No cardápio, agradecimento se tornou o prato principal de quem viu a vida por um fio. Em volta da mesa farta, é hora de celebrar união, amor, saúde como nunca e uma forma de renascimento. Não. O Natal não será o mesmo. E o réveillon tem motivos de sobra para virar um ano realmente novo. Com vacina no braço, familiares que tiveram um ente querido entre a vida e a morte por causa da COVID-19 se apoiam na prudência para se reencontrar e festejar juntos a data mais importante do calendário cristão. Esperança e fé completam a ceia de quem, sofrendo as sequelas da doença, tem pela frente ainda um longo caminho rumo à recuperação.
“Natal é nascimento. Eu gosto de Natal, é vida longa. Vou comemorar com precaução, mas vou comemorar até. É uma nova vida”, diz o músico e coordenador comercial Hugo Melo, de 29 anos. A vacina é o passaporte para a família se reunir serena na casa do pai dele, mas sem deixar de lado o distanciamento social e o uso de máscaras para celebrar a vida. Na ceia deste ano, dois ingredientes não faltarão: cuidado e esperança. E na lista de desejos, a recuperação de sua saúde e o casamento são os objetivos do ano que vem.
O baterista, que aguarda a terceira dose do imunizante, amarga ainda as sequelas da COVID-19, mas não desanima. É em sessões de fisioterapia e de fonoaudiologia que ele dá tudo de si para recuperar os movimentos do lado esquerdo do corpo e a fala. Canhoto, não pode mais escrever. Comunicativo, sua grande preocupação quando conversa é se o interlocutor o compreende bem. Na voz, os traços nítidos de quem não se deixará vencer.
'Quando eu estava intubado, uma fisioterapeuta pôs uma música do Jota Quest que diz 'dias melhores pra sempre'. Lembro -me disso. E me agarro a isso até hoje
Hugo Melo, baterista
Hugo conta que era considerado “o chato” da família. Obcecado pelas medidas de segurança sanitária, não dispensava máscara nem álcool em gel. Mas, aos 29 anos, sem comorbidade e com vida ativa (fazia academia, corria seis quilômetros), passou mal em abril e ficou intubado por 11 dias. A COVID-19 lhe causou uma trombose e, da instituição de saúde onde estava internado, foi direto para a reabilitação no Hospital de Transição Paulo de Tarso, na Pampulha, em Belo Horizonte. “A família não me avisou que eu tive um AVC. Não lembrava nem meu nome. Não falava, tomava banho com a ajuda de enfermeiros, usava fralda e sonda”, relata o morador de Betim, na Grande BH. “Quando eu estava intubado, uma fisioterapeuta pôs uma música do Jota Quest que diz ‘dias melhores pra sempre’. Lembro-me disso. E me agarro a isso até hoje.”
O vírus provocou mais que um estado físico debilitado. Deixou em suspensão os sonhos de uma vida a dois. O casamento, marcado para junho deste ano, teve de ser adiado. Na reabilitação, um só pensamento vinha à tona. “Eu me curei da COVID-19, mas das sequelas do AVC não. Pedia para a equipe pegar pesado comigo, porque eu ia me casar”, conta. E se a união no civil teve de ser adiada, pelo menos na brincadeira ela aconteceu. No Paulo de Tarso, a equipe organizou uma cerimônia de festa junina para dar o gostinho do que virá em breve. A noiva, Kelly Pereira, de 30, assumiu seu papel: se maquiou e se vestiu de branco para alegria e a surpresa do jeca da vez. “Eu não sabia e me emocionei demais com o carinho”, conta. E se a vida de Hugo pede seu tempo, a da noiva o acompanha. A administradora largou tudo para se dedicar ao noivo. “É o amor. Minha meta para 2022 é a minha recuperação e nosso casamento”, afirma, prevendo uma grande festa.
Juntos, com fé e prudência
A ceia da família do encarregado de estoque Marcus Vinícius Araújo, de 36 anos, terá chester, maionese, arroz, tutu, farofa, suco e refrigerante. De sobremesa, pavê, pudim e salada de gelatina colorida. Tem também família vacinada, sem deixar de lado os gestos de proteção sanitária. Ele já tomou duas doses e aguarda sinal verde para a de reforço. Cuidado dobrado, sabores e cores não são para menos. Todos querem celebrar, mas ninguém quer nem pensar na possibilidade de reviver uma agonia que parecia sem fim. Marcus Vinícius passou mal na véspera do Dia das Mães, em maio.
Confundido com um mal-estar causado por estresse, só teve o diagnóstico positivo para COVID-19 três dias depois. Ao fim de uma semana de tratamento em casa, sem melhoras, voltou ao hospital, onde ficou internado com 25% do pulmão comprometido. Três dias depois, o percentual dobrou. Marcus foi transferido para o Hospital Metropolitano Doutor Célio de Castro, no Barreiro, na capital, com 95% do órgão vital afetado. Foram 16 dias intubado e 40 no Centro de Terapia Intensiva (CTI).
Vamos comemorar diferentemente, com alguns familiares apenas, porque o momento ainda exige prudência, mesmo com vacina. Mas estaremos juntos para celebrar essa nova chance
Marcus Vinícius Araújo, encarregado de estoque
“Quando acordei depois de 16 dias, não mexia mais o corpo, só o pescoço. Tinha vários aparelhos ligados ao corpo e os braços inchados de tantos exames. Achei que estava tetraplégico e só pensava em como iria cuidar da minha família naquela situação”, conta. A retirada do tubo teve consequências. Ele teve um choque séptico e foi submetido a uma traqueostomia. Pai de Letícia, de 6 anos, e Davi, de 8, casado com a enfermeira Rafaela Silva Martins Araújo, também de 36, Marcus começou uma outra batalha: abandonar o ventilador mecânico e conseguir respirar por conta própria. “Os médicos não desistiram de mim em momento algum. Mas, enquanto eu lutava, via muita gente ao meu lado, em estado aparentemente muito menos grave, morrendo”, relata.
Quando finalmente ficou apenas com sonda para se alimentar, foi transferido para o Hospital Paulo de Tarso para reaprender a andar. Sem comorbidade, sem doença respiratória, o homem que não bebe nem fuma tenta ainda entender o que ocorreu. “Cheguei a duvidar de que sairia vivo, principalmente quando não podia receber visitas. No Hospital Metropolitano, ouvia os médicos dizerem que já tinham adotado todos os protocolos e só restava esperar.”
Quando as visitas foram liberadas, a confiança voltou. “Além da família, a fé é fortalecida pelas palavras que são ditas”, diz. Até hoje ele guarda as fotos das crianças que Rafaela colou na parede da enfermaria. Marcus ainda não voltou a trabalhar e faz fisioterapia para adquirir resistência. Hoje, comemora o fato de não ter quase nenhuma sequela, salvo se fizer esforços extremos.
O morador de Santa Luzia, na Região Metropolitana de BH, tenta hoje se fortalecer psicologicamente e se livrar do trauma. Para ele, este fim de ano não é como os outros. “Encaro como uma nova data de aniversário. Vamos comemorar diferentemente, com alguns familiares apenas, porque o momento ainda exige prudência, mesmo com vacina. Mas, estaremos juntos para celebrar essa nova chance. Todos sofreram muito”, diz. O olhar sobre a vida também não é mais o mesmo. “As prioridades mudam. Tem que correr na vida, mas nem tanto. Temos que cuidar da gente e, acima de tudo, não perder a fé. Não podemos ter medo de viver, desde que com cuidado”, brinca.