Se pudesse entrar numa cápsula do tempo e voltar algumas décadas, reencontrando-se aos 10 anos de idade, a professora Santuza Teixeira diria à menina: “Aproveite muito bem todos os momentos, em cada fase da vida, com todas as suas angústias e alegrias”. Já o professor Ado Jorio, frente a frente com sua infância, também apontaria uma direção: “Continue brincando muito!”. Pois o tempo passou, eles cresceram, se graduaram, realizaram sonhos e têm agora importante conquista após tantos anos de estudos, dedicação e empenho a favor da melhoria da condição humana.
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Com a pandemia, nunca se falou tanto em ciência, pesquisas, laboratórios, vacinas, novas tecnologias e futuro da humanidade. Ado Jorio considera extremamente salutar o fato de o assunto estar na ordem do dia e na boca do povo, pois o objetivo da ciência se encontra no desenvolvimento da sociedade e da sua relação com o universo. “Aproximar as pessoas da ciência é muito positivo, pois eleva o nível educacional dos indivíduos e serve também como prestação de contas. Afinal, a sociedade financia a ciência.”
Mas, na contramão, o negacionismo também entrou em cena, buscando holofotes. Na avaliação de Santuza Teixeira, a única forma de jogar luz sobre a sala escura dos negacionistas está em mostrar dados, números e gráficos. “Mostrar que existe uma correlação clara entre a redução no número de casos (e número de mortes) e o aumento no número de pessoas vacinadas consiste num modo muito eficiente de convencer alguém da importância das vacinas. Algo como mostrar a foto do planeta visto do espaço para convencer alguém de que a Terra não é plana.”
Trajetória
Os dois recém-eleitos para a Academia Mundial de Ciências nasceram em Belo Horizonte e trilharam caminhos mundo afora, sempre com o foco no conhecimento científico. Santuza se destaca por suas pesquisas em parasitologia molecular e pela participação no estudo das doenças parasitárias. Para ela, o reconhecimento internacional ocorre em clima de tranquilidade, por ter feito escolhas certas e contribuído “ao menos um pouco” para o avanço do conhecimento científico na sua área.
Atualmente, a professora se dedica quase 100%, segundo ela, aos projetos de vacina contra a COVID-19, no Centro de Tecnologia de Vacinas (CTVacinas), e, com a volta gradual de alunos e outros pesquisadores ao ICB, começa a retomar os projetos sobre doença de Chagas.
Santuza foi chefe de departamento, coordenadora do CTVacinas, presidente da Sociedade Brasileira de Protozoologia e professora residente do Instituto de Estudos Interdisciplinares Avançados na UFMG. Também membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e bolsista de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), foi incluída, recentemente, na lista das 50 pesquisadoras que mais formam novos cientistas no Brasil.
Frentes de Trabalho
Ado Jorio é membro titular da Academia Brasileira de Ciências e autor de quatro livros sobre a espectroscopia Raman – técnica que permite identificar a estrutura química de materiais – e outros temas. Hoje, atua em três frentes principais: desenvolvimento de um nanoscópio, equipamento óptico comparável a um microscópio, mas com uma resolução que revela imagens na escala do nanômetro (medida 1 bilhão de vezes menor que o metro), e de equipamentos de diagnóstico precoce do mal de Alzheimer, além do estudo de propriedades quânticas da luz para protocolos de informação quântica.
Professor do ICEx, Ado está há vários anos entre os cientistas mais citados em artigos científicos – em 2016, foi incluído na lista dos mais influentes do mundo em levantamento feito pela Thomson Reuters. Recebeu honrarias no Brasil, como a Ordem Nacional do Mérito Científico e a Medalha da Inconfidência, e homenagens no exterior por entidades como a Fundação Humboldt e o Centro Internacional para a Física Teórica. “É uma grande honra fazer parte da TWAS, que foi criada para apoiar a prosperidade sustentável dos países em desenvolvimento, por meio de pesquisa, educação, política e diplomacia. Espero que essa filiação me habilite a prestar mais serviços ao Brasil e ao mundo”, ressalta.
Em entrevista ao Estado de Minas, os dois professores falam sobre suas trajetórias, conciliação entre trabalho e vida profissional e explicam o momento atual desafiado pela pandemia. Leia a seguir os principais trechos.
Como chegar lá
A eleição para a TWAS começa com a indicação dos cientistas pelas academias nacionais de ciências. Contam aspectos como número de trabalhos publicados e, sobretudo, a quantidade de projetos realizados em parceria com grupos de cientistas de outros países. Durante a 15ª Conferência Geral da TWAS, no início de novembro, foram eleitos 58 novos nomes, dos quais 20 mulheres (34%). A Academia passa a ter 1.343 membros.
Entrevista/Ado Jorio de Vasconcelos - professor do Icex/UFMG
O senhor acha que, com a pandemia, a ciência ficou mais perto das pessoas em geral, dos leigos? De repente, como o técnico da Seleção Brasileira, todo mundo se tornou um pouco “cientista”... Isso é bom sinal?
O objetivo da ciência é o desenvolvimento da sociedade e de sua relação com o universo. Aproximar as pessoas da ciência é muito positivo, pois eleva o nível educacional dos indivíduos e serve também como prestação de contas. Afinal, é a sociedade que financia a ciência. A pandemia fez com que a sociedade corresse em socorro da ciência para conter as perdas, e a imprensa fez um excelente papel em evidenciar isso para a sociedade, não apenas informando, mas também educando.
O senhor pode explicar um pouco sobre a sua área de atuação?
Trabalho com o desenvolvimento de técnicas que usam a luz (ótica) para estudar materiais nanométricos ou nanomateriais. Conhecendo a matéria no nível molecular, que está na escala dos nanômetros (um milhão de vezes menor que o milímetro), podemos desenvolver materiais para a engenharia e para a medicina, novos métodos de caracterização ou diagnóstico.
A chegada à TWAS é pavimentada por um longo caminho, não é isso? Como foi a trajetória do senhor?
Fiz graduação e doutorado em física na UFMG, pós-doutorado no MIT (Massachusetts Institute of Technology/Estados Unidos) e fui pesquisador e professor visitante na França, Japão, Suíça e Alemanha. No total, morei quatro anos no exterior desenvolvendo meus conhecimentos científicos após minha formação no Brasil. Construí minha carreira como professor na UFMG, iniciando em 2002, e é onde pesquiso e leciono até hoje. Fundei o Laboratório de Nanoespectroscopia, no Departamento de Física, do Instituto de Ciências Exatas da UFMG, onde desenvolvo instrumentação e pesquisa com ótica de nanomateriais. Servi também como coordenador de Estudos Estratégicos no Inmetro, para o estabelecimento da nanometrologia no Brasil.
Qual a mensagem do senhor aos estudantes brasileiros que querem entrar na universidade com o foco nas ciências exatas?
Aproveitem seu tempo na universidade para aprender o máximo possível sobre ciência. Busquem realizar o que é chamado na universidade de iniciação ci- entífica. Mesmo que não queiram seguir carreira científica, essa iniciação é um processo de aprendizado sobre como identificar problemas, como formular questões, e desenhar trajetórias para solucioná-las.
O senhor considera a COVID-19 um divisor de águas na história recente da humanidade? Podemos colher algo de bom desse período?
De forma indireta, sim. A COVID-19 evidenciou problemas latentes de nossa sociedade, desde a grande desigualdade à lentidão em aceitar mudanças. Ela é um divisor de águas, por estar mostrando à humanidade a necessidade de fazer mudanças. Já estamos colhendo frutos, que vão desde o esforço da imprensa em educar os cidadãos sobre a importância da ciência até os avanços em direção ao desenvolvimento sustentável, com a preocupação da humanidade em relação à sua harmonia com o meio ambiente.
Se o senhor pudesse encontrar, hoje, o menino Ado Jorio, lá pelos seus 10 anos, o que diria a ele?
Eu diria: “Continue brincando muito!”.
Entrevista/Santuza Maria Ribeiro Teixeira
Nunca se falou tanto em ciência, em cientistas, em pesquisas... O momento é oportuno para mais investimentos em estudos e laboratórios, formações de profissionais e incentivo aos jovens?
Vivemos um momento muito especial durante o qual, ao mesmo tempo em que nossa fragilidade como espécie ficou ainda mais evidente, nossa capacidade de desenvolver soluções baseadas no conhecimento científico se mostrou de forma clara e decisiva para o controle de uma pandemia que afetou o planeta de forma nunca vista antes. Nunca o investimento em ciência, em infraestrutura de laboratório e formação de pessoal foi tão urgente, especialmente para o nosso país. Precisamos garantir, por exemplo, que o avanço do conhecimento acumulado sobre vacinas, desde os estudos primordiais de Jenner (Edward Jenner, britânico, 1749-1823) e Pasteur (Louis Pasteur, francês, 1822-1895) até o desenvolvimento atual das novas tecnologias de vacinas para COVID-19 possa continuar acontecendo. Tivemos avanços extraordinários, mas muito ainda precisa ser estudado pelas novas gerações de pesquisadores para que possamos estar mais bem preparados para enfrentar inúmeras outras doenças e ainda as novas epidemias que certamente surgirão.
Se a ciência está na boca do povo, o negacionismo também ganha terreno. De que forma é possível jogar luz sobre o obscurantismo e levar mais informação às pessoas, não apenas aos brasileiros?
A única forma de jogar luz sobre a sala escura dos negacionistas é mostrando dados, números e gráficos. Mostrar que existe uma correlação clara entre a redução no número de casos (e número de mortes) e o aumento no número de pessoas vacinadas é um modo muito eficiente de convencer alguém da importância das vacinas. É como mostrar a foto do planeta visto do espaço para convencer alguém de que a Terra não é plana. A grande vantagem da ciência é que ela não se baseia em opiniões, mas sim em fatos, em experimentos e seus resultados. Eu posso até não gostar de ter uma agulha espetada em meu braço, mas o fato de essa agulha inocular uma substância que deixa o meu sistema imune mais bem preparado para eliminar o vírus da COVID-19 é uma informação muito fácil de ser explicada, até mesmo para uma criança.
A chegada à TWAS é pavimentada por um longo caminho, não é isso? Como foi a trajetória da senhora?
São quase 40 anos desde o dia em que me formei em ciências biológicas. Na verdade, essa trajetória foi sendo definida à medida que o caminho ia sendo trilhado, e uma série de acasos foram me levando a fazer escolhas sem muita certeza de que eram certas. Quando estava me formando na graduação na Universidade de Brasília (UnB), os cientistas começavam a desenvolver uma nova tecnologia chamada na época de engenharia genética e eu me encantei com ela. A possibilidade de conhecer a fundo os processos moleculares que acontecem nas nossas células e poder manipular esses processos me fascinou quando tinha 20 e poucos anos. Depois, cursar o mestrado e o doutorado para aprender melhor a estudar os genes das células e ao mesmo tempo tentar usar esse conhecimento para ajudar a controlar um mal como a doença de Chagas me parecia um projeto de vida muito interessante. Em seguida, eu não consegui enxergar outra profissão tão boa quanto essa, que me permitia não só continuar estudando para sempre, mas também trabalhar em uma universidade onde eu podia ao mesmo tempo fazer pesquisas e ensinar. Tenho que ressaltar que a experiência de fazer pesquisa no exterior antes de me fixar na UFMG foi fundamental. Ciência não pode ter fronteiras.
A eleição é também uma vitória para as cientistas. Ainda há preconceito, no meio científico, em relação às mulheres?
Como sempre digo, essa pergunta precisa ter data para acabar. Quando fazia o doutorado na Suíça, em 1990, participei de muitos debates sobre esse assunto. As coisas não mudaram tão rápido assim, certamente o preconceito no meio científico em relação às mulheres ainda persiste em muitos países, incluindo nos Estados Unidos, que eu conheço bem, e no Brasil. Fazer ciência exige de fato uma dedicação maior do que aquela que se espera de pessoas em muitas outras profissões, portanto o homem ou a mulher que escolhe essa carreira precisa fazer escolhas e encontrar formas de compatibilizar seus outros interesses, sejam eles a maternidade ou tocar em uma banda de rock. Eu não tive nenhuma dificuldade em ser mulher, mãe e cientista e chegar aonde eu queria. Mas, infelizmente, muita gente ainda acha, incluindo muitas mulheres, que, sendo mulher e mãe, você pode até ter uma carreira científica, mas não deve almejar o topo da carreira.
Qual a mensagem da senhora para estudantes brasileiros que querem entrar na universidade com o foco nas ciências biológicas?
O que eu digo para meus alunos é que tenho enorme inveja deles. Que estão começando uma carreira em uma área que está avançando de forma extraordinária e que, no curto prazo, terá um impacto na vida do planeta que não sabemos ainda dimensionar exatamente. Estão sendo desenvolvidas agora as novas tecnologias de vacinas, de terapia gênica, de produção de alimentos e obtenção de imagem, só para citar alguns exemplos, tecnologias que irão permitir entender cada vez melhor como os organismos funcionam, como podemos protegê-los, como devemos interagir melhor entre nós, os seres vivos, e cuidar melhor do nosso planeta. Fazer parte desse processo é um privilégio dos estudantes de biologia de hoje.
Se a senhora pudesse encontrar, hoje, a menina Santuza Teixeira, lá pelos seus 10 anos, o que diria a ela?
Diria a ela para aproveitar muito bem todos os momentos, em cada fase da vida, com todas as suas angústias e alegrias. Diria para seguir sua intuição, mas que deveria olhar também para as pessoas adultas e descobrir o que nelas o atrai e o que nelas você não gosta. Diria para prestar atenção em algumas e perguntar como elas fizeram as escolhas que fizeram, se mudaram de ideia, ou se ainda mudariam de ideia. Talvez, se tivesse feito essas perguntas a um professor de redação, teria seguido a carreira de escritora, ou à professora de teatro, poderia ter me tornado artista. Ter prestado atenção no meu tio cientista, o professor Beraldo, deve ter me ajudado com minhas escolhas.