Do alto do barranco de escombros, terra exposta e lonas gastas contra a chuva, o Beco do Fagundes amanheceu praticamente deserto nesta quarta-feira (5/1), no Bairro Jardim Teresópolis, em Betim, na Grande BH. Verdadeiro contraste com o movimento intenso do dia anterior, quando vigorou, até às 19h30, a ordem de despejo de 27 famílias da área de risco.
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Juiz suspende demolição das casas do Beco dos Fagundes, em BetimMinistério Público tenta impedir demolição de 27 casas do Beco dos FagundesJustiça volta atrás e permite a retirada das famílias do Beco FagundesMesmo com a cassação dessa ordem judicial ainda na noite de terça-feira, muitas famílias preferiram não retornar a suas casas, transformando, na manhã desta quarta-feira, o beco condenado pela Defesa Civil em praticamente uma comunidade fantasma.
Andando pelas vielas estreitas e íngremes de cimento e pedras, das fachadas de barracos sem as janelas e portas ainda se vê que alguns pertences resistem, como colchões e cobertores deixados ao chão por quem esvaziou sua moradia para se prevenir de danos em caso de remoção forçada, mas que pretende resistir sozinho. A comunidade considera que suas habitações não estejam em risco.
Ainda vivem pessoas em partes condenadas pela Defesa Civil, mesmo em meio aos entulhos e lama onde duas famílias foram salvas após o desabamento, em janeiro de 2020, mas do qual o deficiente Gilson dos Santos, de 48 anos, e Bruna Natália de Oliveira, de 17, não conseguiram escapar com vida.
Uma delas é o catador de material reciclável Avandir Ferreira da Costa, de 64 anos, que vive no bairro há 40 anos. Ele está no lugar mais baixo, no pé do barranco onde os últimos barracos desabaram no ano da tragédia.
"Se descer o barranco eu estou na reta, estou na frente. Agora, só mora aqui comigo Deus e eu. A família está em outra casa, segura. De mim, quem sabe é Deus. Eu estou dormindo aqui ainda, não tem lugar pra eu ir. Para onde me mandarem, vou ter que ir", disse, enquanto reunia as últimas estruturas da casa para vender, como forros e telhas, já que não conseguiria transportar para um local seguro.
Na casa de Avandir quase tudo já foi removido. Apenas o básico ainda está por lá para que ele tenha um teto sobre sua cabeça, mas não perca tudo caso a polícia entre em ação e ocorra a desocupação.
O portão de entrada da casa se foi e o que separa a propriedade do beco é apenas um cabo telefônico amarrado de uma extremidade à outra da abertura. Dois cães, o Zezinho e a Pretinha, ainda moram com o catador, fazendo companhia e segurança.
A energia elétrica vem de um cabo grosso, um gato que traz eletricidade da rede pública atravessando todos os escombros da área desabada e entrando na habitação por um orifício furado na parede. Fornece energia para os poucos aparelhos que rompem o silêncio do lugar abandonado, como uma televisão de tubo e um rádio antigo.
Em volta e dentro da casa, o material reciclado fica esparramado ou empilhado e aos poucos vai sendo selecionado para a venda em ferros-velhos e locais de reciclagem. Das frestas dessas pilhas saem insetos e também ratos, de acordo com o homem, que não se diz preocupado em dividir a moradia com esses parasitas e animais.
Os batentes das portas, as portas, as esquadrias e as janelas já foram removidas, bem como a maioria dos móveis. Dentro da casa, mesmo com as aberturas sem janelas e portas, a luz do dia não é suficiente para iluminar a escuridão tornando o ambiente sombrio e úmido.
No único quarto habitado, Avandir dorme sobre um colchão deixado ao chão com finas cobertas. De mobília, um armário sem gavetas, uma mesa com os poucos pertences e documentos, um carrinho de mão e uma roda de bicicleta.
Onde seria a cabeceira do colchão, uma Bíblia aberta na última leitura,no capítulo de João, onde se lê, entre os versículos, o 16,33: "Eu disse essas coisas para que em mim vocês tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo".
"É a Bíblia, é a palavra de Deus. É daí que tiro força para trabalhar todo dia e aceitar o que Deus fez pra mim. Não sei ainda pra onde que eu vou, preciso saber pra onde vão me mandar, mas aceito o que Deus tiver para mim", desabafa Avandir.
No alto, também em área considerada de risco pela prefeitura, o pedreiro aposentado Joaquim Coelho, de 77 anos, não quer deixar a sua casa e o lote onde construiu um pequeno bar, desativado desde de o desmoronamento de 2020. "A prefeitura diz que minha casa está condenada, mas não há trinca ou rachadura. O promotor disse que iria ver se tinha risco. Sou pedreiro e moro aqui há 42 anos, se minha casa estivesse em risco, seria o primeiro a sair dela, pois eu ia saber. Daqui só saio morto", disse.
A casa apresenta bolor e descascamentos nas paredes voltadas para o barranco e trincas apenas pequenas nas áreas das janelas, aparentemente não apresentando rachaduras que indiquem, a princípio, nenhum perigo. Contudo, as edificações estão muito próximas ao barranco que desceu e poucos vizinhos ainda dormem nas moradias à sua volta.
Um grupo de moradores das partes mais baixas protestou exigindo serem deixados ou terem uma solução negociada e uma indenização coerente. Polícia Militar e a Defesa Civil municipal estiveram na vizinhança, mas apenas averiguando as condições de segurança da comunidade e informando sobre as propostas de evacuação da prefeitura.
Na noite de terça-feira, após reunião de mediação emergencial entre a comunidade, prefeitura, vereadores, Ministério Público, Defensoria Pública e Polícia Militar, o juiz José Romualdo Duarte Mendes suspendeu a desocupação dos imóveis que estava inicialmente prevista para a manhã desta quarta. Uma reunião de conciliação está marcada para o dia 12, às 14h.
A Prefeitura de Betim oferece aos moradores desapropriados o recebimento de aluguel social no valor de R$400 ou moradias populares em dois bairros da cidade. Após a demolição das casas a intenção seria construir uma contenção vegetada, uma vez que técnicos afirma que não há condições para contenções de concreto no terreno.