirma Kika.
A morte de Gabriel aproximou a líder comunitária de outras pessoas que ajudaram a difundir os movimentos culturais. “Nós nos conhecemos logo depois da tragédia. No mesmo dia, fizemos uma apresentação de funk num lugar elitista e houve muito preconceito. A gente iria mostrar nosso trabalho para a elite, mas fomos bombardeados, pisoteados”, relembra Kadu dos Anjos, artista e gestor do Centro Cultural Lá da Favelinha. “Fiz um vídeo e ele viralizou. Logo, marcaram uma conversa na Câmara dos Vereadores para discutir o assunto sobre os bailes. Conheci a Kika e começamos a trabalhar juntos”, conta.
Logo após a morte de Gabriel Soares, Kika começou a trabalhar para tornar o baile funk um evento legal perante as autoridades. “A polícia nunca deixava a gente tirar o alvará para os bailes funks. Aí, fazíamos na tora. Mas a Kika teve a capacidade de dialogar. Ela está em todas as pontas. Todo mundo a respeita. Ela resolve os problemas com dois telefonemas. Por isso, ela consegue tirar os alvarás com maturidade e experiência. Mora na comunidade há muitos anos”, relembra Kadu.
A advogada popular e professora da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), Maria Neiva Gomes, é outra pessoa que se juntou à líder nos trabalhos diários em busca de superar as desigualdades. Ela se aproximou de Kika justamente por ser apreciadora do estilo funk e desenvolver pesquisas sobre o tema.
“Eu a vi pela primeira vez numa roda de samba, no Centro. Tínhamos uma amiga em comum na UFMG. Falei que pesquisava sobre o funk e que tinha experiência em advocacia popular. Começamos numa relação de ativismo social, que depois se transformou em amizade”, diz Maíra Neiva.
Segundo ela, Kika hoje atingiu um status fundamental para o andamento das ações na comunidade: “Ela tem a característica das mulheres negras e periféricas. É uma virtude que é construída por meio de uma vivência cultural. Na Serra, a Kika passa a ideia de uma mãe que protege sua comunidade, que é o papel que as mulheres negras e faveladas do Brasil desemprenham”.
Vocação desde a infância
Falar de Kika não é só dar ênfase à arte e ao funk. A história dela como agente social começou na transição da infância para a adolescência. Quando tinha 12 anos, começou a se envolver em ajudas humanitárias no próprio Aglomerado da Serra, ao socorrer vítimas que ficaram desabrigadas em virtude das fortes chuvas.
Logo, começou a se sensibilizar com outros problemas, entre eles a fome, a pobreza e a miséria. E, desde aquela época, tornou-se corriqueiro um morador da favela pedir orientações a ela para solucionar problemas do dia a dia, como ruas esburacadas, rusgas entre vizinhos ou para obter licenças para lojas.
“Somos chamados desde o pedido de uma cesta básica, mas tem as questões da comunidade, como uma laje caindo, a quadra que precisa ser arrumada, a rua que precisa de asfalto, o esgoto do vizinho. Eles não têm esse diálogo e precisam da gente para resolver o problema. Mãe que abandonou o filho, briga de vizinho, alvará para loja, licença para barracas”, comenta Kika.
Desde então, a belo-horizontina se vê feliz ao ver seus vizinhos vivendo com harmonia e sem passar por dificuldades: “O mais desafiador é quando chegam para a gente com uma demanda e você não tem como resolver. Mas você sempre consegue. E o que dá mais satisfação é quando você consegue resolver um problema que jamais esperava que conseguiria. São vários no dia a dia. Cada problema é maior que o outro. Quando vai conseguindo passar e resolver, beleza. Mas há frustração quando você não consegue resolver. Eu nem consigo dormir ou comer. Carregamos os problemas junto com a gente. Para alguns, é fácil. Mas não é”, desabafa.Exemplo dentro de casa
Com a mesma atenção que dá à comunidade, Kika também cuida diariamente de seu lar. Ela teve sua primeira filha aos 18 anos e, desde então, não parou de trabalhar para ajudá-los. A primogênita dos herdeiros é Paula, de 26. Em seguida, veio Larissa, de 25, e Matheus, de 21. A líder comunitária adotou outros três: Manu, de 11, Kathleen, de 6, e o pequeno Gustavo, de 2.
Sem formação acadêmica, ela lutou muito para criá-los da melhor forma. Trabalhou como faxineira, empregada doméstica e como cuidadora de crianças. Criada pela avó junto com outros primos, aos poucos foi aprendendo a exercer o papel protagonista na comunidade. Mesmo sem a faculdade, Kika tentou se qualificar para exercer a função ao longo dos anos. Ela já fez curso de promotora popular do Ministério Público e sempre diz ter buscado outras qualificações para saber como funciona a relação entre periferia e poder público.
Os desafios da pandemia
Uma de suas metas atualmente é encaixar novamente os moradores da favela em novos trabalhos, já que muitos postos se fecharam na pandemia. “Algumas pessoas passam por necessidades, mas sempre tiveram trabalho. Com o emprego, ela conseguia suprir algumas e, com isso, faltavam poucas coisas. Mas, com a pandemia, as pessoas perderam o emprego. Logo, faltaram mais coisas. Estamos tentando reajustá-los no mercado. O mais importante nem sempre é dar. Quando temos, doamos, como no início da pandemia. Hoje, fazemos o possível para conseguir encaixá-los no mercado de trabalho para eles pescarem o próprio peixe”.
Apesar de sua representatividade no aglomerado, Kika já pensa em passar o bastão para outro cidadão que tem o dom de cuidar dos outros. “Mãe é para sempre. Esse perfil a gente não perde. Mas tenho muita vontade de passar adiante. As pessoas que vêm com a gente precisam aprender isso. Eu aprendi de outras que hoje estão descansando. Tem hora que temos de descansar. Demanda muito tempo. Esse caminho será até chegar outro. Não podemos ficar a vida toda na mesma função”.