Uma história iniciada no período imperial, quase oito anos antes de dom Pedro II (1825-1891) deixar o trono e o Brasil, ainda desperta paixão, curiosidade e, principalmente, interesse por um desfecho. Minas já teve uma saída para o mar, pagou por isso e não levou. Por quê?
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Voltando à história do litoral mineiro, da compra de terra e da hipoteca: já no período republicano, quando houve a liquidação forçada do Banco de Crédito Real, Minas adquiriu os terrenos por 300:000$000 (trezentos contos de réis, valor aproximado hoje de R$ 36 milhões). Mas, apesar do negócio pago em títulos da dívida pública, o mar nunca banhou o mapa do estado.
O tempo passou e os mineiros ficaram a ver navios – e bem de longe, pois o Oceano Atlântico só aparece mesmo, nessa história, nas viagens de férias e de feriados prolongados.
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Tanto tempo depois, com os novos debates sobre a ferrovia, o Estado de Minas ouve especialista em direito para entender melhor o caso, volta à histórica reportagem sobre o litoral de Minas publicada por Fernando Brant (1946-2015), em maio de 1973, e dá voz aos “baianeiros”, mineiros que, ao menor chamado do sol e tempo livre, pegam a estrada rumo ao mar do Sul da Bahia.
Um pé aqui e outro na Bahia
O fim do inverno desperta no bancário aposentado Francisco José dos Santos Rocha, de 72 anos, morador de Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri, o desejo de trilhar o caminho do mar. Proprietário de uma casa de praia em Mucuri (BA), distante cerca de três horas de seu endereço mineiro, Francisco, nascido em Novo Cruzeiro, no Vale do Jequitinhonha, já planeja com a mulher, Zélia, e família, um passeio para dar aquela refrescada.Conhecedor da história que ressurgiu na década de 1980, segundo ele, para depois cair no esquecimento das autoridades, Francisco brinca com a hipótese de Minas ter uma saída para o mar. “Acho que só falta isso, né? Para o estado ficar completo. Temos tudo, o ideal seria um pedaço salgado.”
Ser ou não ser litorâneo – eis a questão para muitos mineiros que sentem uma certa nostalgia do mar e, cercados pelas montanhas, imaginam uma vida tranquila sob coqueiros, ouvindo o marulhar das ondas e comendo um peixinho para relaxar. Quer vida melhor? Nascido em Teófilo Otoni e morador de Belo Horizonte há 23 anos, o bancário Bruno Mota Ferreira, de 44, casado, pai de Bernardo, de 9, e Benício, de 3, também louva as delícias do Sul da Bahia. “Vou à região desde criança, pois meu pai comprou uma casa em Alcobaça em 1988. Estive lá em julho e voltarei com a família em janeiro.”
Considerando-se “baianeiro”, Bruno diz que a questão territorial não importa, pois vale mesmo é a intimidade com o mar. “Mineiro é louco por praia. Em qualquer oportunidade, vai para o Sul da Bahia, Guarapari (ES) ou Cabo Frio (RJ). E temos uma variedade de sotaques, mostrando essa proximidade com os estados vizinhos e a facilidade de deslocamento.”
Sem conhecer a história que ficou sem desfecho, Bruno diz que os voos para Teixeira de Freitas (BA) e os acessos asfaltados tornam o Oceano Atlântico bem mais perto das montanhas, independentemente de a qual estado pertença a praia.
NO CAMPO DO DIREITO
A história do “mar de Minas” sempre despertou o interesse do advogado André Mendes Moreira, professor de direito tributário da Universidade Federal de Minas Gerais. De início, ele explica que a compra da faixa de terra pelo governo mineiro não significa que o estado tenha aumentado seu território. “Vamos comparar: Minas tem um escritório de representação em Brasília (DF), mas isso não quer dizer que aquele espaço faça parte do nosso território. É bem diferente de uma embaixada, que é parte de uma nação estrangeira em outro país”, explica.Diante dos fatos históricos, há várias questões a serem examinadas antes de se sonhar com uma saída para o Atlântico. Em primeiro lugar, ressalta André, o valor pago pela faixa de terra não foi ao governo da Bahia, mas ao Banco de Crédito Real do Brasil após a falência da Companhia de Estrada de Ferro Bahia-Minas. “O trecho da ferrovia estava hipotecado ao agente financeiro como garantia para contração de empréstimo.”
E o valor pago por Minas ao Banco de Crédito Real do Brasil?, pergunta o repórter. “Mesmo que o banco tenha sofrido liquidação há 111 anos, alguma instituição o sucedeu, e a massa falida tem suas obrigações”, explica o advogado tributarista. “Pelo que se sabe, não houve o resgate da propriedade imobiliária. Mesmo o caso ficando em aberto, nada muda a divisa do estado. Valem mesmo a discussão e o sonho sobre uma negociação a respeito de troca de território”, acrescenta.
VINDO À TONA
Foi com muita competência e talento que o jornalista e integrante do Clube da Esquina Fernando Brant publicou na extinta revista “O Cruzeiro”, em 23 de maio de 1973, a reportagem “Olha aí o mar de Minas”. E na música “Ponta de Areia”, em parceria com Milton Nascimento, eternizou a emoção: “Ponta de areia, ponto final, da Bahia a Minas, estrada natural, que ligava Minas, ao porto, ao mar, caminho de ferro mandaram arrancar...”Na reportagem, o jornalista enfocava o trecho que começa na divisa dos municípios de Serra dos Aimorés (MG) e Mucuri (BA) e termina no mar, incluindo parte da cidade histórica de Caravelas e seus dois distritos, Ponta de Areia e Barra de Caravelas. Mais de quatro décadas depois, em 2015, uma equipe do Estado de Minas, formada pelos jornalistas Paulo Henrique Lobato e Beto Novaes, também esteve na região para mergulhar na história e trazer os fatos mais uma vez à tona.
Origens do “mar dos mineiros”
Nos trilhos da história, a polêmica do suposto “litoral mineiro” começou com a Baiminas (Bahia-Minas), a ferrovia que ligou Ponta de Areia (BA) a Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha. Foi inaugurada em 1881 e desativada em 1966. De forma a incentivar a construção da linha pela iniciativa privada, dom Pedro II concedeu à Companhia de Estrada de Ferro Bahia e Minas seis quilômetros de terras devolutas em cada uma das margens dos trilhos.O tempo passou e a empresa, enfrentando dificuldade financeira, hipotecou as terras ao Banco de Crédito Real do Brasil. Em 1908 (veja linha do tempo abaixo), a instituição financeira executou a dívida. Dois anos depois, quando foi a vez de o banco entrar em liquidação forçada, o governo de Minas adquiriu as terras em escritura de cessão de crédito e transferência de direito, com pagamento efetuado por meio de títulos da dívida pública.
Vale dizer que Minas jamais se apossou das terras. O assunto caiu no esquecimento por quase quatro décadas até que, em 1948, o então advogado-geral do estado, Darcy Bessone (1910-1997), alertou o governador Milton Campos (1900-1972) sobre o possível mar de Minas. Dias depois, o então secretário de Finanças, Magalhães Pinto, reiterou a lembrança.
Escreveu Magalhães Pinto: “Senhor governador, tenho a honra de submeter à elevada consideração de Vossa Excelência o presente processo relativo ao domínio do estado sobre terras marginais da estrada de ferro Bahia-Minas, no qual se encontra cópia do parecer emitido pelo doutor advogado-geral do estado, pedindo a Vossa Excelência deliberar sobre a orientação que se deva imprimir ao caso”.
Na sequência, Milton Campos determinou ao advogado-geral que encaminhasse um expediente ao governo baiano. A ordem foi cumprida em 1949: “Tenho a honra de submeter à elevada consideração de Vossa Excelência os inclusos documentos relativos a terras marginais da Bahia-Minas, de propriedade deste estado (Minas). (…) Como vê Vossa Excelência, exclui-se do domínio desse estado (Bahia), ao qual não se contesta, todavia, o poder jurisdicional resultante dos limites que o separam do território mineiro”.
A história parou por aí. Em resposta ao questionamento do EM, a assessoria do governo da Bahia informou, por e-mail, que “não foi localizado, nos arquivos públicos do estado, qualquer registro referente a esta transação especulada entre Minas Gerais e a Bahia”. Já o governo de Minas não se manifestou sobre o assunto. A legítima praia dos mineiros segue, portanto, como mais um saboroso pedaço da história, a ser degustado – quem sabe? – à beira do mar da Bahia.