Jornal Estado de Minas

EM GUERRA PELO FILHO

Família acusa colégio mineiro de discriminar e recusar filho autista

Quando Murilo, de apenas 3 anos, deu tchau e mandou um beijo pela primeira vez, Karla Bronzato, de 28, chorou de tanta emoção. O gesto do filho autista era um sinal de que a guerra contra a condição, travada por ela entre dois mundos – o seu próprio e o do filho –, começava a ser vencida. E para além das batalhas diárias dentro de sua casa, em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, a jovem mãe e o marido Eriele Fernandes Coelho, de 44, agora lutam pelo direito à educação do menino. Os pais acionaram a polícia e denunciaram que o tradicional Colégio Stella Matutina recusou a matrícula do filho em decorrência da sua condição de saúde.




 
A Promotoria de Justiça de Defesa da Educação, da Criança e do Adolescente no município tomou ciência do caso na última quinta-feira (13/1), quando recebeu uma representação contra a instituição de ensino.

O documento foi assinado por todos os vereadores da Câmara Municipal. A família também diz que vai entrar com uma ação judicial contra o colégio. O caso foi encaminhado à 7ª Delegacia de Polícia Civil, onde um inquérito está em curso. 
 
Além dos pais, a reportagem conversou com a promotora Samyra Ribeiro Namen, que recebeu e apreciou a demanda conjunta do Legislativo da cidade.

“Ainda não temos muitas informações, mas apenas as alegações contidas no documento enviado pela Câmara. Estamos dando início nas apurações agora”, conta a magistrada, pontuando, no entanto, que há ampla legislação no Brasil que, de fato, assegura a obrigatoriedade das escolas aceitarem alunos que dependem de uma educação especial complementar. A lei não prevê nenhum limite ou estabelecimento de cota de vagas para esse público.




 
A reportagem ouviu, ainda, o vereador Antônio Aguiar. Também atuante como pediatra dos ambulatórios de autismo e síndrome de Down no Sistema Único de Saúde (SUS) do município, foi o médico quem trouxe à tona entre seus pares na Câmara o desabafo da mãe de Murilo nas redes sociais (veja abaixo).

 
À reportagem, Karla conta que no dia 17 de dezembro ela e o marido foram até o colégio para conhecer o espaço e, inicialmente, foram bem atendidos.

“A coordenadora que estava nos acompanhando até mostrou a sala que o Murilo iria estudar. Ela disse que o processo seria bem simples, sendo necessária a inscrição na internet e depois juntar os documentos para finalizar o processo na unidade”, inicia.
 
Ainda conforme seu relato, eles fizeram o que foi orientado. Ao acompanhar a solicitação na internet, Karla diz que recebeu uma mensagem, dia 28 de dezembro, informando que a coordenadora do colégio queria falar com ela.



Polícia Militar esteve na instituição de ensino e coletou depoimento dos pais e da coordenadora do Colégio Stella Matutina, em Juiz de Fora (foto: Bruno Luis Barros - Especial para o EM)
 
“Ligamos e pediram que a gente fosse até lá com a documentação dele fazer a matrícula. No entanto, cinco minutos depois, retornaram a ligação dizendo que a coordenadora, na verdade, não estava, pois tinha saído de férias. Mesmo assim, decidimos ir lá para nos certificar, pois tínhamos achado aquilo estranho. Quando chegamos, voltaram a dizer que toda a coordenação tinha saído de férias e remarcaram para que voltássemos dia 3 de janeiro”, conta o pai da criança, Eriele.
 
Por volta das 10h de uma segunda-feira, o casal chegou ao colégio, mas uma funcionária disse que não teria como atendê-los devido a um problema no site. “Além disso, falaram que a coordenadora não estava e, mais uma vez, pediram que voltássemos mais tarde, às 14h”, segue a esposa.
 
Matrícula negada: “Quem perde ele são vocês”, diz mãe
 
“Quando retornamos, ela ainda não tinha chegado e esperamos por mais de meia hora. Quando finalmente fomos atendidos, a coordenadora disse assim: ‘Eu vou conversar, mas só posso falar com uma pessoa’. Então, eu fui para dentro de uma sala com ela. Como já tínhamos passado por discriminação com o Murilo em outras escolas, já fiquei cismada com aquela situação”, lembra Karla, acrescentando que a negativa de matrícula – bem como o motivo – veio naquele momento.




 
“A coordenadora disse que não poderia matricular o Murilo porque ele era autista. Havia, sim, vagas, porém para crianças típicas – ou seja, sem deficiência. Ela também falou que já tinha dois alunos com autismo e, com base no regulamento interno da instituição, não poderia aceitar outra criança nessas condições.”
 
A mãe de Murilo, logo, diz que retrucou: “Meu filho é uma benção para mim. Ele é extremamente inteligente e quem está perdendo ele são vocês”, disse Karla antes de deixar a sala, reencontrar o marido e sair do colégio.
 
“Desabei com o policial no telefone”
 
Abalada, a mãe conta que, após chegar na calçada, ao sair da escola, fez uma breve reflexão. “Naquele momento pensei: ‘Meu Deus, quantas mães já não saíram daqui chorando? Hoje eu não vou chorar’. Em seguida, liguei para a polícia”, conta.




 
“Desabei com o policial no telefone. Eu disse: ‘Eu tô aqui e não querem fazer a matrícula do meu filho por ele ter deficiência’ e comecei a chorar. A viatura chegou e eu e meu marido entramos no colégio novamente com os policiais, e ela (a coordenadora) confirmou (às autoridades) o que havia me falado: que não havia vaga para o Murilo por ele ser deficiente”, explica.
 
Para a mãe, ligar para a polícia foi um ato de resistência após decidir não aceitar mais que seu filho fosse discriminado. “Infelizmente, isso já aconteceu em outros colégios. E a gente não briga só com escola, é com plano de saúde também. A gente briga com tudo! A gente tem que brigar com o mundo por ele”, desabafa.
 
“Todo dia quando acordo tenho em mente que preciso fazer ele evoluir (na interação social). É um trabalho árduo, mas, no fim do dia, vale muito a pena. Sempre tem um abraço e um beijo dele. É a melhor recompensa!”, diz a mãe orgulhosa, que frequentemente faz dinâmicas e jogos com o filho para se conectar com o mundo dele. “Ser pai e mãe de autista é viver com eles e para eles a todo momento”, reflete.




 
“Falha de comunicação”, diz colégio
 
A Polícia Militar traz no registro da ocorrência que a responsável pela coordenação do colégio teria dito que foram realizados “processos internos” e a equipe educacional identificou indisponibilidade de vaga para alunos com deficiência.
 
Procurada pela reportagem na última sexta-feira (14/1), o Colégio Stella Matutina disse, por meio de sua assessoria, que “respeita totalmente a legislação” vigente.
 
“Lamentamos uma falha de comunicação ocorrida durante a visita da família ao colégio, ao explicar que existe a expectativa de abertura de uma nova turma para a faixa etária desejada. Naquele momento, as vagas da primeira turma já estavam totalmente preenchidas”, aponta trecho do comunicado da instituição (leia a nota completa no fim da reportagem).
 
 “Toda criança que precise de educação especial deve ser aceita”, reforça promotora
 
Tanto a promotora Samyra Ribeiro Namen quanto o vereador e pediatra Antônio Aguiar reforçam a ampla legislação vigente que obriga colégios públicos e privados a aceitarem a matrícula de alunos que precisem de uma educação especial.




 
Logo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação diz que os sistemas de ensino devem assegurar aos educandos com necessidades especiais professores com especialização adequada para atendimento especializado.
 
Já a Lei Brasileira de Inclusão (13.146/2015) prevê em seu artigo 27 que “a educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem”.
 
Há, ainda, outros dispositivos legais, como a Lei 8.069/1990, referente ao Estatuto da Criança e do Adolescente, e os artigos 127 e 129 da Constituição da República.
 
“Qualquer criança que tenha necessidade de uma educação especial deve ser aceita, não apenas aquelas que têm autismo”, enfatiza Samyra Ribeiro Namen, promotora de Justiça de Defesa da Educação, da Criança e do Adolescente.




 
O vereador e pediatra Antônio Aguiar complementa: “Os tratados internacionais dos direitos humanos – principalmente no que diz respeito às pessoas com deficiência – proíbem toda forma de exclusão e garantem o direito à educação.”
 
O médico diz que lamenta o “local (a escola) – onde o processo de educação é o produto mais importante a ser apresentado – se colocar contrário a um processo de inclusão”. “Para as crianças que têm alterações nessas áreas de comunicação e interação social, a integração no ambiente escolar representa uma oportunidade de resgate das funções no neurodesenvolvimento, que são tão importantes para a vida delas”, detalha.
 
Rede municipal de ensino é a que mais acolhe autistas
 
Conforme a promotora Samyra Namen, a maior rede de inclusão de autistas no ensino acontece nas escolas municipais. “De manhã, eles vão para a sala de aula e, quando chega de tarde, as crianças entram em uma sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE). Ali, eles recebem a atenção de um professor específico para desabrochar a comunicação neles por meio de dinâmicas e jogos”, explica.




 
“Deve-se colocar a criança que tenha uma dificuldade a mais como alguém normal. Ela deve ser inserida e incluída dentro daquele ambiente. O autista tem dificuldade de interagir socialmente. Ele só precisa de alguém para estimulá-lo”, avalia.
 
De acordo com dados da Promotoria de Justiça de Defesa da Educação, da Criança e do Adolescente, no ano de 2020 havia 1.019 alunos especiais matriculados na rede pública municipal de ensino. Em 2021, foram computados apenas 527 estudantes assistidos por professor de docência compartilhada – uma queda expressiva que é reflexo da pandemia de COVID-19 em Juiz de Fora.
 
Nota completa do Colégio Stella Matutina encaminhada à reportagem
 
“O Colégio não só respeita totalmente a legislação, como é reconhecido na comunidade escolar de Juiz de Fora como uma escola inclusiva e extremamente acolhedora às crianças e adolescentes com autismo e deficiências diversas. Atualmente atende a mais de 20 famílias com necessidades especiais. O acolhimento é um dos pilares de sua identidade missionária.




 
Lamentamos uma falha de comunicação ocorrida durante a visita da família ao colégio, ao explicar que existe a expectativa de abertura de uma nova turma para a faixa etária desejada. Naquele momento, as vagas da primeira turma já estavam totalmente preenchidas. Tão logo percebeu-se esse ruído, a escola fez contato com a família para novamente acolhê-la e realizar a matrícula da criança.
 
Desta forma, reforçamos que, caso seja da vontade da família, a vaga está à disposição.”

A família contesta a nota do colégio e afirma que “a escola sabe que errou e agora busca esconder a verdade dos fatos”. Karla e Eriele também rebatem o argumento do colégio de “falha de comunicação”. “Tão pouco fomos comunicados que as vagas da primeira turma estavam fechadas. Também não foi dito que haveria a expectativa de abertura de uma nova turma para a faixa etária desejada”, alegam. 

“Por quatro vezes fomos à escola com o propósito de efetivar a matrícula do nosso pequenino Murilo, mas foi em vão. A última vez foi a mais traumática e constrangedora, com o veredito final da coordenadora dizendo que estava cumprindo a lei. Ela nos apresentou uma cópia do regulamento, que estava no site colégio, grifando e apontando o item 9.5. Conforme esse dispositivo, o colégio disponibiliza apenas duas vagas para crianças com deficiência e elas já estariam preenchidas. Logo, havia possibilidade de matrícula apenas para aquelas sem deficiência”, detalham os pais. 





E continuam: “A própria coordenadora confessa tal negativa no boletim de ocorrência quando diz que 'foi constatado pela equipe educacional que não havia vaga para alunos com deficiência, sendo permitida a matrícula de apenas duas crianças para cada turma do infantil III, onde nosso filho se enquadraria.”

Para os pais de Murilo, o colégio tentou contornar a situação depois da repercussão do caso, mas que qualquer acordo é impossível após tal discriminação e esperam que as autoridades tomem as providências necessárias para que esse episódio não aconteça com outras famílias.