Jornal Estado de Minas

ALERTA

Febre Round 6: 'Diálogo aberto é melhor que censura', orienta psicóloga

Patrícia Alves, de 11 anos, ficou um dia inteiro trancada em seu quarto na semana passada. A rebeldia foi uma reação a uma decisão um tanto impopular tomada pelos pais dela, os advogados Luciana e Frederico Alves. Desde que as escolas começaram a alertar as famílias sobre os riscos da exposição de crianças às cenas violentas da série “Round 6” – mais badalada do catálogo da Netflix em 2021 –, eles aumentaram o rigor sobre o uso dos aplicativos de streaming em casa.



Na trama, indicada para maiores de 16 anos, 456 pessoas superendividadas se sujeitam a brincadeiras infantis para ganhar um prêmio bilionário. Quem perde é morto a tiros.

O perfil da menina, agora, tem restrições de classificação etária. Para acessar conteúdos que fujam desse critério, ela precisa pedir autorização. No caso da produção sul-coreana, não houve negociação. O casal avaliou que a garota ainda não está preparada para encarar a crueza da história, permeada por assassinatos, torturas, tráfico de órgãos e suicídio.

A restrição, contudo, nem de longe trouxe tranquilidade a Luciana e Frederico. Eles sabem que o assunto domina redes sociais como o TikTok, o YouTube e o Twitter com memes, clipes, teorias e challenges (desafios compartilhados entre os jovens).





“É muito difícil cercar todas as telas e redes. No fim, a gente faz o que é possível. Além de fazer essa vigília virtual, também ficamos mais atentos ao comportamento da Patrícia. Outro dia, ela desenhou os símbolos do tal cartão que os jogadores da série ganham. Ficamos apavorados. Diria que essa série, apesar de interessante, reduziu significativamente a paz de espírito dos pais no mundo inteiro!”, brinca Luciana.

Exagero

Série Round 6 é permeada por cenas violentas de assassinato, suicídio, além de abordar temas pesados, como tráfico de órgãos (foto: Netflix/Divulgação)
Para o psiquiatra da infância e adolescência Arthur Melo e Kummer, a preocupação com a exposição de jovens a cenas explícitas como as de “Round 6” é legítima, mas há um certo exagero na dose. Ele reforça que o produto é, de fato, inadequado para o cardápio cultural de crianças, já que a violência explícita associada ao contexto de brincadeiras é, em potencial, danosa ao desenvolvimento psicológico dos pequenos. Mas ressalta  que o comportamento infantil não obedece a relações simples de causa e efeito.

“A exposição reiterada de crianças a cenas violentas pode, em tese, trazer consequências, como a dessensibilização à violência. Mas isso não significa que o menino vai sair atirando nos colegas porque viu um filme. As pessoas costumam subestimar a capacidade cognitiva infantil. As crianças são sugestionáveis, mas não são robôs de imitação”, analisa o médico.





A pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Infância e Educação Infantil da UFMG (Nepei) Iza Rodrigues da Luz tranquiliza os pais que não conseguiram evitar que os filhos assistissem à série e andam reproduzindo o contexto violento em brincadeiras do cotidiano. A especialista explica que brincar é a maneira como a criança elabora e tenta compreender o mundo que a cerca.

“É claro que os pais devem interferir se observarem que tem alguém se machucando. Mas quando a criança finge que atira em outras pessoas, por exemplo, ela está encenando. A encenação, esse faz de conta, é como meninos e meninas buscam interpretar a realidade. A melhor atitude não é censurar a brincadeira, mas ajudar nessa interpretação. Na qualificação do que é violento. Atirar nas pessoas é violento. Comer ossos por falta de dinheiro para a alimentação básica, como têm nos contado as notícias de jornal, também é. Os pais são convocados a fazer essa mediação o tempo todo”, diz a psicóloga.

Outro ponto levantado pela profissional é que os pais devem se abrir à escuta e abolir os discursos prontos. “Se a criança acabou vendo “Round 6”, é importante observar quais as questões e curiosidades ela traz depois disso, sem lições de moral, pois isso a afasta. Mais vale dialogar a partir daquilo que ela entendeu ao assistir os episódios. Muitas vezes, estamos ali, prontos para fazer um sermão contra o uso de drogas, mas os meninos nem prestaram muita atenção nisso. Então, para que tocar nesse assunto?”, orienta.





Para os adolescentes, a sugestão da pesquisadora é que os pais assistam à produção junto com os jovens e emendem a sessão em família com conversas críticas sobre a obra. “As discussões, nesse caso, podem ser mais complexas. Já os adolescentes têm uma capacidade cognitiva e de abstração mais amplas. Mas a compreensão da realidade não é suficiente. Eles ainda precisam de suporte e não devem ser solitários em suas descobertas.”

Recreio

Especialistas reforçam que conteúdo da série Round 6 é impróprio para crianças (foto: Netflix/Divulgação)
Nas escolas de Belo Horizonte, a repercussão da série “Round 6” entre os jovens não chegou a motivar cartas públicas de alerta aos pais, como ocorreu em instituições do Rio de Janeiro e do Paraná, no início de outubro. Nos documentos, que viralizaram em grupos de WhatsApp e nas redes sociais, educadores relatam, em tom preocupado, o fato de a produção sul-coreana ter se tornado o assunto mais comentado por turmas de alunos de 7 e 8 anos. Os atos violentos dos personagens estariam sendo, inclusive, reproduzidos em brincadeiras infantis.

No Marista Padre Eustáquio, colégio privado da Região Noroeste de Belo Horizonte, a orientadora do ensino médio, Maria José Coelho, diz que o corpo docente ainda não notou, entre os estudantes, comportamentos potencialmente nocivos. “Mas nós estamos acompanhando a discussão e estamos preparados. Grande parte dos professores inclusive assistiu à trama para saber do que se trata e responder adequadamente aos desafios que se apresentarem no dia a dia. No entanto, não sentimos ainda a necessidade de estabelecer uma comunicação formal com os pais sobre o tema. Até porque, é uma questão delicada. A escola precisa respeitar a maneira como cada família educa sua prole”, afirma a profissional.





“O que nós fazemos desde sempre é cultivar os valores que contribuem com o desenvolvimento dos jovens, como solidariedade, senso de justiça e cooperação contra a competição desenfreada em que alguns se dão bem enquanto outros ficam para trás”, complementa.

Para os alunos maiores de 16 anos, a educadora diz que a abordagem da série nas atividades escolares não está descartada. “Até porque, ela traz discussões interessantes, como a desigualdade social, por exemplo. O ensino, afinal, deve dialogar com a vida”, reflete.

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