A Secretaria Municipal de Saúde de Brumadinho, na Região Metropolitana de BH, distribui, desde sexta-feira (14/1), um composto com supostas propriedades desintoxicantes a pessoas que tiveram contato direto com as enchentes que atingiram a região nas primeiras semanas de janeiro.
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Divulgada na sexta-feira (4/1), a postagem do Executivo Municipal que menciona a distribuição do floral detox foi apagada após críticas de seguidores e cientistas nas redes sociais.
O composto, no entanto, segue sendo distribuido no Núcleo de Práticas Integrativas e Complementares do município. Por volta de 9h30, a reportagem procurou pelo produto no setor. Uma funcionária informou que ele havia se esgotado, dada a grande procura nos últimos dias, mas que uma nova remessa seria disponibilizada ao fim da manhã.
Mais tarde, em novo contato com o núcleo, o EM constatou que os frascos anunciados já haviam chegado. Questionada sobre as propriedades do material, a mesma funcionária afirmou que ele é capaz de "aumentar a resistência" das pessoas a agentes nocivos que circulam em enxurradas e afins.
Segundo o imunologista Jorge Andrade Pinto, os florais não apresentam benefícios cientificamente comprovados contra contaminação por toxinas.
"É muito importante que as pessoas saibam que a ciência, ao menos até o momento, não atestou que esses compostos são capazes de eliminar ou evitar o contágio por metais pesados e substâncias afins. É uma ilusão terapêutica. E considero um desserviço que um ente público não alerte a população sobre isso", afirma o médico.
"Pode parecer inofensivo recomendar o uso de floral numa situação dessas, mas imagine que alguém realmente sob risco de contaminação por metais pesados ou qualquer toxina decida tomar floral. A pessoa usa o produto e pode achar que está segura. Todo paciente deveria ser, no mínimo, avisado de que não está recebendo um tratamento comprovadamente eficaz e que precisa procurar as terapias já validadas pela ciência", complementa.
O especialista em Saúde Pública Leonardo Savassi observa que os florais, por definição da própria Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, não podem ser chamados de medicamentos. A Portaria N° 702, editada em 21 de março de 2018, define a terapia como "prática complementar e não medicamentosa".
"Do meu ponto de vista, é uma terapêutica que pode ser recomendada para o bem-estar, de maneira individualizada. Agora, empregar os já escassos recursos públicos nessa terapia alternativa para a prevenção de intoxicações, em vez de concentrá-los nos métodos que já sabemos que funcionam, me parece questionável", comenta o especialista, que leciona a disciplina "Práticas de Saúde Baseadas em Evidências" na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
O que diz a prefeitura
Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Saúde de Brumadinho informou, por meio de nota, que disponibilizou o floral detox à população como "prática complementar e integrativa" à saúde humana, mas não essencial para tratamento fisiológico. (veja abaixo a nota na íntegra).
Ainda segundo o comunicado, a assessoria de comunicação chegou a alterar o post em que anuncia o composto, "deixando claro que floral não é medicamento”.
Essa segunda versão citada, no entanto, não constava no Instagram da prefeitura até por volta de 17h desta segunda-feira (17/1). O município não informou se vai manter a distribuição do floral detox.
Risco e protocolos
Especialmente após o rompimento da barragem da Mina de Feijão, em 25 de janeiro de 2019, a população de Brumadinho tem demonstrado preocupação com a contaminação por metais pesados durante o período chuvoso, marcado por enchentes.
No entanto, o coordenador do serviço de Toxicologia do Hospital João XXIII, Adebal de Andrade Filho, tranquiliza os moradores da cidade. Ele explica que os casos de intoxicação por metal pesado por contato fugaz com águas e lama de enchente são improváveis de ocorrer.
"Ela acontece em decorrência de exposição crônica ao agente, ou consumo prolongado de alimentos e de água contaminada", esclarece o médico.
Já protocolos oficias do Ministério da Saúde também alertam sobre para o risco e contágio por micróbios causadores de doenças como difteria, gripe, tuberculose, meningite e tétano. A vacinação é a principal medida de combate recomendada.
Outra recomendação citada nos protocolos é não deixar água acumulada, o que evita que o mosquito aedes aegypti – transmissor de dengue, zika e chikungunya – se prolifere.
Confira a nota da prefeitura de Brumadinho na íntegra
"É importante esclarecer que desde de 2018 existe em Brumadinho o NUPIC – Núcleo de Práticas Integrativas Complementares, que oferece à população terapias alternativas como massoterapia, reiki e distribuição de florais para diferentes usos. Este trabalho faz parte da Secretaria Municipal de Saúde.
Com a enchente em 2022, a equipe colocou à disposição da população um floral “detox”, como algo complementar e integrativo à saúde humana, mas não essencial para tratamento fisiológico, apenas para minimizar os efeitos das inundações em Brumadinho.
A Assessoria de Comunicação chegou a alterar o comunicado deixando claro que “Floral não é medicamento”.
O trabalho do NUPIC está baseado na 8ª Conferência Nacional de Saúde (realizada em 17 a 21 de março de 1986), que legitimou os saberes e práticas complementares em Saúde inseridos no Sistema único de Saúde-SUS.
O NUPIC está respaldado pelas diretrizes da OMS, pela portaria do Ministério da Saúde GM/MS Nº. 971, de 3 de maio de 2006, a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PNPIC) e, em Minas Gerais, pela Política Estadual de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde através da Resolução da SES-MG Nº 1.885/2009.
Em Brumadinho, existe uma Lei Municipal de nº 2.433/2018, de 21 de setembro 2018, que inclui as PIC’s como uma política municipal do SUS.
A Terapia de Florais foi incluída na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares do Sistema Único de Saúde (PNPIC/SUS) pelo Ministério da Saúde, através da portaria 702, de 21 de março de 2018."