Acidente com ônibus na Vilarinho expõe precariedade no sistema
Eixo se solta e Move superlotado vira em BH. Vinte e nove passageiros se feriram. Consórcio será alvo de processo administrativo. Polícia Civil vai apurar caso
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Cristiane Silva
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Déborah Lima
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Edésio Ferreira
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Natasha Werneck
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Vinícius Prates*
21/01/2022 06:00 - Atualizado em 21/01/2022 08:43
Susto e perplexidade marcaram a manhã das mais de 90 pessoas que viajavam em um ônibus da linha 524R do Move Metropolitano, que liga o Terminal Justinópolis a Belo Horizonte. Por volta das 7h30, ao passar pela Avenida Vilarinho, uma das principais vias de ligação dos municípios do Vetor Norte ao Centro da capital, em Venda Nova, o veículo tombou, parando o trânsito por quase quatro horas.
Segundo o Corpo de Bombeiros, entre escoriações e fraturas, não houve mortes ou pessoas com ferimentos graves. Relatos dão conta de que o veículo deu sinais de problemas mecânicos antes de o eixo se soltar em plena avenida. O tombamento evidencia a situação precária na qual os usuários do transporte público viajam atualmente, ainda convivendo há dois anos com o risco de contaminação pelo coronavírus com aglomeração e janelas fechadas. Segundo o Departamento de Edificações e Estradas de Rodagem (DEER-MG), o veículo viajava com 127% de ocupantes a mais do que o permitido, ou seja, mais que o dobro. O consórcio responsável pelo veículo será alvo de processo administrativo.
O acidente ocorreu por volta das 7h30 na Avenida Vilarinho. Uma testemunha ligou para o 193 e contou que o ônibus teve um dos eixos desprendidos na via e tombou em frente à estação de transferência do Move Candelária, no sentido Centro, quase em frente à obra de uma das caixas de contenção de água para evitar enchentes na Vilarinho. A fachada de um imóvel que estava desocupado também foi atingida.
Nelson Ivan, de 64 anos, trabalha em uma loja de granitos próximo ao local do acidente e ajudou a socorrer os passageiros na hora em que o ônibus tombou. A câmera de segurança do local mostra o momento em que ele corre para socorrer as vítimas, após o veículo passar com um perceptível balanço. “Trabalho ao lado. Escutei o barulho e vim correndo para ajudar porque nessa hora não tem como não ajudar. É muita gente chorando, muita gente machucada e tem que fazer o possível para ajudar as pessoas”.
Socorro
Nelson Ivan, que trabalha na área do acidente, ajudou a retirar os passageiros, entre eles um bebê (foto: Edésio Ferreira/EM/DA Press)
Em meio ao caos, tanto de passageiros desesperados quanto de pessoas que ainda tentavam filmar a situação, Nelson conseguiu retirar vários usuários do veículo. Ele comentou a sensação de ser um dos heróis do dia. "A gente se sente bem ajudando os outros porque, às vezes, você está em uma dessa e a pessoa pode ajudar você também. Uma criancinha saiu rindo. Ali que eu me emocionei porque o menino saiu rindo, sem saber o que estava acontecendo. Saber que saiu todo mundo vivo dali é bom demais, só é ruim quando as pessoas se machucam", contou.
O cenário impressionou quem passava pelo local e os comentários eram de incredulidade por não haver mortes. Havia peças espalhadas por vários metros. Seis viaturas do Corpo de Bombeiros, com 22 militares, e cinco ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) trabalharam no atendimento às vítimas. Após uma triagem feita pelos médicos, 29 pessoas com escoriações e suspeita de fraturas foram levadas para serviços de saúde, sendo duas para o Risoleta Neves, próximo ao local, e outras 27 para Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) de Venda Nova e Ribeirão das Neves. Policiais militares e agentes da BHTrans estiveram no local e o trânsito foi interditado, sendo desviado pela Rua Padre Pedro Pinto.
O pai, Wanderson, correu para o local em busca da criança e da esposa (foto: Edésio Ferreira/EM/DA Press)
Ao saber do acidente, amigos e familiares de passageiros foram para a Avenida Vilarinho. Um deles foi o lanterneiro Wanderson Rodrigues dos Santos, de 32, que saiu do Bairro Areias, em Ribeirão das Neves, para encontrar a família. A mãe dele estava no veículo, assim como a esposa e o filho de apenas 10 meses, que ela levava para uma consulta médica. A mãe dele estava a caminho do hospital, para passar o dia com a avó de Wanderson, que está internada. “Saí para trabalhar e recebi a ligação da minha esposa de que tinha ocorrido um acidente. Chegando aqui, me deparei com esse cenário”, comentou. "É agradecer a Deus que deu outra oportunidade para todo mundo começar de novo. Dar mais valor às vidas, aos familiares, pessoas próximas, porque a vida da gente é um sopro. Meu filho, graças a Deus teve uma segunda chance. Meu filho poderia estar vitimado dentro do carro uma hora dessa", desabafou com o pequeno Davi, que ria no colo do pai. No início da tarde, ele informou que a família acabava de deixar o atendimento médico e todos estavam bem.
A técnica de refrigeração Denise de Fátima, de 38, estava no ônibus e confirmou. "Na primeira curva ele (o ônibus) estalou. Na segunda curva, quando parou na primeira cabine, ele deu outro estalo. O motorista desceu, olhou e disse que não era nada. Quando fez a curva na Vilarinho, estalou de novo. O povo começou a falar 'vai ter que parar' quando o coletivo chegou ao ponto antes da estação Candelaria", relata. "Ele (o motorista) acelerou e o ônibus capotou", completou. Denise bateu a cabeça e sofreu um inchaço na testa. Ela foi atendida e a orientação era de que procurasse um médico caso aparecesse algum outro sintoma.
Revoltada com a situação, ela cobrava responsabilidade.“A culpa é da empresa, que não presta um bom serviço nos carros, manuteção correta e coisa parecida. Do motorista também, porque ele sabia que o ônibus estava com defeito. Não foi só um, foram vários estalos. Era para ele ter parado, feito todo mundo descer”, afirmou.
Versão do motorista
No local do acidente, o Estado de Minas tentou falar com o motorista e representantes da empresa que estavam ao lado dele, mas ninguém quis dar entrevista. Eles se limitaram a responder que “estava tudo bem” ao serem questionados. O condutor não aparentava ferimentos. Ele conversou com responsáveis pela vistoria do Departamento de Edificações e Estradas de Rodagem (DEER-MG), policiais civis e militares. O motorista chegou a fazer o teste do bafômetro com a Polícia Militar. Segundo o Corpo de Bombeiros, o condutor afirmou que "estava na velocidade normal na via, percebeu alteração na direção puxando para a esquerda, logo depois escutou um estalo e a direção travou, puxando o ônibus para a esquerda e depois para a direita, momento no qual o veículo acabou tombando. Aparentemente houve a quebra do ‘facão’ e consequente colapso do eixo traseiro", disse corporação, ainda pela manhã.
O ônibus foi destombado por volta das 11h, após o eixo ser retirado da via e colocado em um caminhão. O motorista foi autorizado a entrar para pegar alguns pertences. Do lado de fora, havia pessoas esperando para recuperar objetos de passageiros que ficaram para trás, a pedido deles. Mais um perito da Polícia Civil chegou para avaliar a situação por outro ângulo. Após o reboque, o trânsito foi totalmente liberado às 11h15.
Investigação
Em nota enviada ao EM à tarde, a Polícia Civil informou que o condutor do veículo foi conduzido pela Polícia Militar e será ouvido na Central Estadual de Plantão Digital. As investigações para determinar as circunstâncias e causas do fato serão de responsabilidade da Divisão Especializada em Prevenção e Investigação de Crimes de Trânsito (DEPICT). “Uma equipe de investigadores compareceu ao local e já iniciaram os trabalhos para levantamento de possíveis imagens do acidente, assim como, coletar nomes das testemunhas que possam auxiliar na elucidação dos fatos”, diz o texto. A nota informou ainda que a perícia compareceu ao local para os trabalhos iniciais e um laudo será produzido e anexado ao inquérito. “A ocorrência do fato ainda não foi finalizada pela Polícia Militar”, completou o texto.
Danos
O imóvel atingido pelo ônibus pertence a Patrícia de Paula, de 45, que acompanhou a parte final do trabalho. Ela disse que o espaço estava em reforma e seria alugado. A notícia do acidente chegou pelo filho dela, que estava a caminho do trabalho e passou na porta do local no momento do acidente. “Na hora que eu recebi a notícia foi um choque. Quando ele falou que o ônibus tombou e entrou, a gente já pensa nas vítimas, mas graças a Deus não teve nenhuma morte”, comentou. Segundo ela, a empresa proprietária do ônibus prometeu ressarcir todos os danos, reconstruindo o muro e providenciando um bloqueio para evitar a invasão por criminosos.
Processo administrativo
Pelo relato do Corpo de Bombeiros e das próprias placas instaladas dentro do veículo, o ônibus que tombou ontem estava superlotado. Um dos informativos, que mostra o número dele, diz que a capacidade de passageiros é para 26 pessoas sentadas e 51 em pé, totalizando 77 pessoas. Em outra placa, com detalhes de fábrica, como a data da fabricação e modelo, consta que o veículo pode transportar 79 pessoas.
Em Belo Horizonte, desde 2020, a regra é que, em função da pandemia da COVID-19, os veículos do transporte coletivo podem circular com apenas 10 passageiros de pé. Conforme o Decreto Nº 17.362, de 22 de maio de 2020, da Prefeitura de Belo Horizonte, esse número só pode dobrar em caso de ônibus do Move articulados.
“(...)o Consórcio Linha Verde, responsável pela operação da linha do Move Metropolitano, na qual circula o veículo de placa: OXK 3643, número de ordem: 29319524 R, e que se encontrava fazendo o itinerário da linha 524R, será alvo de um processo administrativo punitivo e deverá prestar esclarecimentos sobre o ocorrido. Em condições normais, o limite máximo de passageiros permitido nesse veículo é de 77 pessoas (26 sentadas e 51 de pé). Segundo a deliberação do Comitê COVID-19, a lotação máxima do veículo, neste momento, deveria ser de 41 pessoas (26 sentadas e 15 de pé)”, diz a nota. No entanto, havia 93 pessoas no ônibus, 52 a mais do que o permitido.
“O Consórcio também deverá prestar esclarecimentos sobre a situação de manutenção da frota em operação. Em paralelo, a fiscalização do DER-MG vai promover uma vistoria completa na linha”, diz o DEER-MG, que ainda indicou uma medida para reduzir a lotação dos veículos. “A Secretaria de Estado de Infraestrutura e Mobilidade (Seinfra) informa que a partir de 1º de fevereiro a oferta de linhas do transporte metropolitano será retomada no padrão pré-pandemia. Ou seja, as empresas não circularão mais com horários reduzidos em nenhum dos itinerários”, finaliza a nota. Ao acionar o departamento, o Estado de Minas também perguntou sobre reclamações feitas pelos usuários das linhas metropolitanas, mas não houve resposta.
Usuários reclamam até de falta de freio
O acidente com o ônibus da linha 524 (Terminal Justinópolis/Belo Horizonte), que tombou após perder o eixo na Avenida Vilarinho, em Venda Nova, no início da manhã de ontem chamou atenção para as condições do Move Metropolitano, que servem usuários da Região Metropolitana de Belo Horizonte. A reportagem do Estado de Minas entrevistou passageiros desses ônibus e encontrou uma lista de reclamações, sendo a principal delas a superlotação dos veículos, como a constatada no veículo que se acidentou. Superlotação, goteiras e até falta de freio estão entre as reclamações dos passageiros.
A nota diz ainda que goteiras só podem ser identificadas quando chove e, nesses casos, “o veículo é recolhido logo após o término da viagem para passar pelos
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
devidos reparos”. E completa: “Todos os veículos que operam o serviço metropolitano passam por revisões periódicas e, quando algum problema é detectado, o carro é recolhido para passar pelas reparações cabíveis”. Leia abaixo depoimentos de passageiros.
“Pra começar, parece um carnaval. Você entra lá dentro e não consegue conversar com ninguém de tão cheio. Entrar num ônibus desse e numa lata de sardinha é a mesma coisa. A única diferença é que eu sou humano e a sardinha é peixe. E os motoristas têm que andar controlando, já cansei de ouvir motorista falar que o ônibus não tinha freio. Tem que controlar nas descidas. Se deixar pegar velocidade, (o ônibus) não para”.
Jair José da Silva, de 65 anos, aposentado
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
“A situação é precária. Se chove, molha tudo lá dentro. No calor, o ar-condicionado não funciona e a gente passa mal. As cadeiras balançando, os ferros às vezes você segura e cai”, pontua. “É muito cheio, lotado, às vezes não tem nem lugar pra segurar direito. Já aconteceu comigo de (o ônibus) estragar no meio do caminho. É a maior dificuldade pra pegar outro porque está tudo lotado também. É muito difícil. A gente paga passagem cara e sofre demais. Não é fácil não”
Janair Ferreira Gusmão, de 49 anos, empregada doméstica
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
“Dependo de três coletivos para ir ao trabalho e outros três para chegar em casa. O pior é o Move Metropolitano. Ele é superlotado o dia inteiro e quando está chovendo, molha dentro do ônibus. “Além disso, tem briga e tumulto dentro da estação. Empurra-empurra, bagunça o tempo todo”
Cristina Brito de Souza, de 43 anos, diarista
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
“A situação é péssima. Só passagem cara e transporte ruim. A gente fica horas esperando. No final da estação do Move é outra demora. É péssimo o transporte, o ônibus é muito cheio. Depois das 16h vai superlotado. Uso todos os dias para trabalhar e me preocupa com certeza, principalmente agora com esse acidente em Venda Nova.”
Adenor Lacerda Rodrigues, 44 anos, ajudante de carga e descarga
(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
“Moro em Santa Luzia e vejo o ônibus lotado o tempo todo. Pego às 4h30 para ir trabalhar, que é quando está mais vazio, mas na volta, no pico da tarde, é muito difícil de sentar. Tinha de melhorar, aumentar a quantidade de ônibus. Ainda mais com o coronavírus. Pra quê esse tanto de gente? Fico com medo. Tem vez que cai chuva e tem goteira dentro do Move”
Isa Soares Pereira Santos, 41 anos, auxiliar de serviços gerais