Dos morros mais elevados da Pedreira Prado Lopes, apontada como a favela mais antiga de Belo Horizonte, Wanderlei Rocha, de 52 anos, observa com certo arrependimento o desenrolar dos fatos que marcaram sua vida, quase inteiramente passada em sua própria comunidade. Tudo poderia ter caminhado para um lado mais tranquilo se não fosse uma sequência de situações inesperadas que por pouco não levaram ele à morte prematura.
Em meio século de existência, Wanderlei se enriqueceu e envolveu com o crime, ficou preso durante 22 anos, acumulou inimigos e processos na Justiça e viu dezenas de vezes armas apontadas para sua face. No entanto, soube se regenerar no tempo certo e aprender lições importantes. Wanderlei virou Tó, um líder comunitário carismático.
Tó é o terceiro personagem da série multimídia “Eu Sou Favela”, que traça o perfil de líderes comunitários de BH, publicada pelo Estado de Minas.
Com quase 10 mil habitantes, a Pedreira Prado Lopes é um dos berços do samba e da cultura urbana da capital mineira, mas expõe uma triste realidade de vulnerabilidade social. Desde os primeiros anos do século 20, o local virou moradia de trabalhadores da construção civil e de pessoas desempregadas, justamente pela proximidade com a área central e com a rodoviária. A população se multiplicou ao longo das décadas. Vários moradores seguiram adiante o sonho de crescer por meio do trabalho, mas outros tiveram trajetórias distintas.
'A pessoa quer uma mudança de vida, se reintegrar à sociedade, mas é excluída de tudo. Ninguém dá emprego fixo para ex-presidiário'
Tó, líder comunitário da Pedreira Prado Lopes
O caminho de Tó teve uma transformação radical. Em sua juventude, trabalhou como cobrador de ônibus recebendo salário mínimo. A quantia mal dava para custear as despesas da família. Enquanto isso, outras pessoas se enriqueciam facilmente. “Por que não tentar essa vida?”. Ele tentou. Mas, logo começaria o calvário que duraria mais de duas décadas.
“Era trabalhador e cheguei a ter duas carteiras assinadas. Mas as coisas foram apertando cada vez mais. Foi aí que comecei a viver no mundo paralelo. Fiquei 22 anos envolvido nisso, com 21 processos na Justiça. Passei por vários presídios, penitenciárias e delegacias. Vi o que era bom e o que é ruim”, afirma Tó, sem esconder qualquer episódio obscuro de sua vida.
Ao se envolver no tráfico de drogas, ele se enriqueceu. “Tive situações em que poderia entrar num avião no aeroporto da Pampulha e ir ao Rio ou onde queria para ficar uma semana”, conta, apesar de admitir que não poderia desfrutar de tudo o que ganhou. “Daria para viver no luxo, tranquilo, mas não temos sossego. O que adianta ter R$ 500 mil, R$ 600 mil ou R$ 1 milhão e não poder usar o dinheiro? Ninguém acreditaria que um cobrador de ônibus ganharia tanto.”
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Durante anos, ele se envolveu em confusões e confrontos com a polícia. O presídio de Bicas I e Dutra Ladeira, o Departamento de Investigação na Lagoinha, o 4º Distrito Policial, o Ceresp da Gameleira e a Penitenciária Agrícola de Neves foram sua casas por anos.
Tó perdeu amigos, se distanciou da família e viu uma tristeza profunda tomar conta de si. “Já tive arma de fogo apontada na minha cara com o cano empurrado para trás. Já vi fuzil da polícia na minha cara, troquei tiros, é muita coisa. Por 10 vezes, a morte esteve perto de mim”, relembra.
Renascimento na comunidade
No entanto, a vida teve outro significado para ele depois que começou a se envolver com os movimentos sociais. A mudança ocorreu depois que percebeu que a vida badalada não levaria a nenhum lugar, exceto à angústia sem trégua. “Vi que não dava certo. Troquei o errado pelo certo. Comecei a trabalhar honestamente. Deixei tudo para trás. Hoje, faço mais para as pessoas da rua do que para quem está dentro da minha casa”.
'O que adianta ter R$ 500 mil, R$ 600 mil ou R$ 1 milhão e não poder usar o dinheiro'
Tó, líder comunitário da Pedreira Prado Lopes
Pai de nove filhos e avô de cinco netos, Tó passou a ajudar os moradores de sua comunidade, atendendo de cinco a 10 pessoas diariamente. Além de cestas básicas e produtos de higiene, ele trabalha para obter ajuda com remédios, muletas e cadeiras de rodas para amigos da periferia.
Recentemente, Tó criou o o Instituto de Capacitação e Ação Social Regenerados, uma iniciativa para ajudar moradores da Pedreira Prado Lopes - não é por acaso que ele sempre usa máscara com uma logotipo que simboliza uma cruz, representando justamente sua própria história. No espaço, há aulas de muay-thay, capoeira, balé, futebol de salão e futebol de campo, além de oferecer espaço para velório comunitário, atendimento médico e odontológico, fábrica de salgados, igreja aberta para todas as religiões e uma feira com 60 estantes.
"Temos esse lugar para atender as pessoas de segunda a sábado. Há famílias que vivem da venda das mercadorias no espaço cedido pelo Regenerados e precisam dos atendimentos que são oferecidos lá", conta.
Tó passou a ter tranquilidade para atravessar a rua sem ser mal visto na sociedade. Ele atualmente exerce a função de professor de percussão e também presta serviços semanalmente à Federação Mineira (FMF) em jogos de futebol. Porém, desde que abandonou a atividade paralela, não obteve mais emprego com carteira assinada.
“Ninguém dá emprego fixo para ex-presidiário”
Segundo o líder comunitário, o preconceito é outro desafio a ser vencido. “A pessoa quer uma mudança de vida, se reintegrar à sociedade, mas é excluída de tudo. Ninguém dá emprego fixo para ex-presidiário. Há 20 anos, minha carteira não vê uma assinatura. Aqui na favela, eu sou querido e todo mundo me respeita. Mas, fora, tudo é mais complicado”.
Para ele, existe uma distância grande entre a liberdade de um preso e a ressocialização: “Se todas as pessoas que estiveram no crime tivessem uma oportunidade, teríamos um país melhor”, afirma.
Para quem já viveu no luxo e cercado de dinheiro, viver tranquilo e ajudar os demais tornou-se um objetivo a ser percorrido. Longe dos tumultos e das situações tensas, Tó quer somente ver sua Pedreira Prado Lopes com mais igualdade e justiça, sem qualquer tipo de adversidade.