Jornal Estado de Minas

TRAGÉDIA DE JANAÚBA

Após 4 anos, vítimas de incêndio em creche suportam sequelas e abandono


Janaúba – Para uns, o sofrimento físico e psicológico resultado das sequelas de uma tragédia que abalou o Brasil e o mundo; para outros, a saudade que não passa, deixada pelos que se foram em um incêndio criminoso que matou crianças e adultos; para todos, a dor do descaso, da lentidão judicial e do desamparo econômico. Passados mais de quatro anos do ataque à antiga Creche Gente Inocente, em Janaúba, no Norte de Minas, as famílias das vítimas do incêndio criminoso enfrentam em silêncio dificuldades financeiras para tratamento médico e compra de medicamentos.



Ainda lutam na Justiça em busca de indenização por parte do município, que paga por mês, a título de antecipação, quantias que variam de R$ 500 a R$ 1 mil por atingido. Muito pouco para quem vê o reforço dos recursos obtidos na época, por meio de doação, se aproximar do fim, e lida com o temor concreto de que a reparação completa ainda demore décadas.

Era manhã de 5 de outubro de 2017, às vésperas dos dias das Crianças e do Professor, quando o vigia municipal Damião Soares dos Santos, de 50 anos, portador de transtorno mental, invadiu o centro de ensino infantil e ateou fogo à sala onde estavam as crianças. Matou a si próprio e provocou as mortes de 10 alunos e três adultos, deixando mais de 40 feridos. Na época, a tragédia alcançou repercussão internacional, mas, quando completou quatro anos, há pouco mais de um mês, foi pouco lembrada.

Desde então, os maiores avanços vieram de ações da própria sociedade civil e da Defensoria Pública de Minas Gerais. O antigo prédio incendiado foi demolido. Em seu lugar – com recursos de doações de um grupo de empresários –, foi erguido um novo centro de educação infantil, que recebeu o nome da professora Heley de Abreu Silva Batista, morta como heroína, depois de tentar salvar as crianças em meio às chamas. Ela também lutou com o vigia Damião para tentar impedir a tragédia.







Entre as vítimas, a quase totalidade é formada por famílias de baixa renda, sem recursos para custear procedimentos médicos e comprar medicamentos exigidos para tratar sequelas das queimaduras ou reflexos psicológicos do ataque. Desde o incêndio criminoso, sem ter como pagar advogados, as famílias das vítimas encontraram amparo na Defensoria Pública, que ajuizou ações em busca de indenização por parte do município, com o qual, agora, busca um acordo para reparação, na tentativa de evitar o desamparo dos atingidos e garantir a continuidade dos tratamentos.

O defensor público Gustavo Dayrell, que atua em Janaúba, explica que até então, vem sendo feito um pagamento mensal referente à antecipação parcial das verbas indenizatórias, com desembolso pela Prefeitura de Janaúba para as famílias atingidas, nos valores de R$ 500 (para vítimas de lesões leves e médias) e R$ 1 mil (caso de mortes e lesões graves). Esse auxílio antecipado, que findaria em dezembro de 2018, tem sido renovado anualmente, resultado de Termo de Ajustamento de Conduta firmado pelo município após o ajuizamento da Ação Civil Pública pela Defensoria.

Desamparo preocupa Defensoria e associação

O defensor Gustavo Dayrell afirma que as famílias enfrentam uma situação preocupante, porque o dinheiro recebido por meio de doações está chegando ao fim. Os recursos, administrados pela Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da Creche Gente Inocente de Janaúba (AVTJana), são destinados ao custeio das consultas médicas e dos medicamentos usados pelos atingidos.





O presidente da associação, Luiz Carlos Batista (viúvo da professora Heley Abreu), afirma que foram arrecadados em torno de R$ 900 mil, em doações vindas de todo o país, na campanha SOS Creche Gente Inocente, realizada na ocasião. Do total, R$ 250 mil foram destinados a obras nas casas das famílias, para que pudessem receber de volta as crianças em recuperação de queimaduras graves. “Havia casas que estavam em condições tão precárias, que tiveram que ser demolidas e reconstruídas para que pudessem oferecer a condição apropriada para receber as crianças em tratamento das queimaduras”, explica.



O restante do dinheiro arrecadado passou a ser usado no pagamento das consultas médicas, compra de medicamentos e outras despesas de 83 famílias assistidas pela entidade. Agora, segundo Luiz Carlos Batista, a associação dispõe de cerca de R$ 40 mil do montante original. “Gastamos em torno de R$ 8 mil a R$ 10 mil por mês com a compra de medicamentos para as crianças vítimas de queimaduras”, afirma o presidente da AVTjana.

“Até então, conseguimos fazer milagre com as doações. Mas, pela quantidade de pessoas em tratamento, o dinheiro que temos não vai dar por muito tempo. Precisamos de uma solução rápida”, afirma. Ele salienta ainda que a apreensão maior é pelo fato de que as crianças vítimas de queimaduras não podem interromper o tratamento, sob o risco de as sequelas se agravarem.





Luiz Carlos anuncia que, diante da situação e da falta de solução oficial, vai novamente apelar para a solidariedade e retomar a campanha SOS Gente Inocente, em prol das vítimas, divulgando o número da conta bancária para doações (veja ao lado). 

“Estamos em um período difícil para todos, ainda enfrentando a pandemia. Mas creio que, com fé em Deus, muitas pessoas possam ajudar”, diz Batista. “Quem quiser, sejam de cidades vizinhas ou até de outros estados, pode visitar Janaúba para ver a situação atual das crianças”, completa.

Pouco dinheiro para muitas dificuldades

A professora Marley Simone Lima Antunes, que enfrentou o maior período de internação, e os medicamentos: sequelas físicas e psicológicas (foto: Arquivo pessoal/Divulgação)
As famílias das vítimas do incêndio da Creche Gente Inocente já enfrentavam as dificuldades da carência financeira e a seca na região. Com a tragédia, viram a vida piorar, mas não desanimaram. Vivem uma rotina de superação, demonstrada por gente como Flávio de Oliveira Silva, de 33 anos, pai de Flávia Nayara Dias Silva, de 8 anos, uma das vítimas do incêndio criminoso.



A menina, então com 4 anos, teve 80% do corpo queimado no ataque. Foi transportada em estado grave para o Hospital João XXIII, em Belo Horizonte, onde ficou por dois meses. “Ela foi uma das sobreviventes que mais tiveram o corpo queimado”, afirma o pai, que considera que a filha se salvou por obra de Deus e pela assistência médica.



Flávio afirma que trabalhava como montador de equipamentos de irrigação em plantações de banana, e já encarava dificuldades para encontrar serviço por causa da escassez hídrica na região. Com a tragédia, teve que interromper a atividade totalmente para cuidar da filha. A mulher, Élica Nayara Soares Dias, de 29, deixou o trabalho de cuidadora de idosos pelo mesmo motivo.

Com outro filho, de 1 ano e 6 meses, a família tem que se virar com os R$ 1 mil mensais da antecipação de indenização pagos pela Prefeitura de Janaúba. Mesmo completando a renda com alguns bicos, tem sido difícil sobreviver. Porém, Flávio não desanima e agradece pela vida da filha. “Dou graças a Deus por ela estar alegre, correndo e brincando, sempre com o sorriso no rosto, sem recuar ou ficar em um cantinho devido às marcas no corpo, por timidez ou vergonha.”





Apesar da gratidão, ele reclama do abandono das vítimas do incêndio por parte das autoridades. “Muitos colocaram a tragédia no mar do esquecimento”, lamenta, enquanto agradece o apoio da Defensoria Pública. “Eu nem imaginava que teria um suporte tão forte da Defensoria”, diz Flávio, agradecendo também a assistência da direção da associação das vítimas do incêndio.

Nas mãos de Deus

Outra lição de superação vem da professora Marley Simone Lima Antunes, de 46. Ela teve 43% do corpo queimado, ficou em estado gravíssimo e permaneceu no Hospital João XXIII por quatro meses e 11 dias. Na sequência, foi transferida para o Hospital Regional de Janaúba, onde ficou mais um mês. Foi a vítima do incêndio com maior tempo de internação. “Fiquei internada, fiquei entre a vida e a morte. Por várias vezes, os médicos falaram que eu estava nas mãos de Deus”, relata ela, lembrando que, além de várias cirurgias, teve de enfrentar a hemodiálise.

Marley permanece em tratamento. E não só devido às queimaduras de segundo e terceiro graus, mas também por que ficou com sequelas renais graves, além de sequelas pulmonares e psicológicas. Arrimo de família, divorciada, hoje sobrevive com os R$ 1 mil mensais da antecipação de indenização da prefeitura. Pouco, já que, além de consultas, exames e tratamento médico, tem que pagar aluguel e garantir o sustento de si própria e de três filhos, que também enfrentam sequelas psicológicas devido ao que ocorreu com a mãe, passam por tratamento e dependem de medicamentos.





A situação não é muito diferente para Flávia Nunes Rocha, mãe do garoto Luciano Gabriel Nunes Rocha, de 6, uma das vítimas das chamas na creche. O menino, na ocasião com 2 anos, inalou fumaça e precisou de internação. Recuperou-se, mas enfrenta sequelas pulmonares e depende de atenção contínua. Flávia, que não tem marido, tem outros três filhos pequenos. Desempregada, sobrevive dos R$ 500 mensais da indenização antecipada pela prefeitura. Diante das dificuldades, atualmente encontra amparo apenas na associação das vítimas e na Defensoria Pública.

Para colaborar

  • Campanha SOS Creche Gente Inocente
  • Conta corrente: 61.841-8
  • Caixa Econômica Federal
  • Agência: 0937
  • Operação: 013
  • Associação Creche Gente Inocente

A dor que não tem tratamento

Para as mães que perderam filhos no ataque à Creche Gente inocente, passados mais de quatro anos o inconformismo permanece. É o sentimento com que convivem pessoas como a balconista Valdirene dos Santos Borges, de 43 anos, que perdeu Mateus Felipe Rocha Santos, aos 5, no incêndio. “Na época, procurei ser forte diante da minha família. Mas parece que agora estou vivendo meu luto. Hoje, a dor que sinto está mais forte do que nunca. Meu filho deixou muita saudade e um vazio enorme. Minha vida mudou muito, e para pior”, conta Valdirene, que toda semana vai ao Cemitério Municipal de Janaúba para visitar o túmulo de Mateus.