“Na despedida, ele disse: ‘Bom descanso, tenente!’. Eu respondi: ‘Bom combate, meu amigo’.” O diálogo no último dia de vida do sargento Carlos Roberto da Silva está marcado na lembrança do colega de corporação Leonan Soares Pereira. Os dois bombeiros se encontraram durante uma troca de turno das equipes que combateram grandes e arrasadores focos de incêndios que duraram mais de 10 dias em Arinos, no Noroeste de Minas. Com 27 anos de experiência como herói de farda, o sargento Roberto finalizou sua missão combatendo o bom combate.
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“Estávamos sentados à mesma mesa, dividindo boa prosa, um dia antes de os ventos mudarem. Os ventos mudam sempre, desta vez mais como um sopro. Rápido, intenso, súbito…”, escreveu o tenente Leonan em homenagem ao colega. “Com sua energia, vibração e entusiasmo como se, para quem ficou, você dissesse: ‘Bom combate, meus amigos’. E nós, com as vozes embargadas, respondemos: Bom descanso, sargento”.
Perito em incêndio florestal, Leonan foi um dos oficiais responsáveis por coordenar as ações de combate às chamas na zona rural de Arinos, que começou a arder ainda no dia 14, e onde dezenas de bombeiros militares e brigadistas se empenharam na missão de tentar impedir uma tragédia ainda maior. O fogo foi controlado nesse sábado (25/9).
Segundo o Corpo de Bombeiros, mais de 15 mil hectares de mata haviam sido queimados até a sexta-feira – o que significa quatro vezes a área do Parque Estadual da Serra do Rola-Moça, unidade de preservação na Região Metropolitana de Belo Horizonte, que também começou a pegar fogo na última semana.
Há 11 anos na corporação, o tenente Leonan se dedica atualmente ao Pelotão de Combate a Incêndios Florestais (PCIF). O especialista no assunto partiu de BH no dia 16 com parte de sua equipe para apoiar os militares que já combatiam as chamas na região de Arinos.
Ele conversou com o Estado de Minas assim que retornou à capital, sete dias depois, ainda no Batalhão de Emergências Ambientais e Resposta a Desastres (Bemad).
“Nesse incêndio, nós tivemos diversos contratempos. Teve o caso de um senhor, ou melhor, ‘o senhor’. Assim que a gente chegou a uma fazenda da região e viu a fumaça preta, o pessoal já abordou a viatura dos dois lados. De um lado, pedindo para a gente ajudar a apagar o incêndio; de outro, para ajudar o senhor que estava ferido. Na hora em que olhei, vi que ele estava com o rosto, o braço e as pernas queimados”, relembra o militar.
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A guarnição levou o homem e pediu apoio para encaminhá-lo ao hospital. “Ele pedia pomada. Eu pensava: ele não tem noção do tanto que está queimado. Quando a queimadura é profunda, queima e a pessoa não sente dor, era lesão de terceiro grau”, explica Leonan.
“Esse senhor, nem deu tempo de perguntar o nome, salvou um trator que alimentava 25 pessoas na pequena fazenda onde ele morava. Depois que voltamos para a fazenda, as preocupações já eram três: tentar apagar o incêndio, tentar não deixar atingir a casa, e tentar impedir que mais alguém saísse machucado.”
Duplo impacto em Arinos
As cenas trágicas ficam marcadas na memória e o aspecto psicológico tem que carregar aquilo que o físico já sofreu: a perda do colega, o homem com 10% do corpo atingido, um cavalo queimado, uma viatura cercada pelo fogo, um trator carbonizado que fará muita falta para os que dependiam da máquina...
“Esse incêndio marcou muito a gente, nossa equipe teve de sair correndo em diversos momentos. Foi um dos mais intensos que já combatemos. Nestes 11 anos como bombeiro e três na atividade especializada de incêndio florestal, não vi nada parecido. É um fogo muito intenso. É uma vegetação rasteira, que em qualquer outra época do ano a gente conseguiria controlar muito fácil com três pessoas. Mas lá estávamos com 23 militares, água, aeronave, pessoal de combate, trator, caminhão-pipa, e nada resolvia. Então, a gente tinha de escolher qual parte que ia queimar. E tentar proteger o que era mais importante.”
Os dramas humanos por dentro da farda
Na linha de fogo, quem está vestindo uma farda sabe que não é super-herói, por mais que muita gente pense diferente. Por trás da roupa laranja há um ser humano, e ligada a cada um deles uma família em casa, esperando pelo retorno.
“Até o começo deste período de estiagem, eu não tinha medo, não. Talvez o medo não seja nem de eu não voltar para casa, mas, assim como aconteceu com o colega nosso hoje, é de ter que dar a notícia pra alguém sobre aquele que não vai voltar. Como oficial, a gente tem toda uma carga de gerenciar e expor os militares a essas situações. Então, é uma responsabilidade muito grande falar: 'Vai'. Principalmente quando a gente está junto, eu falo: 'Vamos'. Porque se estou indo ou mandando ir, preciso ter certeza de que eles vão voltar. Isso é o mais importante: não é se eu vou voltar, mas se eu vou conseguir trazer todos de volta”, diz o tenente Leonan Soares Pereira, com os olhos marejados.
Defensor ferrenho de educação ambiental, o bombeiro diz que o fogo é alimentado por uma questão cultural.
“A gente não pode exigir do homem do campo que ele tenha pleno conhecimento daquilo que está fazendo. Ele não dimensiona. Eu tenho certeza de que a pessoa que colocou fogo em Arinos não sabe que gente se queimou, que um cavalo se queimou, que agricultores perderam um trator, que as guarnições sofreram. Talvez a pessoa nem lá esteja mais”, afirma.
“Acredito que a gente só vai resolver com educação ambiental. Temos que entender todo esse ciclo. Estamos falando de um incêndio que ainda está ocorrendo e depois que ele acabar vai deixar toda uma comunidade com várias sequelas. Desde crises respiratórias em crianças, problemas crônicos, crise de abastecimento hídrico...”, enumera o militar.
Ajuda que faz diferença
O tempo seco e o calor em Arinos tornaram o ambiente ainda mais difícil de enfrentar. O tenente Leonan conta que chegou a fazer 46OC na sombra.No meio do caos e do cansaço, a população que se sensibiliza com o trabalho árduo faz toda a diferença.
“Por lá a gente conheceu também a dona Luíza, de 89 anos. Todo dia, quando a gente chegava, ela entregava água, um cafezinho. Na volta do combate, ali pelas 15h, ela estava lá com o almoço pronto, quentinho, feito no fogão a lenha, nos esperando. Se a gente for levar toda a nossa alimentação, quase não carrega equipamento, porque é muita coisa. Então, levamos o mínimo. Tem dia em que passamos com barra de cereal, tem dia que passamos com um doce. Então, se fizemos jornadas de trabalho lá, muitas foram por conta da dona Luíza”, agradece o oficial.
'Não coloque fogo'
O bombeiro conta que a maioria das fazendas de Arinos perdeu mangueiras de abastecimento de água, e acredita que a prefeitura terá de mandar caminhões-pipa para matar a sede daquela gente.“A cultura incentiva cegamente a colocar fogo. Uma mudança de cultura só acontece se tiver educação ambiental. Eu estou cansado. É sempre a mesma história: na beira da rodovia, para limpeza do pasto, no lixo. São as mesmas causas. A gente precisa mudar a postura. Só combater incêndio não vai resolver. A gente precisa trabalhar antes com a educação”, reforça.
“Isso me cansa. A gente está em um período de resposta, mas durante todo o ano a gente fala a mesma coisa: 'Não coloque fogo'. E ele é colocado todos os anos. Isso cansa”, desabafa.