No Alto Vera Cruz, Região Leste de Belo Horizonte, um grafite chama a atenção dos visitantes do bairro que comporta 47 mil habitantes e concentra uma das maiores favelas da capital. O desenho mostra dona Valdete da Silva Cordeiro, ex-presidente da Associação Comunitária e fundadora do grupo Meninas de Sinhá. Quase uma década depois de sua morte, em 2014, os ensinamentos dela servem de inspiração para uma legião de jovens.
Um deles é Júlio César Pereira Souza, de 44 anos e há quase 30 no diálogo com o poder público para auxiliar a comunidade mais pobre na busca por direitos básicos, como alimentação digna, casa própria, saneamento e educação.
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A queda e o retorno de Tó: 'Por 10 vezes, a morte esteve perto de mim'Eu sou favela: conheça Kika, líder comunitária no Aglomerado da SerraEu sou favela: a trajetória de Mano Bill, líder comunitário do BarreiroQuase 200 cidades de Minas podem sofrer com novos temporais hojeBH pode ter chuvas com rajadas de vento e raios neste domingo (24)E é justamente em favor das minorias que Dona Valdete se dedicou durante anos e incentivou Júlio César, então com 17 anos, a entrar para a associação. “Ela se foi, mas as ideias permaneceram. Ela sempre dizia que ‘quando o pouco se une, as coisas dão certo’. Isso está escrito na entrada da associação, junto com a caricatura dela. E nós adotamos essa ideia no Alto Vera Cruz”, diz, emocionado.
Baiano de Itamaraju, Julio se mudou para o Alto Vera Cruz em 1982. Cresceu e se especializou em políticas públicas. Por meio de seu conhecimento na área, conheceu 22 estados e trabalha para entidades como a Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), o Conselho Estadual de Saúde de Minas Gerais e o Conselho Nacional de Saúde, a Central Única das Favelas (Cufa), a Frente Favela Brasil, além de ser o coordenador em Minas a Federação Nacional Anti-Racista. Chegou a estudar psicologia, mas trancou a matrícula do curso.
Resultados da luta
O envolvimento com as políticas públicas o fez ter proximidade com a dura realidade de outras pessoas. “A favela não é planejada, já que a maioria das casas são ocupações irregulares. As construções possuem riscos geológicos. Você vê esgoto a céu aberto. Mas lutar por essa mudança tem resultados”, afirma o líder, que, nos anos 1990, iniciou o trabalho em busca de moradia para os que não tinham.
“Depois de 1993, surgiu o Plano Diretor de Belo Horizonte, que ajudou na regularização fundiária das vilas e favelas. A comunidade mudou muito. Passamos a ter ruas muitas abertas e asfaltadas, escolas, um centro de saúde novo e um espaço de políticas públicas de assistência social”, afirma.
Pelo seu envolvimento com a saúde, detectou que muitos problemas estavam relacionados justamente às más condições na periferia: “Vimos que 60% de doenças eram ligadas à falta de saneamento básico, como leptospirose, xistose e outras doenças provocadas por vermes. Muitas crianças adoeciam muito”, comenta.
Legitimidade de reivindicar
No início, a execução do trabalho feita por Júlio era complicada, já que as associações de bairro não tinham legitimidade para enviar ofícios ao poder Executivo falando sobre demandas.
“Na ditadura militar, as coisas eram resolvidas dentro dos gabinetes. Falava-se com o deputado ou vereador e eles resolviam com o prefeito ou governador. Não pediam opinião da comunidade. Resolviam os problemas em troca de favores. A partir do momento que surgiu essa reação das lideranças, que podem fazer convênios, emitir ofícios ao poder público, as comunidades passaram a ter mais autonomia”, explica Julio.
“Na ditadura militar, as coisas eram resolvidas dentro dos gabinetes. Falava-se com o deputado ou vereador e eles resolviam com o prefeito ou governador. Não pediam opinião da comunidade. Resolviam os problemas em troca de favores. A partir do momento que surgiu essa reação das lideranças, que podem fazer convênios, emitir ofícios ao poder público, as comunidades passaram a ter mais autonomia”, explica Julio.
A partir daí, surgiram 45 associações na Região Leste de BH. No Alto Vera Cruz, foi criado o Centro de Ação Comunitária do Vera Cruz (CACVC), que se tornou a voz da periferia na árdua luta pelas demandas. Além das ações ligadas à cultura, saúde básica e assistência social, o projeto destina recursos na criação de cursos profissionalizantes e pré-vestibulares comunitários para os jovens.
Lições do dia a dia
Além da igualdade entre moradores ricos e pobres, Júlio tem como maior sonho ver a sociedade livre dos prejulgamentos com a população mais vulnerável. “Uma favela é sempre vista de forma pejorativa. Existem muitos preconceitos e racismo estrutural. A maioria da população pobre é negra. Nesse período de trabalho, aprendi muito a não ser machista, a entender a diversidade e a importância da luta das mulheres. Elas cumprem papel brilhante de guerreiras. Vemos isso no dia a dia”.
Júlio foi pai aos 18 anos. O primogênito, Pablo Gustavo, tem atualmente 26 e se tornou um dos diretores da associação. Em seguida, veio Isabela, de 24, também atuante nos trabalhos dentro de ocupações na cidade. Diariamente, ele os incentiva a ser mais “soldado na guerra”, que não tem fim.
A pandemia da COVID-19 fez aumentar as demandas: “O desemprego é muito grande. Hoje, há subempregos ou trabalhos temporários. E, a partir disso, há muita evasão escolar, já que os alunos são obrigados a abandonar os estudos. Há muito esforço físico e mental durante o dia, o que leva os jovens a praticamente ficar dormindo à noite na aula”.